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Polêmicas atuais sobre o contrato de comodato e a reforma do CC

Flávio Tartuce
04/08/2025
O contrato de empréstimo pode ser conceituado como o negócio jurídico pelo qual uma pessoa entrega uma coisa a outra, de forma gratuita, obrigando-se esta a devolver a coisa emprestada ou outra de mesma espécie e quantidade. O negócio em questão é um exemplo claro de contrato unilateral e gratuito, abrangendo duas espécies: a) o comodato, empréstimo de bem infungível e inconsumível, em que a coisa emprestada deverá ser restituída findo o contrato (empréstimo de uso); e b) o mútuo, empréstimo de bem fungível e consumível, em que a coisa é consumida e desaparece, devendo ser devolvida outra de mesma espécie e quantidade (empréstimo de consumo).
Os dois contratos de empréstimo, além de serem unilaterais e gratuitos ou benéficos, em regra, são ainda negócios comutativos, informais e reais. A última característica decorre do fato de que esses contratos têm aperfeiçoamento com a entrega da coisa emprestada (tradição ou traditio). Isso desloca a tradição do plano da eficácia para o plano da validade do negócio jurídico em questão.
Como já se adiantou, o objeto principal deste texto, o comodato, é um contrato unilateral, benéfico e gratuito em que alguém entrega a outra pessoa uma coisa infungível, para ser utilizada por um determinado tempo e devolvida findo o contrato. Justamente por isso, fala-se em empréstimo de uso, e, por razões óbvias, o contrato pode ter como objeto bens móveis ou imóveis, pois ambos podem ser infungíveis ou insubstituíveis.
A parte que empresta a coisa é denominada comodante, enquanto a que recebe é o comodatário. O contrato é intuitu personae, baseado na fidúcia, na confiança do comodante em relação ao comodatário. Não exige sequer forma escrita, sendo contrato não solene e informal.
Um dos dispositivos mais importantes na codificação privada em vigor a respeito do comodato é o seu art. 582, que atualmente tem a seguinte dicção: “o comodatário é obrigado a conservar, como se sua própria fora, a coisa emprestada, não podendo usá-la senão de acordo com o contrato ou a natureza dela, sob pena de responder por perdas e danos. O comodatário constituído em mora, além de por ela responder, pagará, até restituí-la, o aluguel da coisa que for arbitrado pelo comodante”. O preceito consagra deveres do comodatário e consequências advindas da sua violação.
Nesse contexto, a parte final do art. 582 do CC consagra penalidades nos casos em que o bem não é devolvido pelo comodatário, pois o comodatário constituído em mora persona, além de responder pela coisa emprestada, pagará, até restituí-la, o aluguel que for arbitrado pelo comodante. As consequências da mora do devedor estão previstas no art. 399 da própria codificação privada, respondendo o comodatário no caso em questão por caso fortuito e força maior, a não ser que prove a ausência de culpa ou que a perda do objeto do contrato ocorreria mesmo se não estivesse em atraso.
