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“O Poder Judiciário não sabe lidar com internet” | Dificuldades em torno do Marco Civil da Internet

Victor Hugo Pereira Gonçalves

Victor Hugo Pereira Gonçalves

17/11/2016

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O advogado Victor Hugo Pereira Gonçalves fez do Direito Digital o seu território há muitos anos, sendo hoje um dos expoentes em um ramo ainda visto com certo distanciamento pela maior parte dos operadores do Direito.

Recentemente ele lançou o livro “Marco Civil da Internet Comentado” em que trata de diversos aspectos do Marco Civil de uma forma simples, mas bem analítica.

Agora, com aproximadamente dois anos e meio de vida, já é possível avaliar qual foi o impacto da Lei 12.965/94 na vida dos brasileiros e também do Poder Judiciário.

Bloqueios no Whatsapp, remoção de conteúdo, pouca jurisprudência específica e um relativo desconhecimento do que é o Direito Digital marcam este período na visão de nosso entrevista.

Confiram:

Análise Jurídica – O Marco Civil da Internet já tem mais de dois anos. Quais foram os impactos produzidos no dia-a-dia das pessoas após sua vigência?

Victor Hugo – O Marco Civil, infelizmente, pouco alterou a vida das pessoas e das empresas no dia a dia. Todas as práticas anteriores ao Marco Civil continuaram da mesma maneira. As empresas de telecomunicações, por exemplo, continuam com as mesmas práticas comerciais de cobrar por limites de tráfego de dados e de controle da velocidade da banda larga. Recentemente, o Netflix, que mede a velocidade de internet no mundo todo, informou que a internet brasileira é uma das piores do mundo. O Marco Civil tem artigo sobre isto? Tem. O Marco Civil é bem claro no art. 7º, inc. V ao assegurar como direito do usuários cidadão a “manutenção da qualidade contratada da conexão à internet”. Ou seja, se o usuário contrata por 10Mbps, ele deveria ter a mesma velocidade. Mas não recebe. Ninguém fiscaliza ou é punido.

Outro exemplo sobre a não aplicação do Marco Civil refere-se à inclusão digital. Este é um mandamento para o Estado brasileiro e está inserto no art. 27, inc. I, do Marco Civil. Surgiu uma necessidade histórica e atual de todos os seres humanos estarem inseridos nas tecnologias de informação e comunicação. Já defendi, em meu mestrado, a inclusão digital como direito fundamental. Contudo, a maioria dos cidadãos brasileiros estão excluídos e não há um política pública que enfrente esta questão. Assim, a internet, que poderia ser uma forma de inclusão social, torna-se meio de mais uma exclusão e distanciamento do cidadão a seus direitos, pois o Estado a cada dia está mais online, por várias questões, do que nunca. E o cidadão excluído a ele não tem acesso.

Análise Jurídica – O WhatsApp já foi em três oportunidades após o Marco Civil, o que gerou muita controvérsia. Quais são, sob sua ótica, os grandes defeitos do Marco visto como um todo?

Victor Hugo – O Marco Civil, tal como aponto no meu livro Marco Civil Comentado, trouxe um apanhado de direitos, mas não construiu ferramentas para a sua efetivação. São direitos atribuídos somente. Aliás, o grande problema dos estudos do direito atuais é que estamos criando vários direitos sem, contudo, torná-los efetivos.

O Marco Civil caminha neste sentido e o bloqueio do Whatsapp é sintoma disso. Além de custoso financeira e socialmente para a sociedade, que depende da ferramenta tecnológica, o bloqueio do Whatsapp demonstra o total desconhecimento dos magistrados sobre as tecnologias de informação e comunicação e o impacto delas.

Sopesar os interesses públicos e privados, em decisões como esta, é superar a perspectiva dualista do direito. As pessoas se apropriaram não só do Whatsapp, mas do Google, do Facebook, dentre outras ferramentas, que facilitam as suas vidas, divertem e preenchem seus tempos. Como pode um juiz, mesmo que baseado em bons argumentos jurídicos, bloquear o uso delas sem afrontar direitos fundamentais? Além da decisão ser contra a inclusão digital dos cidadãos, ela afronta o Marco Civil nos seus arts. 2º, inc. V (a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor) , e 3º, inc. VIII (liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei). Os juízes, ao bloquearem o acesso ao Whatsapp, em nenhum momento, enfrentaram estas questões do Marco Civil.

Outro ponto que eu gostaria de colocar, e aí penso nas questões probatórias: não poderia o juiz ter conseguido as provas de outra maneira? Só as informações do Whatsapp serviriam para o deslinde daquele caso? Eu sempre penso que um inquérito, que necessita bloquear o Whatsapp para se tornar efetivo, não é uma investigação bem feita. Aliás, eu acredito que não existe investigação, só palpite. E isto é preocupante. Muito mais preocupante porque o Marco Civil permite que palpites possam gerar afronta à direitos fundamentais, os quais ele deveria proteger. Estamos vivendo num estado constante de vigilantismo e deveríamos ter ferramentas para nos protegermos destes ataques jurídicos, que afrontam o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. Mas não temos estas ferramentas e nem sabemos como nos defender destas possibilidades.

