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Inventário e partilha: é possível fazer em cartório?
Humberto Theodoro Júnior
20/01/2025
Com a morte da pessoa natural, seus bens transmitem-se aos sucessores legítimos e testamentários (CC, art. 1.784). Uma vez, porém, que o patrimônio do autor da herança constitui uma universalidade, torna-se necessário apurar quais são os bens que o integram, a fim de definir o que passou realmente para o domínio dos sucessores. E, havendo mais de um sucessor, há, ainda, necessidade de definir quais os bens da herança que tocaram a cada um deles.
Para esse fim, existe o procedimento especial do inventário e partilha (arts. 610 a 673 do CPC/2015), que se apresenta como procedimento complexo integrado por dois estágios bem distintos.
O inventário (estágio inicial) consiste na atividade processual endereçada à descrição detalhada de toda a herança, de molde a individualizar todos os bens móveis e imóveis que formam o acervo patrimonial do morto, incluindo até mesmo as dívidas ativas e passivas e quaisquer outros direitos de natureza patrimonial deixados pelo de cujus.11
A partilha é o segundo estágio do procedimento e vem a ser a atividade desenvolvida para ultimar a divisão do acervo entre os diversos sucessores, estabelecendo e adjudicando a cada um deles um quinhão certo e definido sobre os bens deixados pelo morto.
Esse procedimento especial, embora criado especificamente para resolver a questão da sucessão causa mortis, presta-se também para solucionar casos de partilha, como o da sucessão provisória em bens de ausentes (CPC/2015, art. 745, § 1º), o da divisão dos bens comuns após a dissolução da sociedade conjugal (art. 731, parágrafo único) e extinção consensual de união estável (art. 732).
Quanto à complexidade do rito, a lei prevê duas espécies de procedimento para o inventário e partilha: um completo, que é o inventário, propriamente dito (arts. 610 a 658), e outro, simplificado, que é o arrolamento (arts. 659 a 667).
O inventário, na tradição de nosso direito processual civil, era sempre judicial, enquanto a partilha, a critério dos herdeiros, tanto podia ser processada em juízo como extrajudicialmente. Com a edição da Lei nº 11.441, de 04.01.2007, alterando o art. 982 do Código de 1973, passou a ser possível a opção pela extrajudicialidade, no tocante ao inventário, norma que se repete no CPC/2015. De qualquer modo, para realizar o inventário e a partilha sem a intervenção do juiz, é preciso que todos os interessados sejam maiores e capazes e que haja acordo geral entre eles (CC, art. 2.015 e CPC/2015, art. 610, § 2º). Trata-se, ainda, de um negócio jurídico solene, cujo aperfeiçoamento exige a forma de escritura pública lavrada por tabelião, com a assistência de advogado ou defensor público. (…)
Inventário e partilha por via administrativa
Em lugar de promover o inventário e partilha em juízo, podem os interessados adotar a via administrativa, recorrendo ao chamado foro extrajudicial, em que atuam os tabeliães ou notários.
Sem qualquer participação do juiz, o inventário e a partilha serão efetuados por escritura pública, a qual constituirá título hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras, independentemente de homologação judicial (CPC/2015, art. 610, § 1º). Trata-se de sistema antigo no direito europeu e que, a partir da Lei nº 11.441/2007, passou a vigorar também entre nós, gerando só benefícios para as partes e para os serviços judiciários. De fato, entre maiores e capazes que se acham em pleno acordo quanto ao modo de partilhar o acervo hereditário, nada recomenda ou justifica o recurso ao processo judicial e a submissão a seus custos, sua complexidade e sua inevitável demora. Por outro lado, a retirada do inventário da esfera judicial contribui para aliviar a justiça de uma sobrecarga significativa de processos. Essa sistemática, portanto, só merece aplausos.
