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Doação: espécies, limites e o posicionamento da jurisprudência
Tatiane Donizetti
05/08/2021
A intenção do presente texto, como tantos outros que divulgamos regularmente no site do Escritório Elpídio Donizetti Advogados, é permitir a(o) advogada(o) transitar mais facilmente sobre determinadas matérias. O tema “doação” é importante não apenas para quem atua na advocacia contenciosa, mas especialmente para aqueles que prestam consultorias nas áreas de sucessões e contratos.
O art. 538 do Código Civil considera a doação como o contrato em que uma pessoa transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra. A doação é um ato de mera liberalidade e, em regra, um negócio jurídico gratuito. Diz-se “em regra”, porque há uma espécie de doação, considerada como onerosa, que estabelece um ônus ou uma contraprestação ao donatário (aquele que recebe a doação). Vejamos, a propósito, as espécies de doação[1]:
Doação pura: é a doação que se traduz simplesmente em uma liberalidade, sem fixação de qualquer fator eficacial.
Doação a termo: o doador estabelece um termo (evento futuro e certo) que delimita um prazo, findo o qual o donatário passa a exercer o domínio sobre a coisa doada.
Doação condicional: é aquela em que o doador estipula uma condição (evento futuro e incerto) ao negócio.
Doação onerosa, modal ou com encargo: é a doação gravada com algum ônus (art. 553, CC). “O encargo não é uma contraprestação, sendo proporcionalmente muito menos oneroso do que o benefício recebido. Isso porque, se o encargo for muito pesado, pode descaracterizar a doação, transformando-a, por exemplo, em uma compra e venda disfarçada”.
Doação contemplativa: em geral, é uma espécie de doação pura em que o doador declina os motivos que o levaram a fazer a doação. Há também a doação contemplativa em razão de casamento futuro (art. 546, CC). Neste caso, se o casamento não se realizar, a doação ficará sem efeito.
Doação remuneratória: equipara-se à completativa. É feita em retribuição a serviços prestados pelo donatário (Ex: doação ao médico que sempre cuidou do doador).
Doação sob a forma de subvenção periódica: Disposta no art. 545 do CC, é aquela em que o doador estipula a doação em prestações, que serão pagas periodicamente. Esse benefício pode subsistir para depois da morte do doador, mas se houver falecimento do donatário, mesmo ainda vigente a doação, os herdeiros deste não podem se beneficiar com o rendimento.
A pessoa que irá receber a doação não tem, como regra, prazo para aceitação. Entretanto, conforme art. 539 do Código Civil, o doador pode fixar prazo ao donatário, para declarar se aceita ou não a liberalidade. Não havendo manifestação, considerar-se-á aceita a doação (quem cala, consente). Tal regra não vale para a doação com encargo, pois, como visto, por ser uma modalidade de doação que cria um ônus para o donatário, sua aceitação não pode ser presumida.
O contrato de doação dependerá da formalização de escritura pública sempre que se tratar de bem imóvel em valor superior a 30 salários mínimos. Em se tratando de bem imóvel em valor inferior ou de bem móvel, não será necessária escritura, mas deverá ser formalizado contrato por escrito (art. 541, CC).
Excepcionalmente admite-se a doação verbal, desde que verse sobre bens móveis de pequeno valor e seja realizada imediatamente a tradição (art. 541, parágrafo único, CC). Para análise sobre o que é bem de pequeno valor, a doutrina propõe a apreciação do patrimônio do doador. Nesse sentido é o Enunciado 622 da VIII Jornada de Direito Civil do CJF: “Para a análise do que seja bem de pequeno valor, nos termos do que consta do art. 541, parágrafo único, do Código Civil, deve-se levar em conta o patrimônio do doador”. No âmbito da jurisprudência há decisões que não consideram essa informação, como, por exemplo, aquela proferida no julgamento do REsp 1.758.912/GO, que entendeu não ser de pequeno valor uma suposta doação de R$ 45.000,00 (quarenta e cinco mil reais), porque representava à época da liberalidade quase 83 salários mínimos.
A doação remuneratória, assim como todas as demais espécies de doação, deve respeitar a denominada “legítima”, que é a quota correspondente aos herdeiros necessários e corresponde a 50% do patrimônio do doador. Conforme entendimento do STJ, essa modalidade de doação, “caracterizada pela existência de uma recompensa dada pelo doador pelo serviço prestado pelo donatário e que, embora quantificável pecuniariamente, não é juridicamente exigível, deve respeitar os limites impostos pelo legislador aos atos de disposição de patrimônio do doador, de modo que, sob esse pretexto, não se pode admitir a doação universal de bens sem resguardo do mínimo existencial do doador, nem tampouco a doação inoficiosa em prejuízo à legítima dos herdeiros necessários sem a indispensável autorização desses, inexistente na hipótese em exame” (REsp 1708951/SE).
A partir desse precedente podemos visualizar outras classificações para a doação: 1) a doação INOFICIOSA, que é aquela em que o doador dispõe da legítima dos herdeiros necessários, que corresponde a 50% do patrimônio; 2) a doação UNIVERSAL, em que o doador disponibiliza todo o seu patrimônio, sem reservar o mínimo para sua subsistência (art. 548, CC).