Essas penalidades são bem delineadas pela jurisprudência, podendo ser citado e ilustrado importante acórdão do Superior Tribunal de Justiça do ano de 2022. O caso disse respeito a condomínio comum e comodato, sendo a sua tese principal a seguinte: “o condômino privado da posse do imóvel tem direito ao recebimento de indenização equivalente aos aluguéis proporcionais ao seu quinhão, dos proprietários que permaneceram na posse exclusiva do bem, os quais, caso não notificados extrajudicialmente, podem ser constituídos em mora por meio da citação nos autos da ação de arbitramento dos aluguéis”. Vejamos trecho da sua ementa, que trata de hipótese de condomínio decorrente de casamento:
“[…]. Quanto ao dever de pagar aluguéis aos comodatários, a jurisprudência do STJ orienta que ‘se houve prévia estipulação do prazo do comodato, o advento do termo previsto implica, de imediato, no dever do comodatário de proceder à restituição da coisa. Não o fazendo, incorrerá o comodatário automaticamente em mora (mora ex re). Sua posse sobre o bem, anteriormente justa em razão da relação jurídica obrigacional, converte-se em injusta e caracteriza esbulho possessório. […] De outro turno, na ausência de ajuste acerca do prazo, o comodante, após o decurso de tempo razoável para a utilização da coisa, poderá promover a resilição unilateral do contrato e requerer a restituição do bem, constituindo o comodatário em mora mediante interpelação, judicial ou extrajudicial, na forma do art. 397, parágrafo único, do CC/02 (mora ex persona). O esbulho possessório se caracterizará se o comodatário, devidamente cientificado da vontade do comodante, não promover a restituição do bem emprestado. […] O comodatário constituído em mora, seja de forma automática no vencimento ou mediante interpelação, está submetido a dupla sanção, conforme prevê o art. 582, segunda parte, do CC. Por um lado, recairá sobre ele a responsabilidade irrestrita pelos riscos da deterioração ou perecimento do bem emprestado, ainda que decorrente de caso fortuito ou de força maior. Por outro, deverá o comodatário pagar, até a data da efetiva restituição, aluguel pela posse injusta da coisa, conforme arbitrado pelo comodante’ (REsp 1.662.045/RS, Relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12/9/2017, DJe 14/9/2017). […]. E ainda, ‘o pagamento de aluguéis não envolve discussão acerca da licitude ou ilicitude da conduta do ocupante. O ressarcimento é devido por força da determinação legal segundo a qual a ninguém é dado enriquecer sem causa à custa de outrem, usufruindo de bem alheio sem contraprestação’ (REsp 1.613.613/RJ, Relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 12/6/2018, DJe 18/6/2018). Portanto, na linha dos precedentes antes citados, cessado o comodato, por meio de notificação judicial ou extrajudicial, o condômino privado da posse do imóvel tem direito ao recebimento de indenização equivalente aos aluguéis proporcionais ao seu quinhão, devida pelos proprietários e comodatários que permaneceram na posse exclusiva do bem, medida necessária para evitar o enriquecimento sem causa da parte que usufrui da coisa. Sobre a forma de constituição em mora do comodatário e quanto ao termo inicial de apuração do pagamento, o entendimento desta Corte Superior, em se tratando de ‘comodato precário – isto é, sem termo certo – […] a constituição do devedor em mora reclamará, no caso, a prévia notificação judicial ou extrajudicial (mora ex persona), com a estipulação de prazo razoável para a restituição da coisa, cuja inobservância implicará a caracterização do esbulho autorizador do interdito possessório’ (REsp 1.327.627/RS, Relator ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25/10/2016, DJe 1º/12/2016). No entanto, ‘nos termos da jurisprudência desta Corte, a citação pode ser admitida como sucedâneo da interpelação para fins de constituição do devedor em mora’ (AgRg no AREsp 652.630/SC, Relator ministro Moura Ribeiro, Terceira turma, DJe 06/11/2015). Nesse contexto, em relação ao termo inicial do arbitramento dos aluguéis, no comodato precário, em regra, ‘o marco temporal para o cômputo do período a ser indenizado […] é a data da citação para a ação judicial de arbitramento de aluguéis, ocasião em que se configura a extinção do comodato gratuito que antes vigorava’ (REsp 1.375.271/SP, Relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira turma, julgado em 21/09/2017, DJe 02/10/2017)” (STJ, REsp 1.953.347/SP, 4.ª turma, Rel. min. Antonio Carlos Ferreira, por unanimidade, j. 9/8/2022).
Como se pode perceber, são citados na decisão outros importantes precedentes superiores a respeito do contrato em estudo, e que servem como orientação para a sua aplicação na prática.
Exatamente como se retira dos acórdãos superiores, em relação ao aluguel fixado pelo comodante, geralmente quando da notificação efetivada por ele quanto ao comodatário, tem ele caráter de penalidade, não sendo o caso de se falar em conversão do comodato em locação. Referente à fixação desse aluguel-pena, prevê o enunciado 180, aprovado na III Jornada de Direito Civil, que “a regra do parágrafo único do art. 575 do novo CC, que autoriza a limitação pelo juiz do aluguel arbitrado pelo locador, aplica-se também ao aluguel arbitrado pelo comodante, autorizado pelo art. 585, 2.ª parte, do novo CC”.