A utilização da via notarial, todavia, não é uma imposição da lei, mas uma faculdade aberta aos sucessores, que, se preferirem, poderão continuar a utilizar o procedimento judicial para obter a homologação do acordo de partilha, observando o rito dos arts. 659 a 663. Se tal acontecer, a partilha consensual não dependerá das exigências formais traçadas pelo art. 610 e ss. para o inventário e partilha administrativos. A divisão amigável poderá constar de petição, termo nos autos ou mesmo de escritura pública, a qual não estará obviamente condicionada à participação de advogado. As partes serão assistidas em juízo por advogado ou defensor público, ao postularem a homologação prevista no art. 659 e não necessariamente no ato notarial, já que este não terá sido praticado com o fim de excluir o processo judicial. A existência de testamento a cumprir e a presença de interessado incapaz na sucessão impedem o inventário por escritura pública. A validade do ato notarial dependerá, ainda, de estarem todas as partes assistidas por advogados ou defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão obrigatoriamente de escritura (art. 610, § 2º).
Para utilizar-se, portanto, a via administrativa na prática do inventário e partilha, impõe-se o cumprimento das seguintes exigências legais:
(a) todos os interessados hão de ser maiores e capazes; os regularmente emancipados, antes da idade legal, equiparam-se plenamente aos maiores e, assim, poderão também participar do ato notarial (CC, art. 5º, parágrafo único); basta, porém, que um dos participantes seja incapaz para inviabilizar a solução administrativa da sucessão;
(b) a sucessão não pode ser testamentária; tem de ser legítima, pois a existência de testamento torna obrigatório o seu cumprimento pelas vias judiciais.2 Para evitar que testamentos fossem ignorados ou descumpridos, o CNJ editou o Provimento nº 56, de 14.07.2016, recomendando aos Tabeliães de Notas que, antes de lavrar escritura pública de inventário extrajudicial, acessem o Registro Central de Testamentos On-line (RCTO), módulo de informação da Central Notarial de Serviços Compartilhados (CENSEC), para verificar se existe testamento público ou instrumento de aprovação de testamento cerrado, relativamente ao espólio a inventariar. Para a lavratura do ato notarial, o provimento do CNJ dispõe ser obrigatória a juntada de certidão negativa da existência de testamento deixado pelo autor da herança, passada pelo CENSEC.3 Essa exigência, todavia, foi afastada pelo STJ por meio da interpretação sistemática do § 1º do art. 610 do CPC, c/c os arts. 2.015 e 2.016 do CC, através da qual se firmou o entendimento de mostrar-se possível o inventário extrajudicial, “ainda que exista testamento, se os interessados forem capazes e concordes e estiverem assistidos por advogado, desde que o testamento tenha sido previamente registrado judicialmente ou haja expressa autorização do juízo competente”;4
(c) todos os interessados devem estar concordes quanto aos termos do inventário e quanto à partilha, de forma que qualquer divergência entre eles conduzirá ao procedimento judicial contencioso. A participação do cônjuge sobrevivente é obrigatória, seja como meeiro, herdeiro ou titular do direito real de habitação (CC, art. 1.831);
(d) todas as partes interessadas deverão comparecer à presença do tabelião assistidas por advogado, que pode ser comum ou não, ou de defensor público, no caso de beneficiário da assistência judiciária; não é preciso outorgar mandato, porque partes e advogados estarão presentes ao ato notarial e todos firmarão a escritura; declarará cada interessado quem é o advogado que o assiste, e este, no exercício de seus múnus, se identificará e se qualificará convenientemente; não há necessidade de que todos sejam assistidos pelo mesmo advogado, embora isto possa acontecer, e se forem vários cada qual declinará a quem está assistindo; a nenhum dos interessados será permitido firmar a escritura sem a assistência advocatícia, sob pena de invalidar o ato, pois a lei proíbe ao tabelião lavrá-lo sem a observância dessa exigência. Trata-se, pois, de solenidade substancial ao aperfeiçoamento do inventário e partilha administrativos;
(e) o inventário e a partilha administrativos foram introduzidos no ordenamento jurídico em 2007, mas sua aplicação independe da data da ocorrência do óbito do autor da herança, que pode ter sido anterior à inovação como posterior. Deve-se, porém, observar que as regras materiais a respeito da sucessão hereditária serão aquelas em vigor na data da abertura da sucessão, ou seja, da morte do inventariado (CC, art. 1.787);5
(f) é possível fazer-se numa só escritura a cessão e transferência de direitos hereditários, seguida de partilha.6
Naturalmente, não há vedação a que os interessados (cônjuge e herdeiros) se façam representar por procurador, constituído por instrumento público e com poderes especiais para o ato.
