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Desmistificando a Common Law
Nelson Rosenvald
24/01/2018
Praticamente 1/3 de todas as pessoas vivem em locais aonde a lei é fortemente marcada pela Common Law. Esse é o legado da Grã-Bretanha do período em que foi a maior potência colonial do mundo. A célebre expressão Common Law recolhe três significados: a) um direito comum para todos os ingleses, que no medievo substituiu o sistema de esparsas normas locais; b) um sistema fundamentalmente baseado em decisões judiciais ao invés da lei e dos costumes; c) o conjunto de países que seguem não apenas a lei inglesa substantiva e processual, mas também o seu sistema judicial, a estrutura das profissões jurídicas e o estilo de pensamento jurídico. Destaca-se o fato de que as decisões dos outros países eram em ultima instância sujeitas à confirmação em Londres, o que acabou gerando uma uniformidade de longo alcance do direito, através da commonwealth.
Em um mundo globalizado ainda cabe a dicotomia common law x civil law? Talvez, o mais apropriado para os tempos atuais é substituir a clássica dualidade pelo sutil contraste entre o direito Inglês e as várias jurisdições da Europa continental, por 2 razões: a) a expressão genérica “civil law” se refere a um número de diferentes tradições jurídicas, situadas nas famílias “romanística”, “germânica” e “nórdica”. Em alguns aspectos, as divergências entre as três famílias são mais significativas do que a própria polarização civil law x common law; b) as próprias jurisdições da common law são bastante heterogêneas. Notadamente, há uma profunda distinção estrutural entre o direito inglês e o direito norte-americano. Essa diferença é tão pronunciada, que se por um lado faz sentido cogitar de uma tradição anglo-americana no sentido histórico, qualquer insinuação sobre um direito anglo-americano é equivocada. Ilustrativamente, em sede de responsabilidade civil, nos EUA a maior parte das reparações é fruto de decisões do júri, sendo os punitive damages comumente aplicados. Já na Inglaterra, as indenizações são determinadas por juízes e tribunais, sendo os exemplary damages (nomenclatura inglesa para os punitive damages) aplicados em hipóteses restritas, definidas em precedentes.
Especificamente com relação ao direito inglês, alguns fatores determinam até hoje o seu peculiar estilo legal. Primeiramente, instituições especialmente características como o trust, deveres fiduciários, e a doutrina da consideration. O princípio da liberdade contratual é venerado, havendo um forte ceticismo contra o viés funcionalista do Estado social ou mesmo da law and economics. O coração do sistema jurídico reside na legal certainty, que deve ser promovida mesmo que em detrimento da justiça substancial em um caso individual. A ideia da codificação nunca teve muitos adeptos, pelo ceticismo diante do método de submeter inteiras áreas do direito ao império de regras abstratas. Uma exceção foi Jeremy Bentham, que via os códigos como perfeito remédio para combater a tradição inglesa que ele reputava como arcaica, assistemática e inacessível ao cidadão.
Evidentemente, destaca-se o direito inglês como sendo um judge-made law, pois por séculos a função de criação da lei era deixada aos tribunais. A ideia do direito como um sistema harmônico nunca teve prestígio na Inglaterra, pois lá o raciocínio jurídico sempre se baseou em um procedimento indutivo ao invés de uma dedução com base em amplos princípios. Quando a pratica legal e o ensino do direito são puramente empíricos, o raciocínio jurídico se move do “particular para o particular” e nunca a partir do caso particular para princípios gerais de onde a decisão daquele caso será solucionada. Um bom exemplo é a ausência de um principio geral da boa-fé, como guia para a solução de casos individuais. Diferentemente, no direito inglês esse papel é exercido por um conjunto de doutrinas legais específicas, funcionalmente equivalentes a várias características da versão continental do princípio (estoppel, duty to mitigate).
De fato, Max Weber pontuou a enorme influencia exercida pelos mais prestigiados advogados sobre o estilo legal de toda uma sociedade. Na cena inglesa, os mais notáveis causídicos nunca foram professores ou funcionários públicos, mas exclusivamente praticantes da advocacia, que não apenas desempenham atividades diárias nos tribunais, como também exercem o monopólio da educação jurídica dos jovens profissionais. Tradicionalmente, os advogados deixam de lado a teorização e se dedicam à produção de listas de contratos e ações que sejam uteis para atender as necessidades particulares dos litigantes.
Atualmente há uma clara convergência entre a common law e a civil law. Os aprimoramentos jurídicos do último quartel do século XX alteraram tanto o direito inglês como o direito europeu continental, de forma a criar uma grande convergência. O nascimento de uma doutrina jurídica, tornou o direito inglês mais acadêmico, em um ambiente em que o legislador intervém para trazer maior racionalidade as decisões dos juízes. Por outro lado, a influência doutrinária na Europa continental é declinante e a influência do judiciário cresce enormemente, havendo maior espaço para o método indutivo e um saudável pragmatismo para o enfrentamento de problemas reais. Assim, não é mais possível relacionar a civil law ao direito codificado e a common law com a jurisprudência: eles gradualmente se aproximam, mesmo em suas técnicas e métodos legais. A realidade das fontes legais é muito mais complexa em ambos os lados. É claro que subsistem diferenças significativas, mas o antigo ideal das diferenças irreconciliáveis em termos de mentalidades jurídicas se torna cada vez mais insustentável.
Veja também:
- O novo dano moral trabalhista – Um ensaio sobre a cegueira (do legislador)
- A moldura da Propriedade Fiduciária após a Lei 13.043/2014
- O Princípio da Concentração na Matrícula Imobiliária – Lei 13.097/2015.
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