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AGRONEGÓCIO
CIVIL
IMOBILIÁRIO
Da competência registral da alienação fiduciária de produtos e subprodutos agropecuários no Ofício de Registro de Imóveis

GEN Jurídico
25/05/2023
Fábio Ribeiro dos Santos
Registrador no Estado de São Paulo. Atualmente, exerce a delegação do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Campos de Jordão/SP. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Membro da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário/SP
Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro
Registrador no Estado de São Paulo. Atualmente, exerce a delegação do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos, Civil de Pessoas Jurídicas e Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas da Comarca de Pedreira/SP. Professor convidado em diversos cursos de graduação e pós-graduação em Direito Registral e em Direito e Negócios Imobiliários. Autor dos livros “Alienação Fiduciária de Bens Imóveis” (RT, 2ª Edição, 2022); e Registro de Imóveis: Anotações à Lei 14.382/2022 (Forense, 2023)
Sumário: 1. Introdução, noções elementares e contextualização. 2. Produtos e subprodutos agropecuários: a natureza das coisas, os regimes jurídicos e o exame do bem in itinere. 3. Propriedade fiduciária como patrimônio de afetação e garantia especial. 4. A tipicidade do fato inscritível e a revogação expressa da competência do Registro de Títulos e Documentos. 5. Inconcebível admitir a definição da atribuição registral conforme o título formal e a concentração das garantias do agronegócio no Registro de Imóveis. 6. A interpretação literal e a generalidade das normas de garantias reais. 7. Microssistema de financiamento para o agronegócio e diálogo das fontes. 8. Esclarecendo a cobrança emolumentar no Registro de Imóveis; 9. Notas conclusivas. 10. Referências bibliográficas.
1. Introdução, noções elementares e contextualização
A Lei 8.929/1994, que regulamenta as Cédulas de Produto Rural (“CPR’s”), tem sido objeto de iterativas alterações legislativas. As reformas promovidas pela Lei 13.986/2020 (“Lei do Agro”) e também pela Lei 14.421/2022 merecem destaques. Esta última teve por escopo alterar diversas leis extravagantes que contemplam disposições normativas acerca do agronegócio e seu financiamento.
A Cédula de Produto Rural, em linhas gerais, consiste em promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantias cedularmente constituídas. “Cuida-se de uma cédula diferente de todas as outras. (…) É um título circulatório, uma promessa de que se entregará o produto a determinada pessoa, (…) podendo vir acompanhada de uma garantia de que será entregue o produto”.1 É, pois, título representativo da
1 RIZZARDO, Arnaldo. Direito do agronegócio. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.p.507
promessa de entregar, em data futura, o produto rural 2 indicado, na quantidade e qualidade especificadas.
Não é demais lembrar que o agronegócio no Brasil, como um dos sustentáculos do PIB brasileiro, recebe atenção especial e constante dos poderes Executivo e Legislativo, sendo de grande relevância à economia nacional o fomento geral das atividades agropecuárias, notadamente através da concessão de créditos mediante a consecução de financiamentos de safras, insumos, produtos, maquinários, implementos etc.
Nesse cenário, descortinam-se como relevantíssimos mecanismos de acesso ao crédito o instituto da alienação fiduciária de produtos e subprodutos agropecuários. Ora, tratando-se de garantia fiduciária, ou mais tecnicamente, propriedade fiduciária sua constituição (rectius: pressuposto de existência) reside na inscrição no registro público competente.3 Não é por outro motivo que o art. 12, § 4º, da Lei 8.929/1994, com redação dada pela Lei 14.421/2022, sedimenta com clareza que “a alienação fiduciária em garantia de produtos agropecuários e de seus subprodutos, nos termos do art. 8º desta Lei, será registrada no cartório de registro de imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia”.
A alteração legislativa chama de pronto à atenção quando se percebe a revogação imediata da redação anterior do mesmo dispositivo, que previa: “A CPR, na hipótese de ser garantida por alienação fiduciária sobre bem móvel, será averbada no cartório de registro de títulos e documentos do domicílio do emitente”.
Afinal, qual é o registro competente para constituição da propriedade fiduciária de produtos e subprodutos agropecuários no Brasil: Registro de Imóveis ou Registro de Títulos e Documentos? Seria possível definir a competência registral exclusivamente a partir do título causal que contempla a garantia a ser constituída? Qual teria sido a ratio que moveu o legislador a alterar a competência registral?