Como se passa com as escrituras em geral, o tabelião é responsável pelo controle do recolhimento do imposto de transmissão e pela exigência de comprovantes das quitações tributárias que digam respeito aos bens transmitidos e sem os quais a escritura de inventário e partilha não logrará registro no cartório imobiliário (CTN, art. 134, V, e Lei nº 8.935/1994, art. 30, XI).
O modo de estruturar o conteúdo da escritura será equiparável ao observado nas comuns escrituras de divisão de condomínio: identificam-se todos os comunheiros e todos os bens comuns; atribui-se valor ao acervo e define-se a quota ideal com que cada interessado irá concorrer na partilha; por último, elabora-se uma folha de pagamento para cada um deles, descrevendo os bens que formarão o respectivo quinhão.
Não haverá partilha, mas apenas inventário, quando a transmissão causa mortis contemplar sucessor único. Em qualquer caso, seja único ou sejam vários os sucessores, não haverá formal de partilha para ser levado ao registro imobiliário. A própria escritura pública será o título hábil para o ato registral, devendo o tabelião fornecer aos interessados o competente traslado.7
Não há lugar para a figura do inventariante no inventário administrativo. Tudo se resolve de plano, no contato direto e imediato entre os interessados, seus advogados e o tabelião.8 Não há processo, nem mesmo procedimento, mas simplesmente um único ato notarial. A escolha do tabelião é feita pelas partes e não fica sujeita a vinculação ao último domicílio do de cujus, ao local do óbito, à situação dos bens ou ao domicílio dos sucessores. Há de respeitar-se, porém, a sede funcional do tabelião, que somente tem atribuição para lavrar atos de seu ofício dentro de sua circunscrição territorial. Os interessados podem deslocar-se à procura de tabelião de sua confiança fora de seu foro, mas o tabelião não pode transportar-se para lavrar escritura em local não compreendido pela sua circunscrição territorial.
A sucessão processada administrativamente não é privativa dos nacionais ou dos estrangeiros residentes ou domiciliados no País. Também os que aqui não vivem podem realizar o inventário e partilha dos bens situados no Brasil, desde que o façam perante tabelião brasileiro e sob observância de todas as exigências contidas nos §§ 1º e 2º do art. 610 do CPC/2015.
Entretanto, os bens situados no estrangeiro não podem ser partilhados no Brasil, devendo ser objeto de procedimento autônomo no país onde se situem.9
Para os “brasileiros que estejam no estrangeiro, e pretendem fazer a separação, o divórcio, o inventário, a partilha, poderão recorrer ao cônsul brasileiro, que exerce funções de tabelionato e de oficial de registro civil, nos termos do art. 18 da Lei de Introdução ao Código Civil”.10 Continuará obrigatória a assistência de advogado inscrito na OAB.11
Por fim, é irrelevante a data do falecimento do autor da herança. A forma do inventário por escritura pública aplica-se mesmo às sucessões abertas antes da legislação que introduziu, em nosso direito positivo, esse procedimento extrajudicial. É que as inovações de natureza processual são de aplicação imediata, inclusive aos fatos pretéritos, respeitados, é claro, os atos jurídicos perfeitos, o direito adquirido e a coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI). As regras substanciais reguladoras da sucessão hereditária, entretanto, serão sempre as da lei civil do tempo da abertura da sucessão (dia do óbito do de cujus).
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NOTAS
1 De acordo com o art. 1º da Lei nº 6.858, de 24.11.1980, “os valores devidos pelos empregadores aos empregados e os montantes das contas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e do Fundo de Participação – PIS/PASEP, não recebidos em vida pelos respectivos titulares, serão pagos, em cotas iguais, aos dependentes habilitados perante a Previdência Social ou na forma da legislação específica dos servidores civis e militares e, na sua falta, aos sucessores previstos na lei civil, indicados em alvará judicial, independentemente de inventário ou arrolamento” (ver nº 150, infra).