Pelo teor do enunciado, portanto, será facultado ao juiz reduzir o aluguel arbitrado pelo comodante se ele for excessivo, a exemplo do que ocorre com a locação regida pelo CC. Correto julgado do STJ, do ano de 2012, estabeleceu muito bem tal correlação, deduzindo o seguinte:
“[…]. A natureza desse aluguel é de uma autêntica pena privada, e não de indenização pela ocupação indevida do imóvel emprestado. O objetivo central do aluguel não é transmudar o comodato em contrato de locação, mas sim coagir o comodatário a restituir o mais rapidamente possível a coisa emprestada, que indevidamente não foi devolvida no prazo legal. O arbitramento do aluguel-pena não pode ser feito de forma abusiva, devendo respeito aos princípios da boa-fé objetiva (art. 422/CC), da vedação ao enriquecimento sem causa e do repúdio ao abuso de direito (art. 187/CC). Havendo arbitramento em valor exagerado, poderá ser objeto de controle judicial, com eventual aplicação analógica da regra do parágrafo único do art. 575 do CC, que, no aluguel-pena fixado pelo locador, confere ao juiz a faculdade de redução quando o valor arbitrado se mostre manifestamente excessivo ou abusivo. Para não se caracterizar como abusivo, o montante do aluguel-pena não pode ser superior ao dobro da média do mercado, considerando que não deve servir de meio para o enriquecimento injustificado do comodante” (STJ, REsp 1.175.848/PR, Rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 18/9/2012, publicado no seu Informativo 504).
Como se observa, há total sintonia entre o entendimento jurisprudencial exposto e a posição majoritária da doutrina, consubstanciada no citado enunciado, aprovado na III Jornada de Direito Civil, em 2004, por proposição do próprio ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que foi o relator do último acórdão e teve participação ativa em várias Jornadas de Direito Civil.
No que diz respeito à primeira parte do art. 582 do CC, traz ele a regra pela qual o comodatário deve conservar a coisa emprestada como se sua fosse. O comodatário não pode, ainda, usá-la em desacordo com o que prevê o contrato ou a própria natureza da coisa, sob pena de responder, de forma integral, pelas perdas e danos que o caso concreto indicar. O dispositivo impõe ao comodatário as obrigações de guardar e conservar a coisa, uma verdadeira obrigação de fazer, bem como a obrigação de não desviar o uso da coisa, uma obrigação de não fazer.
Em continuidade de análise do tema, desse dispositivo retira-se a conclusão segundo a qual o comodatário deve arcar com as despesas de conservação da coisa, caso dos impostos que sobre ela recaem e do IPTU relativo ao imóvel emprestado. Nessa linha, tem-se julgado, de forma correta, que “é dever do comodatário arcar com as despesas decorrentes do uso e gozo da coisa emprestada, assim como conservar o bem como se seu fosse, não implicando a referida responsabilidade em enriquecimento ilícito do comodante” (STJ, Ag. Int. no AREsp 1.657.468/SP, 4.ª turma, Rel. min. João Otávio de Noronha, j. 21/8/2023, DJe 23/8/2023).
O desrespeito a esses deveres, além de gerar a imputação das perdas e danos, poderá motivar a rescisão contratual por inexecução voluntária do contrato, ou seja, a resolução por inadimplemento. A obrigação do comodatário é cumulativa ou conjuntiva, pois o desrespeito a qualquer um desses deveres é motivo suficiente para a resolução contratual.
Como se pode notar, muitas são as consequências jurídicas que constam do conteúdo do art. 582 da Lei Geral Privada, havendo proposta no Projeto de Reforma do Código Civil elaborada pela Comissão de Juristas para que ele fique mais bem organizado, com dois novos parágrafos.
Nesse contexto, de seu necessário aperfeiçoamento, o seu caput passará a prever que “o comodatário é obrigado a conservar, como se sua própria fora, a coisa emprestada, não podendo usá-la senão de acordo com o contrato ou a natureza dela, sob pena de responder por perdas e danos”. A previsão a respeito da constituição em mora ex persona passará a integrar o § 1º do preceito, mencionando-se expressamente o “aluguel-pena”, na linha da doutrina e da jurisprudência aqui antes expostas: “o comodatário constituído em mora, além de por ela responder, pagará, até restituí-la, o aluguel-pena pelo uso da coisa que for arbitrado pelo comodante”.
