
32
Ínicio
>
Artigos
>
Civil
ARTIGOS
CIVIL
Reforma do Código Civil e propostas para a tomada de decisão apoiada

Flávio Tartuce
27/02/2025
Como é notório, o art. 115 do EPD – Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/15) determinou que o Título IV do Livro IV da Parte Especial do Código Civil passasse a vigorar com a seguinte redação: “Da Tutela, da Curatela e da Tomada de Decisão Apoiada”. Com isso, foi acrescentado um art. 1.783-A ao Código Civil, tratando dos procedimentos relativos a essa tomada de decisão apoiada. A categoria visa ao auxílio da pessoa com deficiência para a celebração de atos mais complexos, caso dos contratos. Foi ela inspirada na amministratore di sostegno, da Itália, e na Betreuung, da Alemanha.
De início, conforme o caput da norma hoje em vigor, a tomada de decisão apoiada é o processo judicial pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos duas pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade. O instituto tem a função de trazer acréscimos ao antigo regime de incapacidades dos maiores, anterior ao surgimento do EPD, sustentado pela representação, pela assistência e pela curatela.
Pontue-se que, em havendo falta de discernimento da pessoa, não é possível a opção pela tomada da decisão apoiada. Nesse sentido, por todos os julgados estaduais que assim concluem, merece destaque acórdão do Tribunal do Paraná que afastou a sua possibilidade fática. Como constou de sua ementa, “tomada de decisão apoiada que só pode ser requerida por pessoa com plena capacidade e discernimento, porém vulnerável por alguma circunstância pessoal, física, psíquica ou intelectual. Agravada que sofre do mal de Alzheimer e não comprovou, ao menos neste momento, que a doença não afetou seu discernimento. Necessidade de investigação mais aprofundada pela equipe multidisciplinar e por médicos psiquiatras. Decisão nomeando dois apoiadores revogada” (TJ/PR, Agravo de Instrumento 1688539-5, 11.ª Câmara Cível, Curitiba, Rel. Des. Sigurd Roberto Bengtsson, j. 28/2/18, DJPR 15/3/18, p. 118).
Na mesma linha, merece ser citada ementa do STJ, de 2024, segundo a qual, “conquanto o acidente cardiovascular seja referido pela doutrina como uma possível situação em que a tomada de decisão apoiada seria preferível em relação à interdição, a medida poderá ser desaconselhável quando a debilidade da pessoa não for apenas motora, mas também mental, como na hipótese sob julgamento. Inexistindo conduta desabonadora da curadora, não há razão para que seja ela substituída ou removida” (STJ, REsp 2.107.075/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 27/8/24, DJe de 29/8/24).
Na mesma linha desses entendimentos jurisprudenciais, no âmbito da doutrina, cite-se o Enunciado 640, aprovado na VIII Jornada de Direito Civil, de 2018: “a tomada de decisão apoiada não é cabível, se a condição da pessoa exigir aplicação da curatela”. A ementa doutrinária também traz em si a conclusão pela inviabilidade de cumulação da tomada de decisão apoiada e da curatela.
Ainda no que diz respeito ao sistema hoje em vigor, nos termos do § 1.º do novo art. 1.783-A da codificação material, para formular pedido de tomada de decisão apoiada, a pessoa com deficiência e os apoiadores devem apresentar termo em que constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores. Desse termo devem constar, ainda, o prazo de vigência do acordo e o respeito a` vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa que devem apoiar.
O pedido de tomada de decisão apoiada será requerido pela pessoa a ser apoiada, com indicação expressa das pessoas aptas a prestá-lo (art. 1.783-A, § 2.º, do CC/02). Essa iniciativa não pode ser atribuída a outrem, havendo legitimidade exclusiva apenas da própria pessoa com deficiência, conforme consta do Enunciado 639, também da VIII Jornada de Direito Civil. Nos seus exatos termos, “a opção pela tomada de decisão apoiada é de legitimidade exclusiva da pessoa com deficiência”. A ementa doutrinária também admite que a pessoa que requer o apoio manifeste antecipadamente a sua vontade de que um ou ambos os apoiadores se tornem, em caso de curatela, seus curadores.
Como já ficou claro, há um procedimento judicial para tanto, sendo certo que o preceito seguinte determina que, antes de se pronunciar sobre o pedido de tomada de decisão apoiada, o juiz, assistido por equipe multidisciplinar e após oitiva do Ministério Público, ouvirá pessoalmente o requerente e as pessoas que lhe prestarão apoio (art. 1.783-A, § 3.º, do CC/02). A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado (art. 1.783-A, § 4.º, do CC/02).