2 Mesmo diante do testamento, se todos os sucessores forem capazes, será possível utilizar-se a escritura pública para efetivar a partilha de forma amigável. Neste caso, porém, a escritura terá de ser levada ao processo judicial de inventário para obter-se a necessária homologação (VELOSO, Zeno. Lei n.º 11.441, de04.01.2007 – aspectos práticos da separação, divórcio, inventário e partilha consensuais. Belém: Anoreg/ PA, 2008, p. 24).
3 A respeito do tema, a Corregedoria de Justiça do TJSP editou o provimento CGJ nº 37/2016, de 17.06.2016, no qual se reconhece a possibilidade do inventário notarial, mesmo existindo testamento deixado pelo autor da herança, desde que: (i) o testamento já tenha passado pelo processo judicial de jurisdição voluntária de abertura, registro e cumprimento; (ii) todos os interessados sejam capazes e concordes; (iii) haja autorização do juízo sucessório; e, obviamente, (iv) a escritura pública dê fiel cumprimento à vontade do testador, caso em que “constituirá título hábil para registro imobiliário” (cf. VELOSO, Zeno. Separação,extinção de união estável, divórcio, inventário e partilha consensuais – de acordo com o novo CPC. Belém: ANOREG/PA, 2016, n. 15, p. 50-52).
4 STJ, 4ª T., REsp 1.808.767/RJ, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, ac. 15.10.2019, DJe 03.12.2019. Consta do acórdão o seguinte esclarecimento: “A mens legis que autorizou o inventário extrajudicial foi justamente a de desafogar o Judiciário, afastando a via judicial de processos nos quais não se necessita da chancela judicial, assegurando solução mais célere e efetiva em relação ao interesse das partes. Deveras, o processo deve ser um meio, e não um entrave, para a realização do direito. Se a via judicial é prescindível, não há razoabilidade em proibir, na ausência de conflito de interesses, que herdeiros, maiores e capazes, socorram-se da via administrativa para dar efetividade a um testamento já tido como válido pela Justiça”.
5 6 VELOSO, Zeno. Separação, extinção de união estável, divórcio, inventário e partilha consensuais – de acordo com o novo CPC. Belém: ANOREG/PA, 2016, p. 27.
6 7 VELOSO, Zeno. Separação, extinção de união estável, divórcio, inventário e partilha consensuais – de acordo com o novo CPC. Belém: ANOREG/PA, 2016, p. 28.
7 “Havendo um só herdeiro, maior e capaz, com direito à totalidade da herança, não haverá partilha, lavrando-se a escritura de inventário e adjudicação dos bens” (Resolução nº 35/CNJ, art. 26).
8 Se houver obrigações ativas e passivas pendentes, a cargo do espólio, os interessados obrigatoriamente nomearão um deles para cumpri-las, conferindo-lhe, na escritura de inventário e partilha, poderes de inventariante (Resolução nº 35/CNJ, art. 11).
9 AMORIM, Sebastião; OLIVEIRA, Euclides de. Inventário e partilha. 20. ed. São Paulo: LEUD, 2006 – Separata – Atualização, p. 11; VELOSO, Zeno. Separação, extinção de união estável, divórcio, inventário e partilhaconsensuais – de acordo com o novo CPC. Belém: ANOREG/PA, 2016, p. 25-26.
10 VELOSO, Zeno. Separação, extinção de união estável, divórcio, inventário e partilha consensuais – de acordo com o novo CPC. Belém: ANOREG/PA, 2016, p. 26. Nota: A antiga Lei de Introdução ao Código Civil teve aementa alterada para Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
11 VELOSO, Zeno. Separação, extinção de união estável, divórcio, inventário e partilha consensuais – de acordo com o novo CPC. Belém: ANOREG/PA, 2016, p. 26.