Por fim, o § 2º do art. 582 do CC preverá, em consonância com o enunciado 180, da III Jornada de Direito Civil e em sua correta leitura, que, “se o aluguel-pena arbitrado unilateralmente pelo comodante for manifestamente excessivo, deverá o julgador reduzi-lo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio, bem como o seu caráter de penalidade”.
Além da melhora de redação, como se pode perceber, coloca-se no texto da lei o entendimento hoje considerado majoritário, por doutrina e jurisprudência nacionais, trazendo maior segurança jurídica e estabilidade para as relações privadas, uma das linhas seguidas pelo PL do CC.
Com outro tema relevante para o comodato, e ressaltando o caráter gratuito do contrato, o comodatário não poderá, em hipótese alguma, recobrar do comodante as despesas feitas com o uso e o gozo da coisa emprestada, como está hoje expresso no art. 584 do CC. Em relação a tal comando há enorme polêmica a respeito das benfeitorias.
Por ser o comodatário possuidor de boa-fé – diante da existência de um justo título (art. 1.201, parágrafo único, do CC/2002) -, em regra, terá direito à indenização e direito de retenção pelas benfeitorias necessárias e úteis, conforme o art. 1.219 do próprio CC. Além disso, poderá levantar as benfeitorias voluptuárias, se isso não danificar o bem. Contudo, podem as partes, em contrato paritário, prever o contrário, sendo perfeitamente válida a cláusula nesse sentido em tais contratos plenamente discutidos. De toda a sorte, há julgados que apontam que o comodatário não tem direito a ser indenizado por tais benfeitorias, pela norma do art. 584 da codificação privada, a saber:
“Reintegração de posse. Comodato verbal. Imóvel utilizado para exercício de atividade empresarial. Benfeitorias realizadas em proveito do comodatário, cuja finalidade era adequar o imóvel a atividade exercida. Inexistência do dever de indenizar. Desnecessidade de prova pericial. Inteligência do artigo 584 do Código Civil. Manutenção da sentença. Desprovimento do apelo” (TJ/RJ, Apelação 2009.001.16394, 1.ª Câmara Cível, Rel. des. Vera Maria Soares Van Hombeeck, j. 14.04.2009, DORJ 27/4/2009, p. 116).
“Contrato. Comodante. Imóvel. Pretensão a indenização por benfeitorias. Inadmissibilidade, mesmo em face da revelia dos réus, que apresentaram contestação e reconvenção intempestivas. Inteligência do disposto no art. 584 do CC” (TJ/SP, Apelação Cível 7276634-2, Acórdão 3590228, 14.ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, Rel. des. José Tarcisio Beraldo, j. 25/3/2009, DJE/SP 2/6/2009).
Entretanto, a questão não é pacífica na própria jurisprudência, havendo julgados que reconhecem a possibilidade de indenização pelas benfeitorias necessárias e úteis no comodato (nesse sentido, ver: TJ/SP, Agravo de Instrumento 7301347-5, Acórdão 3628632, 20.ª Câmara de Direito Privado, Mogi Mirim, Rel. des. Cunha Garcia, j. 09.03.2009, DJE/SP 9/6/2009; TJ/MG, Apelação Cível 1.0514.07.024211-0/0011, 16.ª Câmara Cível, Pitangui, Rel. des. Nicolau Masselli, j. 22/4/2009, DJE/MG 5/6/2009).
Estou há tempos filiado aos últimos julgados, mais condizentes com a proteção do possuidor de boa-fé. Em suma, o art. 1.219 do CC prevalece sobre o art. 584 da codificação privada, diante da própria principiologia adotada pela norma geral privada, sobretudo pela eticidade e contínua valorização da boa-fé.
Com o fim de resolver mais um dilema prático, o PL do CC pretende inserir um parágrafo único no seu art. 584, adotando a última solução, com o seguinte texto: “o comodatário não tem direito a indenização por benfeitorias realizadas sem o expresso consentimento do comodante, salvo as que forem necessárias”. Aguarda-se, portanto, a sua aprovação pelo Parlamento brasileiro, novamente para resolver pendência que existe na teoria e na prática.
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