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Herança digital e sucessão legítima primeiras reflexões[1]
Flávio Tartuce
28/09/2018
As novas tecnologias, especialmente as incrementadas pelas redes sociais e pelas interações digitais, trouxeram grandes repercussões para o Direito, especialmente para o Direito Privado. Como não poderia ser diferente, o Direito das Sucessões não escapa dessa influência, surgindo intensos debates sobre a transmissão da chamada herança digital.
O tema é tratado por civilistas contemporâneos, especialmente no âmbito da sucessão testamentária e das manifestações de última vontade. Como desenvolve Jones Figueirêdo Alves, que fala na possibilidade de se elaborar um testamento afetivo, “a par da curadoria de dados dos usuários da internet, com a manutenção de perfis de pessoas falecidas, a serviço da memória digital, como já tem sido exercitada (Pierre Lévy, 2006), o instituto do testamento afetivo, notadamente no plano da curadoria de memórias da afeição, apresenta-se, agora, não apenas como uma outra inovação jurídica, pelo viés tecnológico. Mais precisamente, os testamentos afetivos poderão ser o instrumento, eloquente e romântico (um novo ‘L’hymne à L’amour’), de pessoas, apesar de mortas, continuarem existindo pelo amor que elas possuíam e por ele também continuarem vivendo” (ALVES, Jones Figueirêdo. A extensão existencial por testamentos afetivos. Disponível em: <www.flaviotartuce.adv.br>. Acesso em: 22 set. 2018). Além do testamento afetivo, pode-se falar também em testamento digital, com a atribuição dos bens acumulados em vida no âmbito virtual, como páginas, contatos, postagens, manifestações, likes, seguidores, perfis pessoais, senhas, músicas entre outros elementos imateriais adquiridos nas redes sociais.
Vale lembrar que o Código Civil de 2002 admite que o testamento tenha um conteúdo extrapatrimonial, pela regra constante do seu art. 1.857, § 2º (“São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado”). Procurou-se, assim, afastar críticas anteriores existentes quanto ao art. 1.626 do Código Civil de 1916, que supostamente limitava o testamento a um conteúdo patrimonial (“Considera-se testamento o ato revogável pelo qual alguém, de conformidade com a lei, dispõe, no todo ou em parte, do seu patrimônio, para depois da sua morte”). No âmbito da herança digital, fala-se em testamento em sentido amplo, sendo certo que a atribuição de destino de tais bens digitais pode ser feita por legado, por codicilo – se envolver bens de pequena monta, como é a regra –, ou até por manifestação feita perante a empresa que administra os dados.
Mas, além dessas manifestações de vontade feitas ainda em vida, o que fazer caso o falecido não tenha se manifestado sobre sua herança digital, especialmente pelo fato de ela não estar mencionada no Código Civil em vigor? Essa é a pergunta que pretendo começar a responder, sem prejuízo de aprofundamentos futuros que seguirão.
Como é notório, a sucessão legítima acaba por presumir a vontade do falecido, estabelecendo a ordem de vocação hereditária, em prol do fundamento principal do Direito das Sucessões, qual seja a continuidade da pessoa. No Código Civil, essa ordem está prevista no art. 1.829, que deve ser lido com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que equiparou a união estável ao casamento (Recurso Extraordinário n. 878.694, julgado em maio de 2017). Assim, a sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: a) aos descendentes, em concorrência com o cônjuge ou companheiro sobrevivente, salvo se o regime do casamento ou da união estável for o de comunhão universal, o da separação obrigatória de bens, ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; b) aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge ou companheiro, independentemente do regime de bens; c) ao cônjuge ou companheiro sobrevivente; e d) aos colaterais.
A grande dúvida diz respeito ao fato de os dados digitais da pessoa poderem ou não compor a sua herança, conceituada como um conjunto de bens, corpóreos e incorpóreos, havido pela morte de alguém e que serão transmitidos aos seus sucessores, sejam testamentários ou legítimos. Nos termos do art. 1.791 do Código Civil, a herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros, o que inclui não só o patrimônio material do falecido, como também os bens imateriais, como supostamente seriam aqueles havidos e construídos na grande rede durante a vida da pessoa. Sendo assim, a chamada herança digital segue transmissão conforme a ordem de vocação hereditária destacada?
Como respondeu Giselda Maria Fernandes Hironaka, em entrevista publicada no Boletim do IBDFAM, “entre os bens ou itens que compõem o acervo digital, há os de valoração econômica (como músicas, poemas, textos, fotos de autoria da própria pessoa), e estes podem integrar a herança do falecido, ou mesmo podem ser objeto de disposições de última vontade, em testamento, e há os que não têm qualquer valor econômico, e geralmente não integram categoria de interesse sucessório” (Boletim Informativo do IBDFAM, n. 33, jun./jul. 2017, p. 9). Acrescente-se que muitos dos bens citados pela jurista que compõem o suposto acervo sucessório digital estão protegidos pela Lei n. 9.610/1998, especialmente pela sua notória divisão entre os direitos morais e patrimoniais do autor.
Sobre o tema, tramitam no Congresso Nacional projetos de lei que pretendem discipliná-lo no âmbito da sucessão legítima. O primeiro a ser mencionado é o de número 4.847, de 2012. A proposição pretende incluir os arts. 1.797-A a 1.797-C do Código Civil. Conforme a primeira norma projetada, “a herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes: I – senhas; II – redes sociais; III – contas da Internet; IV – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido”. Há, assim, a previsão de um rol meramente exemplificativo dos bens que compõe o acervo, o que não exclui outros, como os contatos, as fotos e os textos construídos pelo de cujus.
Em continuidade, conforme o proposto art. 1.797-B, se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança será transmitida aos herdeiros legítimos. Por fim, está sendo sugerido que “cabe ao herdeiro: I – definir o destino das contas do falecido; a) transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal ou; b) apagar todos os dados do usuário ou; c) remover a conta do antigo usuário” (proposta de art. 1.797-C).
Esse projeto tramita em conjunto com o PL 7.742/2017, sugerido o mais recentemente, que aguarda parecer do Relator na Câmara dos Deputados. A última norma projetada visa incluir um art. 10-A no Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014), com a seguinte dicção:
Art. 10-A. Os provedores de aplicações de internet devem excluir as respectivas contas de usuários brasileiros mortos imediatamente após a comprovação do óbito.
- 1º A exclusão dependerá de requerimento aos provedores de aplicações de internet, em formulário próprio, do cônjuge, companheiro ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive.
- 2º Mesmo após a exclusão das contas, devem os provedores de aplicações de internet manter armazenados os dados e registros dessas contas pelo prazo de 1 (um) ano, a partir da data do óbito, ressalvado requerimento cautelar da autoridade policial ou do Ministério Público de prorrogação, por igual período, da guarda de tais dados e registros.
- 3º As contas em aplicações de internet poderão ser mantidas mesmo após a comprovação do óbito do seu titular, sempre que essa opção for possibilitada pelo respectivo provedor e caso o cônjuge, companheiro ou parente do morto indicados no caput deste artigo formule requerimento nesse sentido, no prazo de um ano a partir do óbito, devendo ser bloqueado o seu gerenciamento por qualquer pessoa, exceto se o usuário morto tiver deixado autorização expressa indicando quem deva gerenciá-la.
Como se pode perceber, as duas proposições atribuem o poder de decisão a respeito do destino da herança digital aos herdeiros do falecido. Apesar de a última regra mencionar a exclusão imediata dos conteúdos após a comprovação do óbito, tal prerrogativa é atribuída aos familiares do de cujus, como se retira do seu § 1º.
No mesmo sentido, como outra projeção a ser destacada, o Projeto de Lei n. 4.099-B/2012 tende a incluir um parágrafo único no art. 1.788 do Código Civil, com a seguinte redação: “serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais do autor da herança”. A proposta aguarda apreciação no Senado Federal e, como se percebe, procura tratar da herança digital no âmbito da sucessão legítima, atribuindo-a aos herdeiros do falecido, que terão total liberdade quanto à sua gestão e destino.
Com o devido respeito, pensamos que os projetos colocam em debate uma questão fundamental, qual seja a titularidade do material que é construído em vida pela pessoa na internet, bem como a tutela da privacidade, da imagem e de outros direitos da personalidade do morto. Em parecer muito bem estruturado oferecido perante o Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), o Professor Pablo Malheiros Cunha Frota manifestou-se em sentido contrário às projeções, com razão, substancialmente pelo fato de estarmos tratando de direitos essenciais e personalíssimos do de cujus, que, nesse caso, não podem ser transmitidos aos herdeiros de forma automática, mas devem ser imediatamente extintos com o falecimento.
Foram as razões de suas objeções e conclusões, conforme o teor do estudo doutrinário que me foi enviado, apresentado em dezembro de 2017 perante aquele instituto: a) os dois projetos autorizam que todo o acervo digital do morto transmita-se automaticamente aos herdeiros, violando os direitos fundamentais à liberdade e à privacidade, notadamente nas hipóteses em que o bem digital é uma projeção da privacidade e não houve declaração expressa de vontade ou comportamento concludente do seu titular, autorizando algum herdeiro ou terceiro a acessá-lo e geri-lo; b) terceiros que interagiram com o falecido em vida também terão as suas privacidades expostas aos herdeiros; c) é necessário o respeito às eficácias pessoal, interpessoal e social da vida privada, o que concretiza a liberdade positiva de cada um decidir os rumos de sua vida, “sem indevidas interferências externas da comunidade, particular ou do Estado, no qual essa liberdade se vincula intersubjetivamente com a comunidade, o Estado e o particular”; d) os projetos de lei pretendem transmudar o regime de direito de propriedade do Direito das Coisas para os direitos da personalidade, uma vez que o direito de personalidade do falecido transforma-se em bem patrimonial, pois a intimidade e a imagem da pessoa morta servem como fonte de riqueza econômica; e) os familiares ou terceiros somente devem ter o direito de gerenciar o acervo digital se houver declaração expressa do falecido, por instrumento público ou particular, inclusive em campos destinados para tais fins nos próprios ambientes eletrônicos, sem a necessidade de testemunhas, ou se houver comportamento concludente nesse sentido; f) caso tal declaração ou comportamento não estejam presentes, ou estejam atingidos por problema relativo à sua validade ou eficácia; todo o acervo digital que seja expressão da personalidade não deve ser alterado, visto ou compartilhado por qualquer pessoa; g) bens imateriais que projetem a privacidade de quem falece não devem e não deveriam ser acessados pelos herdeiros ou por terceiros não havendo manifestação de vontade do autor da herança.
Sobre as manifestações que podem ser feitas pelo falecido, ainda em vida, perante as redes sociais, sabe-se que o Facebook oferece duas opções. A primeira delas é de transformar o perfil da pessoa em um memorial na linha do tempo, permitindo homenagens ao falecido. A segunda opção é a exclusão do conteúdo por representante que comprove a morte do usuário. O Google, por sua vez, permite uma espécie de testamento digital informal, em que o usuário pode escolher até dez pessoas que receberão as informações acumuladas em vida. O Twitter autoriza que os familiares baixem todos os tweets públicos e solicitem a exclusão do perfil, em procedimento que tramita perante a própria empresa. Por fim, merece destaque a solução dada pelo Instagram, que autoriza a exclusão da conta mediante o preenchimento de formulário online com a comprovação de tratar-se de membro da família, sendo possível igualmente a transformação do conteúdo em um memorial.
Essas opções, como se nota, variam entre a valorização da autonomia privada e a atribuição dos bens digitais aos herdeiros. Talvez esse seja o melhor caminho para se construir uma proposta de alteração do Código Civil a respeito do tema, no capítulo do Direito das Sucessões. Assim como Pablo Malheiros, entendo que as projeções que existem no momento apresentam sérios problemas e, em certo sentido, são simplistas, devendo o debate a respeito do assunto ser ampliado e aprofundado.
Pontuo, a propósito, que a proteção dos dados pessoais acabou por ser regulamentada pela recente Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018, norma que trata da matéria em sessenta e cinco artigos e que entrará em vigor no País no início de 2020. A nova lei sofreu claras influências do Regulamento Geral de Proteção de Dados Europeu, de maio de 2018, amparando sobremaneira a intimidade. Em termos gerais, existe uma ampla preocupação com os dados e informações comercializáveis das pessoas naturais, inclusive nos meios digitais, e objetiva-se proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade; bem como o livre desenvolvimento da personalidade (art. 1º). Nos termos do preceito seguinte da norma específica, a disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos: a) o respeito à privacidade; b) a autodeterminação informativa, com amparo na autonomia privada; c) a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; d) a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; e) o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação; f) a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e g) os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais. Uma eventual projeção legislativa sobre herança digital deve dialogar com essa lei emergente, o que não parece ter sido feito com as propostas ora analisadas.
Como palavras finais, entendo que é preciso diferenciar os conteúdos que envolvem a tutela da intimidade e da vida privada da pessoa daqueles que não o fazem para, talvez, criar um caminho possível de atribuição da herança digital aos herdeiros legítimos, naquilo que for possível. Entendo que os dados digitais que dizem respeito à privacidade e à intimidade da pessoa, que parecem ser a regra, devem desaparecer com ela. Dito de outra forma, a herança digital deve morrer com a pessoa.
O desafio para encontrar uma premissa que afaste essa afirmação portanto, é grande, devendo ser encarado por todos os aplicadores e estudiosos do Direito Privado Brasileiro, muito além das simples proposições legislativas aqui abordadas.
[1] Coluna do Migalhas do mês de setembro de 2018.
[2] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da EPD. Professor do G7 Jurídico. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
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