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O Princípio da Afetividade no Direito de Família

ABANDONO AFETIVO

AFETIVIDADE

AFETO

ÂMBITO FAMILIAR

AMOR

CONVIVÊNCIA

DESBIOLOGIZAÇÃO

DIREITO DE FAMILIA

ENTIDADE FAMILIAR

MULTIPARENTALIDADE

PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA

RELAÇÕES FAMILIARES

UNIÃO ESTÁVEL

UNIÃO HOMOAFETIVA

VALOR JURÍDICO

Flávio Tartuce

Flávio Tartuce

12/12/2014

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Tornou-se comum, na doutrina contemporânea, afirmar que o afeto tem valor jurídico ou, mais do que isso, foi alçado à condição de verdadeiro princípio geral. Como bem pondera a juspsicanalista Giselle Câmara Groeninga, “O papel dado à subjetividade e à afetividade tem sido crescente no Direito de Família, que não mais pode excluir de suas considerações a qualidade dos vínculos existentes entre os membros de uma família, de forma que possa buscar a necessária objetividade na subjetividade inerente às relações. Cada vez mais se dá importância ao afeto nas considerações das relações familiares; aliás, um outro princípio do Direito de Família é o da afetividade”.[1]

De início, para os devidos fins de delimitação conceitual, deve ficar claro que o afeto não se confunde necessariamente com o amor. Afeto quer dizer interação ou ligação entre pessoas, podendo ter carga positiva ou negativa. O afeto positivo, por excelência, é o amor; o negativo é o ódio. Obviamente, ambas as cargas estão presentes nas relações familiares.

Pois bem, apesar de algumas críticas contundentes e de polêmicas levantadas por alguns juristas, não resta a menor dúvida de que a afetividade constitui um princípio jurídico aplicado ao âmbito familiar. Conforme bem aponta Ricardo Lucas Calderon, em sua dissertação de mestrado defendida na UFPR, “parece possível sustentar que o Direito deve laborar com a afetividade e que sua atual consistência indica que se constitui em princípio no sistema jurídico brasileiro. A solidificação da afetividade nas relações sociais é forte indicativo de que a análise jurídica não pode restar alheia a este relevante aspecto dos relacionamentos. A afetividade é um dos princípios do direito de família brasileiro, implícito na Constituição, explícito e implícito no Código Civil e nas diversas outras regras do ordenamento”.[2]

Dessa forma, apesar da falta de sua previsão expressa na legislação, percebe-se que a sensibilidade dos juristas é capaz de demonstrar que a afetividade é um princípio do nosso sistema. Como é cediço, os princípios jurídicos são concebidos como abstrações realizadas pelos intérpretes, a partir das normas, dos costumes, da doutrina, da jurisprudência e de aspectos políticos, econômicos e sociais. Na linha do exposto por José de Oliveira Ascensão, os princípios são como “grandes orientações que se depreendem, não apenas do complexo legal, mas de toda a ordem jurídica”.[3] Eles estruturam o ordenamento, gerando consequências concretas, por sua marcante função para a sociedade. E não restam dúvidas que a afetividade constitui um código forte no Direito Contemporâneo, gerando alterações profundas na forma de se pensar a família brasileira. Vejamos três consequências pontuais, perceptíveis nos últimos anos.

De início, como primeira consequência, a afetividade contribuiu para o reconhecimento jurídico da união homoafetiva, expressão cunhada por Maria Berenice Dias, como entidade familiar. Após um longo trajeto -, que se iniciou pela negação absoluta de direitos, passou pelo tratamento como sociedade de fato e chegou ao enquadramento como família -, o Direito Brasileiro passou a tratar a união entre pessoas do mesmo sexo como comunidade equiparada à união estável. A culminância de tal conclusão se deu com a histórica decisão do STF de 5 de maio de 2011, publicada no seu Informativo n. 625.

Uma segunda consequência a ser pontuada é a admissão da reparação por danos em decorrência do abandono afetivo. Em decisão anterior, o STJ acabou por concluir que não caberia indenização a favor do filho em face do pai que o abandona moralmente (STJ, REsp 757.411/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, Quarta Turma, julgado em 29/11/2005, DJ 27/03/2006, p. 299). Sustentou-se que não haveria qualquer ato ilícito na conduta do pai que abandona afetivamente o filho, pois o afeto não pode ser imposto na referida relação parental, não sendo o caso da existência de um dever jurídico de convivência.

Demonstrando evolução quanto ao tema, surgiu mais recente decisão do próprio STJ em revisão à ementa anterior, ou seja, admitindo a reparação civil pelo abandono afetivo (STJ, REsp 1.159.242/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012).Em sua relatoria, a Min. Nancy Andrighi ressaltou que o dano moral estaria presente diante de uma obrigação inescapável dos pais em dar auxílio psicológico aos filhos. Aplicando a ideia do cuidado como valor jurídico, a magistrada deduziu pela presença do ilícito e da culpa do pai pelo abandono afetivo, expondo frase que passou a ser repetida nos meios sociais e jurídicos: “amar é faculdade, cuidar é dever”. Apesar do voto contrário do Min. Massami Ueda, na linha do julgado antecedente, a relatoria foi seguida pelos Ministros Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino.

Essa nova decisão, a qual se filia, demonstra um profundo impacto do reconhecimento do afeto como verdadeiro princípio da nossa ordem. Partindo-se para a análise técnica da questão, pontue-se que o dever de convivência dos pais em relação aos filhos menores é expresso pelo art. 229 da CF/1988 e pelo art. 1.634, incs. I e II do CC/2002. Se a violação desse dever – que se contrapõe a um direito subjetivo equivalente -, causar dano, estarão presentes os requisitos do ato ilícito civil (art. 186 do CC/2002).

A terceira e última consequência da afetividade a ser pontuada é o reconhecimento da parentalidade socioafetiva como nova forma de parentesco, enquadrada na cláusula geral “outra origem”, do art. 1.593 do CC/2002. Não se olvide que a ideia surgiu a partir de histórico artigo de João Baptista Villela, publicado em 1979, tratando da “desbiologização da paternidade”. Concluiu o jurista, na ocasião, que o vínculo de parentalidade é mais do que um dado biológico, é um dado cultural, consagração técnica da máxima popular pai é quem cria. Paulatinamente, a jurisprudência passou a ponderar que a posse de estado de filho deve ser levada em conta para a determinação do vínculo filial, ao lado das verdades registral e biológica. Nos acórdãos mais notórios, julgou-se como indissolúvel o vínculo filial formado nos casos de reconhecimento espontâneo de filho alheio, cumulado com a convivência posterior entre pais e filhos (por todos: STJ, REsp 234.833/MG, Rel. Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, QUARTA TURMA, julgado em 25/09/2007, DJ 22/10/2007, p. 276; REsp 709.608/MS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 05/11/2009, DJe 23/11/2009 e REsp 1.259.460/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/06/2012, DJe 29/06/2012).

Atente-se que parte da doutrina e da jurisprudência nacionais entende ser possível o reconhecimento da multiparentalidade, o que conta com o apoio deste articulista.[4]O que se tem visto na jurisprudência até aqui é uma escolha de Sofia, entre o vínculo biológico e o socioafetivo, o que não pode prosperar em muitas situações fáticas. Como interroga a doutrina consultada, por que não seria possível ter a pessoa dois pais ou duas mães no registro civil, para todos os fins jurídicos, inclusive familiares e sucessórios? Reconhecendo tais premissas, a inédita sentença prolatada pela juíza Deisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz, da Comarca de Ariquemes, Rondônia, determinando o duplo registro da criança, em nome do pai biológico e do pai socioafetivo, diante de pedido de ambos para o reconhecimento da multiparentalidade. Na mesma linha, o também novel acórdão do Tribunal de São Paulo, que determinou o registro de madrasta como mãe civil de enteado, mantendo-se a mãe biológica, que havia falecido quando do parto (TJSP, Apelação nº  0006422-26.2011.8.26.0286, 1ª Câmara de Direito Privado, Itu, Relator: Des. Alcides Leopoldo e Silva Junior, julgado em 14 de agosto de 2012).[5]

Outras decisões devem surgir, sendo a multiparentalidade um caminho sem volta do Direito de Família Contemporâneo, consolidando ainda mais a afetividade como verdadeiro princípio jurídico do sistema nacional.


[1] GROENINGA, Giselle Câmara. Direito Civil. Volume 7. Direito de Família. Orientação: Giselda M. F Novaes Hironaka. Coordenação: Aguida Arruda Barbosa e Cláudia Stein Vieira. São Paulo: RT, 2008, p. 28.
[2] CALDERON, Ricardo Lucas. O percurso construtivo do princípio da afetividade no Direito de Família Brasileiro contemporâneo: contexto e efeitos. Disponível em http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/26808/dissertacao%20FINAL%2018-11-2011%20pdf.pdf?sequence=1. Acesso em 23 de setembro de 2012.
[3] ASCENSÃO, José de Oliveira. Introdução à ciência do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 3ª Edição, 2005, p. 404.
[4] Ver: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. Multiparentalidade como efeito da socioafetivade nas famílias recompostas. In O Direito das Famílias entra a norma e a realidade. São Paulo: Atlas, 2010, p. 190-218; ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JR., Walsir Edson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 381-383; BUNAZAR, Maurício.  Pelas portas de Villela: um ensaio sobre a pluriparentalidade como realidade sociojurídica. Revista IOB de Direito de Família n. 59, abril-maio de 2010, p. 63-73.
[5] As decisões estão disponíveis no site deste autor: www.flaviotartuce.adv.br. Seção Jurisprudência.
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