2. Produtos e subprodutos agropecuários: a natureza das coisas, os regimes jurídicos e o exame do bem in itinere
O Código Civil brasileiro, dentre os vários critérios classificatórios adotados, distingue os bens móveis de bens imóveis. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente (CC, art. 79). De outro bordo, são bens móveis aqueles suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social (CC, art. 82). É certo, porém, que a complexidade das relações jurídicas, por vezes, exige do legislador a aplicação direta de um regime jurídico determinado a objetos específicos para atingir certa finalidade social.4 Nas palavras de José de Oliveira Ascensão:
Móveis e imóveis só a visão social os cria. Se por ventura houver utilidade em submeter ao mesmo regime jurídico realidades que por si não são nem uma coisa nem outra não se deve proceder for ficção, imobilizando-as ou mobilizando-as, mas sim determinar diretamente que o regime jurídico dos imóveis ou dos móveis, lhes é aplicável.5
Ainda nesse quadrante, releva para a correta compreensão dos direitos reais as noções elementares dos modos de aquisição da propriedade. Para o que mais de perto interessa ao tema aqui versado, recorde-se que no direito legislado nacional a acessão é um dos modos de aquisição da propriedade imobiliária. A partir da noção conceitual de bem imóvel (rectius: o solo e tudo o que nele se incorpora natural ou artificialmente) é
certo que construções e plantações assumem a natureza de bens imóveis. E sempre foi assim. Trata-se de noção milenarfundada no princípio superficies solo cedit (princípio geral da acessão). A acessão através da plantação (plantatio) é, pois, um modo de aquisição da propriedade imóvel (CC, art. 1.248, V). 6 Equivale dizer, o dono da coisa a que a outra acede, passa a ser, desde o momento da adesão, o proprietário também da outra. É a acessão modo originário de adquirir propriedade imóvel. O proprietário da coisa imóvel obtém a propriedade da nova parte integrante.
Seja como for, ainda que de algum modo o produto final da atividade da agricultura circule com todas as características de um bem móvel, é igualmente certo que para fins de constituição da propriedade fiduciária o legislador considerou relevante economicamente sua natureza no momento da atividade produtiva. Trata-se de análise complexa cujo bem objeto da garantia a ser ofertada pelo produtor rural deve ser analisado em trânsito, in itinere. Não sem razão. O produtor ordinariamente necessita de capital para desenvolver sua atividade produtiva; o que naturalmente antecede à etapa final da produção com a disposição do seu produto ao mercado. A consideração da coisa em seu processo foi muito bem delineada nas consagradas lições de Pontes de Miranda:
A chamada acessoriedade pode ser apreciada no passado, no presente e no futuro. Os frutos7 são acessórios quanto ao futuro; enquanto pendem, são partes integrantes. Assim, se há de explicar que no art. 43, I [do Código Civil de 1916], se fale do que entra no conceito de imóvel e se nomeiem as árvores e frutos pendentes, e, no art. 61 [do Código Civil de 1916], se diga que “são acessórios do solo: I. os produtos orgânicos da superfície”. Deve-se ler o art. 61 como se enunciasse: na concepção do direito brasileiro, a terra, o solo, é que é o cerne ou núcleo da propriedade imobiliária; tudo mais é parte integrante do bem, acedendo ao solo. (…) A acessoriedade é no futuro, quando deixarem de ser partes integrantes. 8
Arremata com percuciência o eminente tratadista:
Tudo que está em conexão orgânica com o solo ou com os alicerces é, para o direito, parte do solo, não coisa separada. Não sendo coisa, por si mesma, não pode ser coisa móvel ou imóvel. Se não perderam a conexidade, os produtos orgânicos da superfície são partes integrantes, e não coisas separadas.9
É, assim, da essência da agricultura a atividade de plantação: as sementes são lançadas à terra, cultivadas durante todo processo natural de transformação biológica e, ao final, com a colheita, transformam-se em produtos. Note-se que no início do ciclo produtivo tem-se bem imóvel por acessão artificial, física ou industrial, isto é, a acessão decorrente de conduta humana. Tanto assim que o art. 1.253 do Código Civil determina que toda construção ou plantação existente em um terreno presume-se feita pelo proprietário e à sua custa, até que se prove o contrário. A práxis registral tem revelado que o objeto mais comum das garantias em geral prestadas no ambiente do agronegócio são as safras futuras. Exatamente nessa medida que o art. 8º da Lei 8.929/1994 possui redação muito precisa ao garantir a higidez e eficácia da contratação fiduciária para os gêneros agrícolas:
Art. 8º A não identificação dos bens objeto de alienação fiduciária não retira a eficácia da garantia, que poderá incidir sobre outros do mesmo gênero, qualidade e quantidade, de propriedade do garante.
§ 1º A alienação fiduciária de produtos agropecuários e de seus subprodutos poderá recair sobre bens presentes ou futuros, fungíveis ou infungíveis, consumíveis ou não, cuja titularidade pertença ao fiduciante, devedor ou terceiro garantidor, e sujeita-se às disposições previstas na Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e na legislação especial a respeito do penhor, do penhor rural e do penhor agrícola e mercantil e às disposições sobre a alienação fiduciária de bens infungíveis, em tudo o que não for contrário ao disposto nesta Lei.
§ 2º O beneficiamento ou a transformação dos gêneros agrícolas dados em alienação fiduciária não extinguem o vínculo real que se transfere, automaticamente, para os produtos e subprodutos resultantes de beneficiamento ou transformação. (destaques nosso)
Note-se, assim, que a própria lei flexibiliza a natureza jurídica dos bens alienados fiduciariamente, considerando, como deve ser, a essência da atividade produtiva que implica naturalmente em beneficiamento e/ou transformação dos gêneros agrícolas. Destarte, esses procedimentos, per se, não possuem aptidão para desconfigurar o vínculo real existente, na medida em que, considerando todo o processo produtivo, a aderência da garantia fiduciária dar-se-á ope legis aos produtos e subprodutos alcançados pela atividade financiada. Em outras palavras, o legislador considerou a possibilidade de a alienação fiduciária incidir em todas as fases do ciclo produtivo da agricultura, sendo certo que a garantia não se desnatura nem perde sua eficácia com o beneficiamento ou transformação dos gêneros agrícolas.
3. Propriedade fiduciária como patrimônio de afetação e garantia especial
Sabe-se que a contratação da alienação fiduciária de coisas é o negócio jurídico mais utilizado no cenário contemporâneo com escopo de garantia no âmbito dos mútuos bancários. Dada a complexidade endógena da relação jurídica subjacente a essas contratações, muito se discute em doutrina a respeito de sua natureza. As divergências, no entanto, relevam para o ambiente acadêmico e possuem pouco relevo prático, afinal, todas as correntes possuem suas virtudes a depender da lente pela qual se observa esse complexo instituto.
Para o que interessa mais de perto ao tema em testilha, tem-se entendido com razão que a constituição da propriedade fiduciária gera verdadeiro patrimônio de afetação. Afetar significa destinar algo a uma finalidade específica. Considerando que a responsabilidade no direito contemporâneo é patrimonial, toda a massa que compreende o patrimônio do devedor responde por suas obrigações. Ao se afetar determinado bem integrante de uma universalidade patrimonial para garantia de dívida específica, opera se a concentração daquele débito (schuld) no bem afetado, que, nessa medida, não poderá ter outra destinação. É dizer, o bem afetado permanece fora do comércio (extra commercium) durante toda a fidúcia.10
A especialidade da relação jurídica fica muito evidente:
Pela teoria da afetação, promove-se verdadeira segregação patrimonial ou qualificação de determinado acervo patrimonial por meio da imposição de encargos que vinculam os bens englobados a uma finalidade específica. De acordo com essa teoria, admite-se a existência de múltiplas massas patrimoniais sob titularidade de um mesmo sujeito, constituídas com o fim de proteger um bem socialmente relevante ou viabilizar a exploração de determinada atividade econômica. Cuida-se, pois, da consagração de um patrimônio mediante sua estrita vinculação à finalidade específica. Nessa lápide, afetação significa prender ou ligar um patrimônio a um empreendimento, a uma obrigação, a um compromisso, não se liberando enquanto perdura a relação criada entre aquele que se obriga e os credores da obrigação. Desse modo, não se retira o bem do patrimônio do titular, mas apenas o mantém consagrado, de modo que não se comunique com o restante do seu patrimônio. (…) Em síntese, o patrimônio de afetação deve ser compreendido como um regime especial de propriedade, sendo considerado uma garantia em favor dos credores. Sob esse viés, assume natureza jurídica de verdadeira garantia real.11