Nesse contexto, presente a categoria, não haverá qualquer debate a respeito da validade e eficácia dos atos praticados por incapazes, como vendas de imóveis, frente a terceiros de boa-fé. Presente uma tomada de decisão apoiada, não se cogita a sua nulidade absoluta, nulidade relativa ou ineficácia, o que veio em boa hora, em prol da segurança jurídica.
Em complemento, o terceiro com quem a pessoa apoiada mantenha relação negocial pode solicitar que os apoiadores contra-assinem o contrato ou acordo, especificando, por escrito, sua função em relação ao apoiado (art. 1.783-A, § 5.º, do CC/02). Isso para que não pairem dúvidas sobre a idoneidade jurídica do ato praticado, o que tem relação direta com o princípio da boa-fé objetiva.
Entretanto, em caso de negócio jurídico que possa trazer risco ou prejuízo relevante a qualquer uma das partes, havendo divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos apoiadores, deverá o juiz, ouvido o Ministério Público, decidir sobre a questão (art. 1.783-A, § 6.º, do CC/02). Eventualmente, poderá ele suprir a vontade de uma parte discordante.
Além disso, se o apoiador agir com negligência, exercer pressão indevida ou não adimplir as obrigações assumidas, poderá a pessoa apoiada ou qualquer pessoa apresentar denúncia ao Ministério Público ou ao juiz, especialmente com o intuito de evitar a prática de algum negócio jurídico que possa lhe trazer prejuízo (art. 1.783-A, § 7.º, do CC/02). Se o ato for praticado, é possível cogitar a sua invalidade.
Se procedente a denúncia, o juiz destituirá o apoiador e nomeará, ouvida a pessoa apoiada e, se for de seu interesse, outra pessoa para prestação de apoio (art. 1.783-A, § 8.º, do CC/02). A pessoa apoiada pode, a qualquer tempo, solicitar o término de acordo firmado em processo de tomada de decisão apoiada, inclusive para os fins de tomada de novas decisões, de acordo com a sua autonomia privada (art. 1.783-A, § 9.º, do CC/02).
O apoiador pode solicitar ao juiz, ainda, a exclusão de sua participação do processo de tomada de decisão apoiada, sendo seu desligamento condicionado a` manifestação do juiz sobre a matéria (art. 1.783-A, § 10, do CC/02). Por derradeiro, está previsto na norma vigente que se aplicam à tomada de decisão apoiada, no que couber, as disposições referentes à prestação de contas na curatela (art. 1.783-A, § 11, do CC/02).
Como se observa, a normatização vigente é cheia de detalhes e desperta muitas dúvidas práticas nos aplicadores do Direito, notadamente quanto à sua efetividade. Como há um processo judicial de nomeação de apoiadores, com burocracias e entraves, fica em xeque a possibilidade fática de uma pessoa com deficiência percorrer tal caminho, havendo outros disponíveis, como uma procuração firmada em Cartório ou mesmo por instrumento particular. Assim, até o presente momento, a categoria parece ser de pouca ou reduzida utilidade prática, pelo menos do que se esperava. Justamente por isso, a Comissão de Juristas encarregada da reforma do Código Civil sugere reparos no instituto, sendo a principal proposição a sua desjudicialização.
Nos debates ocorridos no âmbito da citada comissão, sempre se afirmou a necessidade dessa extrajudicialização, para que passe a ser requerida também perante o oficial do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, que receberá mais uma atribuição. Vejamos, nesse contexto, as justificativas apresentadas pela Subcomissão de Direito de Família – formada pelos Professores Pablo Stolze Gagliano e Rolf Madaleno, pela Desembargadora Maria Berenice Dias e pelo Ministro do STJ Marco Buzzi:
“Embora se cuide de um procedimento de jurisdição voluntária, observe-se que há forte burocracia para sua homologação, pois está prevista a participação do Ministério Público, de equipe interdisciplinar, oitiva do interessado e dos apoiadores por ele indicados etc. Bem por esse motivo, não se tem verificado maior repercussão prática do instituto, que, nos moldes vigentes, tem sido muito pouco utilizado, gerando críticas e sugestões da doutrina especializada e de parte da sociedade. Entre estas sugestões, recebida inclusive pela Comissão de Reforma do Código Civil, está a possibilidade de o ato de tomada de decisão apoiada ser realizado na via extrajudicial, mediante registro direto no Registro Civil.
