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Inventário extrajudicial com herdeiro incapaz: Partilha desigual e partilha por universitas iuris

Carlos E. Elias de Oliveira
26/09/2025
Em inventário por escritura pública (inventário extrajudicial) envolvendo herdeiro incapaz, indaga-se: o quinhão dele pode recair sobre apenas alguns dos bens do espólio ou necessariamente deve desaguar em um condomínio tradicional sobre cada bem?
Em outras palavras, nesses casos em que há herdeiro incapaz, a partilha extrajudicial tem de ser per rem (por cada bem)1 ou pode vir a ser por universitas iuris (por universalidade de direito, especificamente o monte-mor hereditário2)?
Inventário extrajudicial com herdeiro incapaz: regra geral
Outra questão: seria possível uma partilha desigual no inventário extrajudicial?
Uma leitura apressada do art. 12-A da resolução 35 do CNJ levaria à indevida conclusão de que a partilha tem de ser pro rata sempre (e, portanto, não poderia ser desigual) e de que ela deveria recair sobre cada bem específico (partilha per rem). Veja o referido dispositivo:
Art. 12-A. O inventário poderá ser realizado por escritura pública, ainda que inclua interessado menor ou incapaz, desde que o pagamento do seu quinhão hereditário ou de sua meação ocorra em parte ideal em cada um dos bens inventariados e haja manifestação favorável do Ministério Público.
§ 1º Na hipótese do caput deste artigo é vedada a prática de atos de disposição relativos aos bens ou direitos do interessado menor ou incapaz.
§ 2º Havendo nascituro do autor da herança, para a lavratura nos termos do caput, aguardar-se-á o registro de seu nascimento com a indicação da parentalidade, ou a comprovação de não ter nascido com vida.
§ 3º A eficácia da escritura pública do inventário com interessado menor ou incapaz dependerá da manifestação favorável do Ministério Público, devendo o tabelião de notas encaminhar o expediente ao respectivo representante.
§ 4º Em caso de impugnação pelo Ministério Público ou terceiro interessado, o procedimento deverá ser submetido à apreciação do juízo competente.
Realmente, a regra geral é essa acima. A partilha em inventário extrajudicial envolvendo herdeiro incapaz há de ser pro rata e per rem.
Essa norma, porém, precisa ser interpretada sistematicamente com as regras do Código Civil que permitem a pessoa incapaz a praticar atos além da mera administração mediante alvará judicial, ao lado da regra que proíbe atos de disposição gratuita pela pessoa incapaz. Referimo-nos aos dispositivos abaixo do CC:
Art. 1.691. Não podem os pais alienar, ou gravar de ônus real os imóveis dos filhos, nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole, mediante prévia autorização do juiz.
(…)
Art. 1.748. Compete também ao tutor, com autorização do juiz:
(…)
III – transigir;
IV – vender-lhe os bens móveis, cuja conservação não convier, e os imóveis nos casos em que for permitido;
(…)
Art. 1.749. Ainda com a autorização judicial, não pode o tutor, sob pena de nulidade:
(…)
II – dispor dos bens do menor a título gratuito;
(…)
Art. 1.781. As regras a respeito do exercício da tutela aplicam-se ao da curatela, com a restrição do art. 1.772 e as desta seção.
Art. 1.750. Os imóveis pertencentes aos menores sob tutela somente podem ser vendidos quando houver manifesta vantagem, mediante prévia avaliação judicial e aprovação do juiz.
Esses dispositivos, ao lado do princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável e do princípio da vontade presumível3, permitem a realização de inventário extrajudicial com partilha desigual e com partilha da universalidade de direito, e não de cada bem individualizado, embora de modo excepcional.
Partilha desigual e o papel do Ministério Público
De um lado, a partilha desigual nos parece cabível quando o herdeiro incapaz vier a ser beneficiado patrimonialmente. Suponha dois filhos como únicos herdeiros, um incapaz e outro capaz. Não há obstáculo algum a que o herdeiro incapaz fique com 80% de cada bem em inventário extrajudicial, ao passo que o herdeiro capaz ficaria com o restante. Não haveria necessidade de nenhuma autorização judicial. Reforça o entendimento acima o fato de que os inventários extrajudiciais dependem do beneplácito pelo Ministério Público, que é o custos legis (fiscal da lei) e que é o incumbido de velar pelos interesses do incapaz (art. 178 do CPC4). O Ministério Público fiscalizará o melhor interesse da pessoa incapaz. Além disso, o § 1º do art. 12-A da resolução 35 do CNJ veda disposição de bens do incapaz, e não a aquisição de bens por este.