No entanto, ressalve-se que a propriedade fiduciária dos produtos e subprodutos agropecuários e seu efeito de consagração patrimonial à dívida somente se constitui com o registro da garantia no registro público competente, que, como se concluirá, é o Ofício de Registro de Imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia. Nessa linha de raciocínio, o Superior Tribunal de Justiça já sedimentou que sem o registro constitutivo da propriedade fiduciária não se admite a sujeição da garantia aos procedimentos especiais de excussão:
Quanto à propriedade fiduciária de bem imóvel, regida pela Lei 9.514/97, verifica-se que a garantia somente se constitui com o registro do contrato que lhe serve de título no registro imobiliário do local onde o bem se situa. (…) O registro, de fato, tem natureza constitutiva da propriedade fiduciária, assim como ocorre em relação aos demais direitos reais sobre imóveis. Dessa maneira, sem o registro do contrato no competente Registro de Imóveis, há simples crédito, situado no âmbito obrigacional, sem qualquer garantia real nem propriedade resolúvel transferida ao credor.(…) Na ausência de registro do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no competente Registro de Imóveis, como determina o art. 23 da Lei 9.514/97, não é exigível do adquirente que se submeta ao procedimento de venda extrajudicial do bem para só então receber eventuais diferenças do vendedor.12
O registro é, pois, decisivo. Sem ele não se constitui a garantia fiduciária e os bens não são consagrados àquela relação jurídica. Em se tratando de agronegócio a afetação é ainda mais forte, garantindo-se a intangibilidade dos bens objetos da garantia em razão de sua vinculação ao fomento do crédito agrícola. É exatamente nesse espírito que o art. 18 da Lei 8.929/1994 determina que “os bens vinculados à CPR não serão penhorados ou sequestrados por outras dívidas do emitente ou do terceiro prestador da garantia real, cumprindo a qualquer deles denunciar a existência da cédula às autoridades incumbidas da diligência, ou a quem a determinou, sob pena de responderem pelos prejuízos resultantes de sua omissão”. A este respeito também é remansosa a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
Em se tratando de agronegócio a afetação é ainda mais forte, garantindo-se a intangibilidade dos bens objetos da garantia em razão de sua vinculação ao fomento do crédito agrícola. É exatamente nesse espírito que o art. 18 da Lei 8.929/1994 determina que “os bens vinculados à CPR não serão penhorados ou sequestrados por outras dívidas do emitente ou do terceiro prestador da garantia real, cumprindo a qualquer deles denunciar a existência da cédula às autoridades incumbidas da diligência, ou a quem a determinou, sob pena de responderem pelos prejuízos resultantes de sua omissão”. A este respeito também é remansosa a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
A Cédula de Produto Rural (Lei n. 8.929/1994) é instrumento-base do financiamento do agronegócio, facilitadora da captação de recursos. É título de crédito, líquido e certo, de emissão exclusiva dos produtores rurais, suas associações e cooperativas, traduzindo-se na operação de entrega de numerário ou de mercadorias, com baixo custo operacional para as partes.
Tendo em vista sua função social e visando garantir eficiência e eficácia à CPR, o art. 18 da Lei n. 8.929/1994 prevê que os bens vinculados à CPR não serão penhorados ou sequestrados por outras dívidas do emitente ou do terceiro prestador da garantia real, cabendo a estes comunicar tal vinculação a quem de direito.
A impenhorabilidade criada por lei é absoluta em oposição à impenhorabilidade por simples vontade individual. A impenhorabilidade absoluta é aquela que se constitui por interesse público, e não por interesse particular, sendo possível o afastamento apenas desta última hipótese.
O direito de prelação em favor do credor cedular se concretiza no pagamento prioritário com o produto da venda judicial do bem objeto da garantia excutida, não significando, entretanto, tratamento legal discriminatório e anti-isonômico, já que é justificado pela existência da garantia real que reveste o crédito privilegiado. Os bens vinculados à cédula rural são impenhoráveis em virtude de lei, mais propriamente do interesse público de estimular o crédito agrícola, devendo prevalecer mesmo diante de penhora realizada para garantia de créditos trabalhistas.13
4. A tipicidade do fato inscritível e a revogação expressa da competência do Registro de Títulos e Documentos
Um dos princípios mais basilares do Registro de Imóveis é o da legalidade. Ao Oficial Registrador somente é dado praticar os atos que a lei determina. Os atos de registro em sentido estrito e os atos de averbação – únicas morfologias passíveis de travestir uma inscrição predial no sistema do fólio real inaugurado pela vigente Lei 6.015/1973 – constam expressamente da lei.
Nessa medida, o rol do art. 167 da LRP veicula os atos passíveis de ingresso no álbum imobiliário. O inciso I arrola as hipóteses de atos de registro em sentido estrito e o inciso II as hipóteses de averbamento. Após muito debate doutrinário e jurisprudencial, é possível afirmar que prevalece o entendimento de que o rol do art. 167, I, é taxativo, numerus clausus, ao passo que o rol do art. 167, II, é exemplificativo, numerus apertus, em razão da cláusula geral de abertura conferida pela norma do art. 246 da LRP.14
Em verdade, a tipicidade dos fatos inscritíveis em nada se confunde com tipicidade dos direitos reais. A dificuldade de distinção tem levado o intérprete e o operador do sistema registral a aceitar passivamente a ideia de que existe igualmente uma rigorosa tipicidade dos fatos inscritíveis e se nega registro de títulos simplesmente porque não são encontrados no rol da Lei de Registros Públicos. Esta cômoda solução que se adota em nome da segurança jurídica afasta cada vez mais o registro da realidade e o faz perder o seu relevante papel de fornecer informação segura para orientar as relações jurídicas.15 Assim, perfeitamente possível o registro stricto sensu de determinado fato jurídico que não se encontra no rol do art. 167, I, da LRP.16 Em outras palavras, o pressuposto para que haja o acesso do fato ao fólio é, tout court, sua previsão legal.
Nessa trilha, a tipicidade do fato inscritível para levar-se ao Registro de Imóveis a alienação fiduciária de produtos e subprodutos agropecuários é haurida do art. 12, § 4º da Lei 8.929/1994:
A alienação fiduciária em garantia de produtos agropecuários e de seus subprodutos, nos termos do art. 8º desta Lei, será registrada no cartório de registro de imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia, aplicando-se ao registro o disposto no § 2º do art. 2º da Lei nº 10.169, de 29 de dezembro de 2000.
Embora o dispositivo telado esteja alocado na Lei da CPR, para fins de delimitação da competência material do Registro de Imóveis, é o quanto basta tratar-se de lei em sentido formal. Está, pois, atingida suficientemente a tipicidade para o fato inscritível no fólio predial.
Em passo seguinte, é curial rememorar que o dispositivo legal em comento (Lei 8.929/1994, art. 12, § 4º) foi alterado pela Lei 14.421/2022. E não foi mera alteração de redação legislativa. Nota bene! Alterou-se substancialmente a competência registral, já que sua redação anterior era peremptória em destinar ao Ofício de Registro de Títulos e Documentos a inscrição publicitária. Dizia o dispositivo revogado: “A CPR, na hipótese de ser garantida por alienação fiduciária sobre bem móvel, será averbada no cartório de registro de títulos e documentos do domicílio do emitente”.
Em síntese, revogou-se expressa e peremptoriamente a competência do RTD para registro de alienação fiduciária de produtos e subprodutos agropecuários, deferindo-a, desde então, ao Ofício de Registro de Imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia.
5. Inconcebível admitir a definição da atribuição registral conforme o título formal e a concentração das garantias do agronegócio no Registro de Imóveis
A interpretação restritiva de que somente seria possível o registro no Ofício de Registro de Imóveis da alienação fiduciária de produtos e subprodutos agropecuários quando constituída em CPR não pode prosperar.
Enquanto sistema, não faz qualquer sentido que a delimitação de atribuição entre os Ofícios de Registros Públicos seja definida pela natureza do título formal. Equivale dizer, a atribuição de competência deve ter por base de duas uma: primeiro, a natureza jurídica do bem objeto de registro; ou, subsidiariamente, quando essa natureza
assumir relevante complexidade em razão de seu processo produtivo – como no caso dos gêneros agropecuários –, deve-se considerar sua finalidade, isto é, a delimitação da competência registral considerar-se-á o fim a que se destina aquele ato, fato ou negócio jurídico, tendo-se em conta, evidentemente, a vocação e a estrutura institucional de cada especialidade de Registros Públicos.
Notadamente, a intenção da lei é eleger a destinação do crédito subjacente à garantia real como o critério definidor do seu regime jurídico, ao invés da forma pela qual ele é constituído (rectius: o título que lhe serve de revestimento). No caso do crédito destinado ao agronegócio, e suas garantias correlatas, a lei em várias oportunidades tem feito a escolha certeira de eleger o Ofício Predial como sendo o lócus de segurança para albergar essas relações jurídico-reais.
Ora, sempre foi assim com os penhores rural, agrícola, mercantil e industrial. Note-se que há estreita relação das garantias pignoratícias com as garantias fiduciárias constituídas sobre os produtos e subprodutos agropecuários. Nesse molde o legislador foi muito claro ao determinar a aplicação do regime jurídico-registral desses penhores especiais à alienação fiduciária dos produtos agropecuários. Insista-se: não se trata de engendrar recurso hermenêutico ou aplicar técnicas forjadas de interpretação. Cuida-se simplesmente de cumprir a estrita legalidade: o art. 8º, §1º, da Lei 8.929/1994 faz remissão textual à “legislação especial do penhor, do penhor rural e do penhor agrícola e mercantil”, o que faz concluir, sem qualquer dificuldade, a aplicação da regra especial do art. 178, VI, da Lei 6.015/1973, antes da regra geral do Código Civil que atribui a competência para registro da propriedade fiduciária de bens móveis ao Registro de Títulos e Documentos.17
Não é sem razão a escolha do Registro de Imóveis pelo legislador. A publicidade do sistema registral imobiliário é qualificada, eficaz e segura. Assentada em instituição forte e secularmente consagrada nos países de origem romano-germânica. No Registro de Imóveis os interessados podem obter eletronicamente informações acerca da existência de garantias reais, através de certidões expedidas a partir de simples consultas a indicadores e repositórios confiáveis elaborados sob a responsabilidade de um delegatário preparado e que tem em seu labor diário a experiência de transmitir esse tipo de informação. A partir das certidões expedidas pelos Ofícios Prediais, os players do
mercado – aqui notadamente do agronegócio – dispõem de elementos concretos para contratação segura; o que diminui sensivelmente a assimetria informacional e, ao fim e ao cabo, reduz significativamente os custos das transações, com redução de juros e oferta de melhores condições de negociação.
Em palavras mais simples, sendo a competência do Ofício Predial basta que os interessados em contratar com o produtor solicitem à serventia predial da circunscrição onde está situado o respectivo imóvel rural, a unidade imobiliária produtiva, a expedição de certidão a respeito da existência de direitos, garantias e/ou ônus reais ali registrados.
De mais a mais, sob o enfoque da morfologia registral, em termos de inscrições prediais o registro da alienação fiduciária dos produtos e subprodutos agropecuários deve ser ultimado no Livro 3 – Registro Auxiliar, seguido de posterior averbação da existência do registro da garantia fiduciária no Livro 2 – Registro Geral, ou seja, dever
se-á promover a averbação remissiva na matrícula do imóvel onde se situam os aludidos produtos. Assim, a publicidade atinge seu ápice, gerando oportuna amarração das informações que serão publicizadas à sociedade. Frise-se uma vez mais: não se trata de engenharia interpretativa, mas apenas cumprimento fiel da lei que determina no seu art. 8º, § 1º, da Lei 8.929/1994 a aplicação da mesma sistemática registral dos penhores especiais registráveis no Ofício Predial.