(…).
A boa-fé deve ser presumida, daí por que não se pode ter o preconceito de que os apoiadores terão sempre a predisposição de aproveitar-se da pessoa com deficiência, o que justificaria a impreterível intervenção judicial para homologação do ato de apoiamento. Por outro lado, como dito, há tendência de desjudicialização de vários institutos jurídicos, notadamente no Direito de Família, razão pela qual a consagração da tomada de decisão apoiada, no campo extrajudicial, atende à necessidade da sociedade moderna de garantir maior liberalidade aos sujeitos de direito e de simplificar os atos e negócios jurídicos”.
Ainda segundo eles, a tomada de decisão apoiada extrajudicial teria os seguintes moldes, conforme as suas propostas iniciais: “a) registro do ato de apoiamento perante o Cartório de Registro Civil – uma vez que diz com o estado da pessoa, após parecer favorável do Ministério Público; b) manutenção da possibilidade de a TDA ocorrer no âmbito judicial, a critério do interessado em obter o ato de apoiamento; ou, ainda, nos casos em que o Registrador se deparar com dúvida quanto à livre vontade do apoiado ou não houver aprovação do Ministério Público, hipótese na qual remeterá o pedido ao juízo competente para análise”. Também foi sugerida a possibilidade de indicação de um ou mais apoiadores, “e, por fim, facilita-se o meio de encerramento da TDA, autorizando que, tanto o apoiado como o apoiador ou apoiadores promovam-na mediante simples requerimento ao Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais, preservados, claro, os efeitos jurídicos já produzidos”.
Todas essas proposições foram debatidas profundamente com os Relatores-Gerais e os demais membros da Comissão de Juristas, e, após aprimoramentos e mudanças nos textos, sugere-se que a tomada de decisão apoiada, judicial ou extrajudicial, passe a ser tratada em cinco comandos, de forma mais clara, objetiva e didática.
Nesse sentido, em termos gerais, o novo art. 1.783-A do Código Civil enunciará em seu caput que “a tomada de decisão apoiada é o procedimento, judicial ou extrajudicial, pelo qual a pessoa capaz, mas deficiente ou com alguma limitação física, sensorial ou psíquica, bem como as declaradas relativamente incapazes, na forma do inc. II do art. 4.º, que tenham dificuldades para a prática pessoal de atos da vida civil, elegem uma ou mais pessoas idôneas com as quais mantenham vínculos e que gozem de sua confiança para prestar-lhes apoio na tomada de decisões sobre atos da vida civil”. Vale lembrar que pelo projeto, como relativamente incapazes, o art. 4.º, inc. II, da Lei Civil, elencará “aqueles cuja autonomia estiver prejudicada por redução de discernimento, que não constitua deficiência, enquanto perdurar esse estado”.
Para a formalização do ato, o solicitante e os apoiadores devem apresentar requerimento em que constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito a` vontade, aos direitos e interesses da pessoa que devam apoiar (proposta de § 1.º do art. 1.783-A). A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos quanto a terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado, premissa que traz a presunção de boa-fé, como propôs a Subcomissão de Direito de Família, em boa hora e de modo a favorecer o tráfego jurídico (§ 2.º). No mesmo sentido de se proteger o tráfego negocial, o novo § 3.º do art. 1.783-A enunciará que “terceiros com quem a pessoa apoiada mantenha relação negocial ou pessoal podem solicitar que os apoiadores contra-assinem contratos ou acordos especificando, por escrito, sua função com relação ao apoiado”.
De forma sucessiva, são revogados expressamente os §§ 4.º a 11 do atual art. 1.783, para que, reitere-se, o tratamento do instituto fique mais claro, didático e objetivo, prevendo-se parte de seu conteúdo, mas com melhoramentos e acréscimos necessários, nos dispositivos seguintes.
No que diz respeito à tomada de decisão apoiada extrajudicial, ela passará a ser tratada expressamente no novo art. 1.783-B, ao lado da modalidade judicial, em seus quatro parágrafos. Nesse contexto, “a tomada de decisão apoiada poderá ser requerida diretamente no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais ou judicialmente” (caput). A via extrajudicial é, portanto, facultativa, e não obrigatória. Será ela pedida pela pessoa a ser apoiada, judicial ou extrajudicialmente, com a indicação expressa das pessoas aptas a prestarem o apoio (§ 1.º).
Do procedimento extrajudicial ou judicial de tomada de decisão apoiada participará o Ministério Público, que verificará a adequação do pedido aos requisitos legais (§ 2.º). Antes de se pronunciar sobre o pedido de tomada de decisão apoiada, o juiz ou o registrador civil, assistido por equipe multidisciplinar e após oitiva do Ministério Público, ouvirá pessoalmente o requerente e as pessoas que lhe prestarão apoio (§ 3.º do novo art. 1.783-B do CC).
Como já destacado por mim em outros textos, o projeto de reforma do Código Civil, em várias de suas propostas, traz a atuação do Ministério Público nos Cartórios, assim como se dá em outros países, como Portugal. Em caso de dúvidas sobre a viabilidade da tomada de decisão apoiada, o oficial do Cartório de Registro Civil poderá negar seguir com o procedimento extrajudicial, remetendo as partes para o âmbito judicial (§ 4.º do art. 1.783-B).
No que diz respeito à eventual má atuação do apoiador, nos termos do novel art. 1.783-C da codificação privada, se ele “agir com negligência, exercer pressão indevida sobre o apoiado ou não adimplir as obrigações assumidas, poderá a pessoa apoiada ou qualquer interessado levar o fato ao Ministério Público ou ao juiz”. Se comprovados os fatos narrados, o juiz destituirá o apoiador e nomeará outra pessoa para prestação de apoio, após ouvidos a pessoa apoiada e o Ministério Público (§ 1.º). Em caso de negócio jurídico que possa trazer à pessoa apoiada risco ou prejuízo relevante, havendo divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos apoiadores, deverá o juiz, ouvido o Ministério Público, decidir sobre a questão (§ 2.º).
Sobre a revogação ou resilição unilateral da tomada de decisão apoiada, de forma unilateral e sem motivação, o projetado art. 1.783-D preceitua que “a pessoa com deficiência pode, a qualquer tempo, revogar a tomada de decisão apoiada, independentemente do consentimento dos seus apoiadores, mediante simples requerimento ao Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais ou ao juiz, preservados os efeitos jurídicos já produzidos”. Como outro lado da moeda, o parágrafo único desse comando preverá que “os apoiadores podem também, a qualquer tempo, renunciar à incumbência para a qual foram designados”. Como se percebe, um modelo contratual de resilição unilateral para o instituto, favorável às duas partes, similar ao do mandato.
Seguindo no estudo das proposições, assim como se dá com a curatela, inclui-se proposta segundo a qual a tomada de decisão apoiada também pode estar relacionada a atos existenciais, além dos patrimoniais. Como se retira da proposta de novo art. 1.783-E, “o procedimento de tomada de decisão apoiada pode ser utilizado pelas pessoas relativamente incapazes, referidas no inc. II do art. 4.º do Código Civil, quando ela tiver de decidir-se sobre os atos de cunho existencial de sua vida civil”. A eleição de pessoas para tomada de decisão apoiada nesses casos não prejudica a atuação do curador para os atos de cunho patrimonial da vida civil do curatelado (§ 1.º). Em suma, será possível a convivência e a concomitância dos dois institutos na mesma situação concreta: uma tomada de decisão apoiada para os atos existenciais e uma curatela – sempre com caráter excepcional – para os atos patrimoniais. Sem dúvida, trata-se de proposta que igualmente funcionaliza os institutos, em prol da proteção e da tutela da pessoa humana.
Como última sugestão formulada pela Comissão de Juristas a respeito desse instituto, o § 2.º do novo art. 1.783-E preverá, para trazer mais certeza quanto ao tema, que, “para a celebração de casamento das pessoas mencionadas no caput deste artigo, a tomada de decisão apoiada será realizada perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais no procedimento anterior ao casamento, desde que o ato nupcial se inclua no termo em que constem os limites do apoio a ser oferecido”. Segue-se, portanto, a premissa de que a tomada de decisão apoiada pode ser utilizada para o ato existencial da celebração do casamento, mais uma vez funcionalizando o instituto, muito além do que hoje está expressamente previsto na lei.
Como se pode notar por este texto, todas as propostas são mais do que necessárias, para afastar dúvidas hoje existentes sobre a categoria, tornando-a muito mais viável na prática do Direito Civil. Espera-se, portanto, a sua aprovação integral pelo Congresso Nacional.
CLIQUE E CONHEÇA O LIVRO DO AUTOR

LEIA TAMBÉM