Quando afastar a partilha per rem no inventário
De outro lado, a partilha per rem (por cada bem) pode ser afastada para que a partilha seja feita sobre toda a universalidade de direito (de todo monte-mor) em duas hipóteses. Aliás, a regra geral é a de que a partilha hereditária leva em conta o acervo hereditário inteiro, que é uma universalidade de direito, fruto de uma indivisibilidade imposta pelo parágrafo único do art. 1.791 do Código Civil5.
Vejamos as duas hipóteses de afastamento da partilha per rem.
A primeira é quando houver autorização judicial com base nos arts. 1.691, 1.748, II, 1.750 e 1.781 do Código Civil.
O motivo é que, por meio de seu representante legal (pais, tutela ou curador), a pessoa incapaz pode praticar atos além da mera administração mediante essa autorização judicial, como alienar imóveis e transigir. Caberá ao juízo avaliar se a solução é mais vantajosa à pessoa incapaz.
Suponha dois filhos como únicos herdeiros, um incapaz e outro capaz. Imagine que o falecido tenha deixado dois bens de igual valor: um veículo e um apartamento. A experiência demonstra que veículos desvalorizam com maior rapidez, ao contrário de imóveis, que tendem a valorizar. Em caso assim, seria mais vantajoso ao herdeiro incapaz ficar com o apartamento na integralidade e deixar o veículo ao seu irmão capaz. Não enxergamos obstáculos algum a que esse inventário ocorra extrajudicialmente nesses termos mediante autorização judicial obtida pelo representante legal do herdeiro incapaz.
Entender diversamente nos levaria a conduzir a pessoa incapaz a uma solução mais onerosa. Teríamos de, em primeiro lugar, realizar a partilha per rem, deixando o herdeiro incapaz com 50% do veículo e com 50% do apartamento. Posteriormente, teríamos de obter um alvará judicial para uma permuta de bens, de modo a que o herdeiro incapaz troque a sua porção sobre o veículo pela porção do outro herdeiro no apartamento. Isso, porém, imporia um custo adicional ao herdeiro: o pagamento de ITBI (Imposto sobre a transmissão onerosa de bem imóvel). Ora, se o herdeiro incapaz tivesse ficado com o imóvel já no inventário extrajudicial, não haveria esse custo adicional e, portanto, teríamos uma solução menos onerosa a ele. Como se vê, as normas – com inclusão do art. 12-A da resolução 35 do CNJ – não podem ser interpretadas de modo a prejudicar a pessoa incapaz, o que respalda o entendimento sustentado neste artigo.
O princípio do melhor interesse do incapaz
A segunda hipótese de afastamento da partilha per rem dá-se em caso de manifesta vantagem à pessoa incapaz, hipótese em que sequer haverá necessidade de autorização judicial. Bastará que o Ministério Público, como custos legis, chancele o inventário extrajudicial com partilha por universalidade de direito. Isso, porque uma interpretação teleológica dos supracitados dispositivos do Código Civil deve estar alinhada ao princípio do melhor interesse da pessoa incapaz e ao princípio da vontade presumível da pessoa incapaz, de modo a afastar exigências meramente burocráticas à efetivação daquilo que é mais adequado à pessoa vulnerável.
Imagine um inventário envolvendo R$ 50 mil em dinheiro e um veículo de valor de R$ 50 mil. É manifestamente mais vantajoso ao herdeiro incapaz ficar com o dinheiro do que ter de ficar com metade de cada um desses bens. Por isso, temos que esse inventário extrajudicial poderia ser feito independentemente de prévio alvará judicial, de que o Ministério Público manifeste-se favoravelmente.

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notas
1 Cunhamos a expressão “per rem” para fins didáticos, embora ela não seja usual nas fontes jurídicas do direito romano antigo.
2 A universalidade de direito (universitas iuris) está disciplinada no art. 91 do Código Civil (“Art. 91. Constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico”) e é ilustrada pelo acervo patrimonial deixado pelo falecido.
3 Vide: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Curatela e respeito à vontade presumível: Liberalidades de bens do curatelado. Disponível aqui. Publicado em 2/5/25.
4 Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam: (…) II – interesse de incapaz; (…)
5 Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros.
Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio.