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Os Planos do Mundo Jurídico

CIDADÃO DO ESTADO DE ALAGOAS

MUNDO JURÍDICO

TRATADO DE DIREITO PRIVADO

Flávio Tartuce

Flávio Tartuce

08/08/2018

Por Zeno Veloso*

Em aulas, palestras, invariavelmente, cito e enalteço o genial jurisconsulto Pontes de Miranda. Tanto tenho me referido à obra inesgotável deste mestre insuperável, escrito sobre as suas teses e publicado um livro em que destaquei sua vida venturosa e sua obra majestosa (comparando-a com a de nosso  sumo civilista, Teixeira de Freitas), que, por iniciativa do deputado Paulão, do PT, e decisão unânime da Assembleia Legislativa, recebi o título honorífico de ‘‘Cidadão do Estado de Alagoas’’.

Advirto, sempre, que, na vida dos negócios jurídicos há três aspectos a considerar: existência, validade e eficácia. Em meu livro, ‘‘Invalidade do Negócio Jurídico – Nulidade e Anulabilidade’’ (Belo Horizonte: Del Rey, 2ª ed., 2005, nº 13, pág. 26), repeti a advertência que tenho feito, há tanto tempo, em toda parte: confundir esses três planos do mundo jurídico, que se interpenetram, mas são distintos, causa erros irremediáveis, O tema é profundo, extenso, complexo, mas atendendo a alguns pedidos, resolvi descrevê-lo numa simples coluna, como esta.

No monumental ‘‘Tratado de Direito Privado’’ (que tem 60 volumes!), Pontes de Miranda abordou o assunto com a habitual profundidade e maestria (Tomo IV, § 359, pág. 15): ‘‘Existir, valer e ser eficaz são conceitos tão inconfundíveis que o fato jurídico pode ser, valer e não ser eficaz, ou ser, não valer e ser eficaz. As próprias normas jurídicas podem ser, valer e não ter eficácia (H. Kelsen, Hauptproblem, 14). O que se não pode dar é valer e ser eficaz, sem ser, porque não há validade, ou eficácia do que não é’’.

Outro mestre alagoano, Marcos Bernardes de Mello – claro, eminente discípulo de Pontes -, no livro ‘‘Teoria do Fato Jurídico: plano da validade’’ (São Paulo: Saraiva, 7ª ed., § 5º, pág. 13), expõe: ‘‘Ser válido, ou inválido, e ser eficaz, ou ineficaz, são qualificações distintas atribuídas ao fato jurídico pelas normas jurídicas. O existir ( = ser fato jurídico ) constitui, portanto, pressuposto essencial da validade, ou invalidade, e da eficácia, ou ineficácia, do  fato jurídico, donde implicar uma ‘‘contradictio in adiecto’’ (contradição nas coisas adjuntas, = nos adjetivos, = em seus qualificantes) dizer-se, por exemplo, que o fato jurídico nulo, ou o ineficaz, é inexistente, porque somente o que existe pode ser qualificado’’.

Paulo Lôbo, alagoano, e também ‘‘ponteano’’ (seguidor e aluno de Pontes Miranda), analisa a questão em ‘‘Direito Civil – Parte Geral’’ (São Paulo: Saraiva, 3ª ed., 2012, nº 8.3, pág. 214), explicando que o fato jurídico deve percorrer os três planos do mundo do direito, ou ao menos o da existência e o  da eficácia, para que possa produzir todos os efeitos que o direito lhe atribuiu: ‘‘As vezes, o fato  jurídico apenas consegue ingressar no plano da existência, porque o suporte fático se concretizou, mas esbarra no plano da validade, o que lhe impede de alcançar a eficácia. Às vezes, o fato jurídico existe, é válido, mas alguma circunstância corta-lhe a eficácia’’. Posso dar como exemplo deste último caso um contrato de doação celebrado em fevereiro de 2018 submetido a uma condição suspensiva: ‘‘João será dono do bem doado se a seleção do Brasil for campeã do mundo, em julho, na Rússia’’. Como o fato futuro não aconteceu, frustrou-se o negócio, a doação – embora existente e válida – ficou sem efeito (cf. art. 125 do Código Civil).

Numa breve síntese: o negócio jurídico existe quando incidiu uma norma jurídica sobre o seu suporte fático. Se atendidos requisitos mínimos, como a atuação de um agente, que exterioriza a vontade, o objeto e a forma, ocorre o ingresso no mundo jurídico – plano da existência, independentemente de ser valido, ou eficaz. Existe, simplesmente.

Para ser, entretanto, válido, o negócio tem de observar algumas adjetivações ou qualificações: as partes ou agentes precisam ser capazes, exprimir sua vontade consciente e livremente, o objeto tem de ser lícito, possível, determinado ou determinável, e a forma deve ser prescrita ou não defesa em lei (cf. Código Civil, art. 104). Note-se: só pode ser considerado válido ou inválido o que já existe.

Num livro clássico – que Orosimbo Nonato chamaria ‘‘um livro de flor’’ -, cuja leitura é absolutamente necessária, meu saudoso mestre Miguel Reale (Lições Preliminares de Direito, 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1977, pág. 205) enuncia que não se pode confundir a inexistência, – que é um vicio antes natural ou fático, devido à falta de elementos constitutivos, – com a nulidade, que resulta de não-correspondência dos elementos existentes com as exigências prefiguradas em lei, e conclui magistralmente, com a simplicidade de quem está dando uma aula na Faculdade de Direito: o ato inexistente, na realidade, carece de algum elemento constitutivo, permanecendo juridicamente embrionário, ainda em formação, devendo ser declarada a sua não- significação jurídica, se alguém o invocar como base de uma pretensão. ‘‘Os atos nulos ou anuláveis, ao contrário, já reúnem todos os elementos constitutivos, mas de maneira aparente ou inidônea a produzir efeitos válidos, em virtude de vícios inerentes a um ou mais dos seus elementos constitutivos’’.

Finalmente, quando produz consequências jurídicas com relação a partes e a terceiros, o negócio jurídico entra no plano da eficácia. A produção de efeitos é a destinação natural e essencial de um negócio jurídico.

Se for inválido, em regra, o negócio não produz efeitos. Mas o ato anulável é inválido e, não obstante, irradia efeitos, enquanto não for anulado. O negócio nulo, em regra, não produz efeitos, não entra no plano da eficácia, e os romanos, em sua imensa sabedoria jurídica, já proclamavam: quod nullum est, nullum produciteffectum (= o que é nulo nenhum efeito produz). Há negócios existentes e válidos que ainda não produzem efeito, como o testamento, que só entra no plano da eficácia com a morte do testador. E pode até acontecer de não produzir jamais efeito, se o testador, antes de morrer, revogar o testamento.

Apresentei, aqui, algumas noções gerais, brevíssimas, preliminares, com o intuíto de, pelo menos, despertar a curiosidade, incentivar o leitor a estudar, pesquisar mais, aprofundar o tema, que é extenso, envolvente. O mundo do direito cativa e fascina. Quem não se apaixona por ele não consegue compreendê-lo. Nem amá-lo.


*Zeno Veloso é Doutor Honoris Causa pela UNAMA. Professor da UNAMA e da UFPA. Tabelião. Fundador e Diretor Nacional do IBDFAM


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