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Contratos Coligados
Flávio Tartuce
17/03/2015
Os contratos coligados têm grande relevância no mundo contemporâneo, representando clara expressão da função social dos pactos, prevista, entre outros dispositivos, pelo art. 421 do Código Civil de 2002. Trata-se de situação muito comum na realidade pós-moderna, notadamente pelo incremento das relações jurídicas imateriais e incorpóreas pela via digital.
Em um contexto de sua definição, conforme se extrai da obra de Orlando Gomes, “Os contratos coligados são queridos pelas partes contratantes como um todo. Um depende do outro de tal modo que cada qual, isoladamente, seria desinteressante. Mas não se fundem. Conservam a individualidade própria, por isso se distinguindo dos contratos mistos”.[1] Entre os contemporâneos, expõe Ruy Rosado de Aguiar Jr. que “é possível que os figurantes fujam do figurino comum e enlacem diversas convenções singulares (ou simples) num vínculo de dependência, acessoriedade, subordinação ou causalidade, reunindo-as ou coligando-as de modo tal que as vicissitudes de um possam influir sobre o outro”[2]. Concebe-se, portanto, na linha da doutrina esposada, que os contratos coligados ou conexos são os negócios que estão interligados por um ponto ou nexo de convergência, seja ele direto ou indireto, material ou imaterial. Em muitas situações concretas, é possível identificar um negócio tido como principal e outro como acessório dentro da reunião ou grupos de contratos.
O fenômeno revela a realidade da hipercomplexidade contratual, o que gera a incidência imediata de diversas normas à conexão, caso do Código Civil de 2002 e do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, em incessante diálogo de interação. Claras coligações são percebidas nos contratos eletrônicos e relativos às comunicações, nos contratos bancários, nos negócios de plano de saúde e nos contratos celebrados para a aquisição da casa própria; os últimos muito bem abordados no belo trabalho de Rodrigo Xavier Leonardo, que prefere o termo redes contratuais, propondo uma sutil diferenciação em relação à coligação contratual.[3] Em todas as hipóteses citadas, as duas normas têm subsunção concomitante, sem prejuízo de outras leis que podem incidir, de acordo com as peculiaridades do caso concreto.
Destaque-se, nesse contexto, a aplicação das regras da teoria geral do negócio jurídico e da teoria geral dos contratos à coligação, caso dos seus princípios informadores. Nessa linha, o Enunciado n. 421, da V Jornada de Direito Civil do Superior Tribunal de Justiça, prescreve que “Os contratos coligados devem ser interpretados segundo os critérios hermenêuticos do Código Civil, em especial os dos arts. 112 e 113, considerada a sua conexão funcional”. Sendo assim, pela última norma, incidem às coligações os princípios da boa-fé e da função social, este pela expressão relativa aos usos do local da celebração do negócio. Não se olvide, ainda, a possibilidade de aplicação de princípios constitucionais à conexão, como nos casos em que o contrato envolve valores fundamentais protegidos pelo Texto Maior, como a saúde e a moradia.
A jurisprudência nacional tem enfrentado concreções relativas às responsabilidades que decorrem de tais interações contratuais, inclusive no âmbito de incidência da Lei Consumerista. A título de exemplo, diante da conexão contratual, julgado do Tribunal Paulista entendeu pela responsabilidade solidária do laboratório que realizou a análise clínica, do hospital que o sedia e do plano de saúde por erro de diagnóstico, determinando o pagamento de indenização por danos morais a consumidor prejudicado pelo resultado equivocado (TJSP, Apelação Cível n. 568.839.4/6, Acórdão n. 3945845, São Paulo, 4ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Francisco Loureiro, julgado em 16/07/2009, DJESP 10/08/2009). Aplicou-se a premissa da solidariedade na prestação de serviços, retirada do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor.
Do Superior Tribunal de Justiça podem ser destacados os arestos que concluem que o inadimplemento de um determinado contrato pode gerar a extinção de outro, diante de uma relação de interdependência. A ilustrar, precisa ementa da lavra do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, segundo a qual “celebrados dois contratos coligados, um principal e outro secundário, o primeiro tendo por objeto um lote com casa de moradia, e o segundo versando sobre dois lotes contíguos, para área de lazer, a falta de pagamento integral do preço desse segundo contrato pode levar à sua resolução, conservando-se o principal, cujo preço foi integralmente pago” (STJ, REsp 337.040/AM, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr., QUARTA TURMA, julgado em 02.05.2002, DJ 01.07.2002).
Da mesma Corte Superior, entende-se que o contrato de trabalho entre clube e atleta profissional é o negócio principal, sendo o contrato de exploração de imagem, o negócio jurídico acessório, o que é fundamental para fixar a competência da Justiça do Trabalho para apreciar a lide envolvendo os pactos (STJ, AgRg no CC 69.689/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/09/2009, DJe 02/10/2009). Cumpre destacar, ato contínuo, decisão superior que reconheceu a dependência econômica de contratos comuns no mercado de combustíveis, caso dos contratos de fornecimento e de comodato de equipamentos, celebrados entre distribuidoras e postos revendedores (STJ, REsp. 985.531/SP, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 01/09/2009, DJe 28/10/2009).
Numerosos outros exemplos podem ser retirados da prática contratual e da jurisprudência nacional, sendo a coligação contratual uma realidade e um desafio que merece especial atenção dos estudiosos e aplicadores do Direito. Cabe à civilística desatar os nós que muitas vezes são encontrados nas conexões negociais, para as corretas interpretações e julgamentos relativos à matéria. Os princípios contratuais contemporâneos são importantes ferramentas para tais intricadas tarefas.