Outro aspecto limitador da doação – qualquer que seja a modalidade – está relacionada à qualidade do donatário. Em verdade, não se trata propriamente de uma limitação, mas de regra que acarretará efeitos após a morte do doador, caso não seja observada. Trata-se da doação prevista no art. 544 do Código Civil. De acordo com esse dispositivo, “a doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança”. O Código Civil não exige a concordância dos demais herdeiros, sendo perfeitamente possível que um pai doe um de seus imóveis ao filho mais velho, desde que observada a legítima. Exemplo: Francisco tem dois imóveis, sendo cada um avaliado em R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). Ele poderá dispor, da forma como bem entender, de 50% desse patrimônio, inclusive doando um dos imóveis a um dos filhos. Nesse caso, após o falecimento de Francisco, o filho que recebeu a doação terá que trazer à colação o bem doado, pois a liberalidade do pai importa adiantamento da herança.
Na hipótese do art. 544 do Código Civil, não sendo realizada a colação, o donatário/herdeiro poderá perder o direito sobre a coisa. Somente se o doador tiver dispensado expressamente a colação, essa consequência não será aplicada. E a dispensa está prevista no art. 2.006 do CC: “A dispensa da colação pode ser outorgada pelo doador em testamento, ou no próprio título de liberalidade”.
O excesso na doação (invasão da legítima) é apurado levando-se em conta o valor do patrimônio do doador ao tempo da doação, e não o patrimônio estimado no momento da abertura da sucessão do doador. Para se buscar a anulação dessa doação deve ser proposta ação de querela inoficiosa pelos herdeiros necessários. O prazo prescricional é vintenário e conta-se a partir do registro do ato jurídico que se pretende anular (AgInt no REsp 1810727 / SP, j. 20/04/2020). O precedente vale para as doações realizadas na vigência do CC/1916. Para aquelas firmadas na vigência no Código Civil em vigor, o prazo é de 10 anos. Vale lembrar que, tratando-se de herdeiro cujo reconhecimento da filiação ocorreu após a morte do autor da herança, esse prazo somente se iniciará a partir do trânsito em julgado da sentença proferida na ação de investigação de paternidade, quando restará confirmada a condição de herdeiro (REsp 1605483/MG, j. 23/02/2021).
Há possibilidade, ainda, de doação entre cônjuges, qualquer que seja o regime (REsp 471.958/RS, DJe de 18/02/2009), salvo o da comunhão universal. Neste caso, a jurisprudência considera nula a doação, “na medida em que a hipotética doação resultaria no retorno do bem doado ao patrimônio comum amealhado pelo casal diante da comunicabilidade de bens no regime e do exercício comum da copropriedade e da composse” (REsp 1787027 / RS, j. 04/02/2020). E entre conviventes, é possível a doação?
Mesmo antes da equiparação da união estável ao casamento, já era possível a doação entre companheiros. Dúvida que pode surgir é se deverá ser aplicada a regra do art. 544 do Código Civil, ou seja, se o companheiro deverá trazer à colação o bem doado. O STF, ao equiparar o regime sucessório entre os institutos, não discutiu sobre a integração do companheiro ao rol de herdeiros necessários (STF. Plenário. RE 878694 ED, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 26/10/2018). Na doutrina há entendimentos diversos. Cita-se, por exemplo, o Prof. Flávio Tartuce, para quem o tratamento dado ao companheiro deve ser o mesmo, de modo que há obrigatoriedade de o companheiro declarar os bens recebidos em antecipação, sob pena de serem considerados sonegados (arts. 1.992 a 1.996), caso isso igualmente seja reconhecido ao cônjuge[2].
Por fim, embora não seja propriamente uma nova espécie de doação, temos a denominada doação com cláusula de reversão, que é aquela prevista no art. 547 do Código Civil. Em verdade, trata-se de disposição que pode ser inserida nos contratos de doação, a favor do doador.
O pacto de reversão é inserido pelo doador como forma de garantir que o bem doado volte para o seu patrimônio caso o donatário venha a falecer antes do doador. Cuida-se de verdadeira condição resolutiva expressa utilizada pelo doador para, através do instrumento da propriedade resolúvel, definir o destino do bem doado em caso de morte do donatário.
A cláusula de reversão (art. 547, CC) não pode ser estipulada em favor de terceiro, ou seja, Pedro (doador) não pode estipular que o imóvel doado para Amanda (donatária) seja revertido para Patrícia (esposa de Pedro) no caso de falecimento daquela (art. 547, parágrafo único, CC). Destaca-se, no entanto, que essa impossibilidade de reversão em favor de terceiro é vedada apenas se a doação tiver sido formalizada na vigência do CC/2002. Em outras palavras, “é válida e eficaz a cláusula de reversão em favor de terceiro, aposta em contrato de doação celebrado à luz do CC/1916, ainda que a condição resolutiva se verifique apenas sob a vigência do CC/2002” (STJ, Informativo 693). De acordo com o STJ, ao contrário do CC/2002, o diploma anterior, a despeito de autorizar a cláusula de reversão em favor do doador, nada dizia acerca da reversão em favor de terceiro. Assim, ante a lacuna legislativa, deve-se admitir a cláusula de reversão em favor de terceiro na hipótese de doações celebradas na vigência do CC/1916 em prestígio à liberdade contratual e à autonomia privada.
Próxima semana abordaremos as formas de revogação da doação. Até lá!
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