Análise Jurídica – Qual sua avaliação sobre a ADI 5527/DF, ajuizada pelo Partido da República (PR), questionando os artigos 10, § 2º, e 12, III e IV, da Lei 12.965/2014, sob relatoria da Min. Rosa Weber, que trata da banalização e proliferação dos pedidos de quebra de sigilos de mensagens virtuais? A ADI busca enfrentar um problema prático: o risco da concessão de medidas judiciais extremas, como o bloqueio de serviços de mensagens.

Victor Hugo – Eu não sei se vocês sabem que o Brasil é o país que mais realiza interceptações telefônicas e de dados no mundo. É bem assustador pensar nisto tudo. Não teremos mais controle de nada. Uma desculpa, um palpite, pode abrir a vida toda de alguém. Por exemplo, um investigador pode informar que o seu vizinho é pedófilo, mas de fato ele quer saber se a sua mulher está saindo com ele. Que juiz irá contra uma denúncia de pedofilia? Aí este investigador consegue ter acesso ilimitado a ligações e dados do seu vizinho por meses e anos a fio sem quaisquer obrigações de justificar o uso dos dados, das informações obtidas e do descarte delas.

A ADI 5527/DF do PR só ataca a superfície do problema. Ao fazer isto, pode criar inúmeros outros, pois pode liberar serviços que atentem, por exemplo, à dignidade da pessoa humana, tais como o finado aplicativo LULU, que avaliava o desempenho sexual de homens por mulheres, e aplicativos congêneres. Infelizmente, e esta é a crítica maior ao Marco Civil: não foi pensado o que queremos, como sociedade, para a nossa internet. O Marco Civil é vazio de sentido e valores.

Análise Jurídica – Como o Judiciário tem lidado com a remoção de conteúdo na rede sob a égide do Marco. Os Tribunais superiores já estão fixando jurisprudência neste sentido?

Victor Hugo – O Poder Judiciário não sabe lidar com internet. Não a conhece. Não a estuda. Não se municia de auxiliares capazes de lhe ajudar a melhorar a sua prestação jurisdicional. Vou citar um exemplo banal e que sempre dou em palestras: o art. 19, § 4º, do Marco Civil, que possibilita tutela antecipada em juizados especiais em casos de internet. Agora me responde: que juiz ou advogado sabe diferenciar uma página falsa ou invadida de uma verdadeira? Ou se um e-mail foi mesmo enviado por uma determinada pessoa? Dá para saber isto em conhecimento de tutela antecipada com juntada de documentos em pdf? Somente uma perícia poderia determinar e confirmar a autenticidade destes documentos, o que não dá para saber em juízo inicial de tutela antecipada. Para piorar, em Juizados Especiais, não se pode realizar perícia técnica para a esta comprovação.

É temerário atribuir a um juiz a possibilidade de tirar um site de uma grande empresa do ar, baseado somente num print screen de tela, sem quaisquer confirmações de autenticidade. Ao imaginar que ao site estão atrelados comércios eletrônicos e e-mails, tal possibilidade deveria arrepiar a espinha de quem pode ser vítima destes ataques jurídicos.

O Judiciário, após 2 anos de Marco Civil, ainda tem muito pouca jurisprudência sobre o tema. Existe um trabalho muito interessante sobre jurisprudência do Marco Civil, que é do meu amigo Omar Kaminski, e se chama Observatório do Marco Civil (http://omci.org.br/). Lá estão quase todas as jurisprudências atualizadas sobre o Marco Civil. A maioria das decisões escorregam na análise técnica, o que prejudica a jurídica e obscurece as conquistas sociais.

Análise Jurídica – As operadoras de telefonia, com o beneplácito da Anatel (o que inclusive gerou em agosto deste ano a renúncia do presidente da Anatel, João Rezende) queriam cobrar tarifas diferenciadas pelo acesso à internet, em conflito com o previsto no conceito de neutralidade de rede. Como esse debate foi possível em razão da existência do próprio marco? Ainda há o risco disto acontecer?

Victor Hugo – Infelizmente, este debate existe desde 2000 com outras tintas. Eu trabalho para a ABUSAR (Associação Brasileira dos Usuários de Acesso Rápido) desde 2004. Nesta época, a questão era a imposição da cobrança de provedores de acesso à internet em banda larga pelas empresas de telecomunicações. Na banda larga, diferentemente da conexão discada, que nem existe mais ou é bem rara, o provimento de acesso à internet é feito pelas empresas de telecomunicações. Contudo, elas cobravam valores extras, sem ter necessidade técnica disso, ao obrigarem a contratação de um outro provedor. As empresas de telecomunicações ganharam bastante dinheiro com esta prática comercial por anos, até decisões judiciais dos últimos anos, tais quais a que eu ganhei, decidiram pela ilegalidade da cobrança.

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As empresas de telecomunicações, protegidas pela ANATEL, desde 1996, ao cobrar tarifas diferenciadas para uso de internet, estavam querendo restituir este tipo de prática, da qual nunca pensaram em desistir. Contudo, o mundo mudou e creio (aliás, rezo para isto) que não voltará mais este tipo de prática. O Marco Civil proíbe esta prática em sua análise sistêmica, mas não há nada específico contra.

Eu sempre disse isso nas discussões de criação do Marco Civil: uma lei de internet que não enfrente as questões pendentes da Lei Geral de Telecomunicações, não tem chances de ser totalmente efetiva para todos. Estes dois anos comprovam esta minha tese.

Análise Jurídica – Como tem sido, por parte das empresas, o cumprimento do artigo 15, em que toda empresa constituída juridicamente no Brasil (classificada como provedora de aplicação) deve manter o registro do acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento. Há registro de alguma penalidade aplicada por conta do descumprimento desta norma?

Victor Hugo – Vou ser bem sincero e direto: ninguém está fazendo nada. Sem uma estrutura regulatória e fiscalizatória por trás, não há como o art. 15 do Marco Civil funcionar. Não há procedimento definido. Não há responsável técnico a quem cabe guardar. Não há controle em relação aos agentes administrativos competentes para requererem este tipo de informação. Enfim, o caos. Vamos penalizar a quem e por quê? É uma norma inócua e perigosa, principalmente, aos agentes públicos administrativos que podem ter acesso a estas informações. Quem são? São todos? A cidadania está em risco de ser constantemente vigiada e perseguida.

Análise Jurídica – Na sua ótica, os usuários da internet tem minimamente noção de seus direitos? Inclusive você recentemente publicou um livro sobre o Marco Civil que segue esta linha. Qual é a abordagem de sua obra?

Victor Hugo – Os usuários de internet têm noção dos direitos, mas não possuem ferramentas para torná-los efetivos. As passeatas de Junho de 2013 são sintoma disso da noção de direitos e de que eles existem. Mas o que mudamos de efetivo? O que transformamos? O que conquistamos? Muito pouco ou quase nada.

Mas quais são as ferramentas tecnológicas disponibilizadas para os usuários serem efetivos cidadãos digitais? Não foram criadas ou se existem não são utilizadas para serem ferramentas de transformação, de empoderamento. Bobbio, em seu livro Futuro da Democracia, sempre duvidou da computocracia. Acreditava o filósofo que ela nunca seria efetiva. Não discordo de todo, pois, hoje em dia, vemos um movimento que a internet só virou replicadora e não engajadora de transformações reais, empoderamentos.

Exemplo disso é que o próprio Marco Civil não se utiliza da palavra democracia para a efetiva participação dos cidadãos na res publica, ele diz “exercício da cidadania em meios digitais”. O que seria isto? Muito vago e sem sentido. Quem exercita cidadania não tem direitos, nem história.

Análise Jurídica – Em 13 de julho deste ano foi criada uma comissão na Câmara dos Deputados para alterar o Marco. Por que querem alterar tão cedo esse diploma? Seria o reconhecimento de inconsistências?

Victor Hugo – Então, precisar de reforma o Marco Civil necessita. Mas que reforma? Pelo que estou lendo e pesquisando, esta reforma só vai piorar o que já está ruim. Reforço: enquanto não estabelecermos o que queremos de valores e direitos para a internet no Brasil, não teremos um marco regulatório suficiente para as transformações sociais, históricas, jurídicas e culturais que vivemos neste momento.

Análise Jurídica – Quais as grandes lacunas do Marco Civil e como lidar com elas?

A grande lacuna do Marco Civil, afora a questão da falta de valores e princípios, é não ter lidado com as questões relativas à Lei Geral de Telecomunicações e a falta de criação de uma agência reguladora. Historicamente, a ANATEL sempre foi contrária a regular a internet e sempre defendeu os interesses das empresas de telecomunicações. Ela poderia regular a internet? Se sim, teria estrutura econômico, financeira e tecnológica para isto? Se não, quem seria o responsável? O Estado teria como arcar com estes custos? Melhor, ao arcar com estes custos, poderíamos desenvolver mais a internet? Nenhuma destas perguntas foi feita durante a construção do Marco Civil. E o fato de não as fazermos nem as discutirmos, acabam por gerar estas distorções atuais. Viveremos muitos anos até que elas sejam enfrentadas.

Análise Jurídica – E afinal, a internet precisa de um marco ou ela deve ser inteiramente livre, sem regulamentações? E por quê?

Victor Hugo – A ideia do Marco Civil não é ruim. É necessária. Mas tudo que é necessário, ao ser mal implementado, questiona-se o sentido dela existir. A internet não pode ser livre de regulamentações. Porém, leis ruins e mau construídas atrapalham mais do que ajudam. O Marco Civil virou uma panaceia de ideias, defesas, exaltações que são distoantes do que ele deveria ser na prática. O Marco Civil devia ser a lei de inclusão digital, de florescimento de comércios eletrônicos, de ampliação dos serviços governamentais, enfim, de uma internet mais justa e igualitária. E não o é. Infelizmente, quem perde são os brasileiros.

Fonte: Análise Jurídica


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