Essas garantias pignoratícias, como cediço, são registradas no Livro 3 – Registro Auxiliar, com esteio no art. 178, IV, da LRP, seguidas do averbamento complementar da existência dos penhores nas matrículas dos imóveis de titularidade do devedor pignoratício, na moldura do art. 167, II, nº 34, da LRP. Em apertada síntese, a morfologia registral para as garantias fiduciárias que recaiam sobre produtos e subprodutos agropecuários, tal como os penhores especiais que ingressam no Registro de Imóveis, serão objeto de dupla inscrição:
Cuida-se de relevante amarração do sistema registral com escopo de garantir publicidade qualificada ao se noticiar a existência de penhores registrados no Ofício Predial. Em realidade, tem-se verdadeira inscrição complementar aos registros ultimados no Livro 3 – Registro Auxiliar. Por isso, pode ser lançada inclusive ex officio, ou seja, ainda que não haja rogação do interessado para este desiderato. (…) Se o bem móvel objeto do penhor registrado no Livro 3 – Registro Auxiliar está situado em imóvel do próprio devedor ou se este é titular de outro bem imóvel naquela circunscrição, de rigor o cabimento da averbação enunciativa (averbação-notícia).18
O acerto do legislador em eleger o Registro de Imóveis, reverbera, assim, na publicidade, fim primeiro do sistema registral. Afinal, não se pode negar que se a competência continuasse no Ofício de Registro de Títulos e Documentos, tal como no cenário legislativo revogado, em razão das incertezas que permeiam o art. 130 da LRP, sua atribuição territorial difusa e volátil – lastreada fundamentalmente em domicílio das partes – agregada à inexistência de uma central de informações que consiga precisar com exatidão a existência (ou não) de garantias registradas, a segurança jurídica das transações no agronegócio estariam gravemente prejudicadas. Por tudo isso, outro não foi o objetivo do legislador senão concentrar no Registro de Imóveis as garantias corriqueiramente utilizadas no financiamento das atividades inerentes ao agronegócio.
6. A interpretação literal e a generalidade das normas de garantias reais
O argumento de que a Lei 8.929/1994 é especial para o regulamento das Cédulas de Produto Rural, assim como o discurso de que o art. 12, caput, o qual se refere ao § 4º, também se restringe exclusivamente às CPR’s, não convencem.
E os motivos, novamente, são inderrubáveis.
A interpretação gramatical, pela literalidade dos dispositivos enfocados, permite concluir que os comandos normativos do art. 8º, § 1º e do art. 12, § 4º, ambos da Lei 8.929/1994, não se restringem às CPR’s. Ora, no seu contexto, a mesma Lei, quando veicula norma de aplicação restrita às CPR’s, traz expressamente a menção textual a esses títulos de crédito [v.g., “a CPR conterá…” (art. 3º, caput); “a CPR admite…” (art. 5º); “a CPR poderá ser aditada…” (art. 9º, caput)], o que não foi repetido nos dispositivos acima destacados. Daí surge a possibilidade de questionar se a omissão do texto legal é relevante ou não. Bem vistas as coisas, a leitura dos arts. 6º e seguintes da Lei 8.929/1994 revela que as normas ali contidas têm maior grau de generalidade e não se limitam, necessariamente, às CPRs. À guisa de exemplo, o art. 8º, caput, da Lei em exame pode
perfeitamente aplicar-se a toda e qualquer alienação fiduciária de bens móveis fungíveis. Na mesma ordem de ideias, é crível e razoável sedimentar que a Lei 13.986/2020 e, em especial, a Lei 14.421/2022, projetaram a criação de um subsistema próprio de garantias reais para os produtos agropecuários e seus subprodutos, no qual se inserem os atuais arts. 8º, §1º, e 12, §4º, da Lei 8.929/1994, ainda que não vinculadas a Cédulas de Produto Rural.
Nessa mesma diretriz se insere a remissão à Lei Geral de Emolumentos (Lei Federal 10.169/2000), que por sua vez trata como hipótese uniforme a “constituição de direitos reais de garantia mobiliária ou imobiliária destinados ao crédito rural”, bem como outros dispositivos da Lei 13.986/2020 que aludem expressamente ao uso de outros instrumentos para a constituição de crédito rural (cf. art. 42-B da Lei 13.986/2020, sobre o uso das cédulas de crédito bancário no crédito rural).
7. Microssistema de financiamento para o agronegócio e diálogo das fontes
O crédito rural consiste no principal instrumento de política agrícola do Brasil, materializando-se na concessão de empréstimos, de financiamentos, de abertura de crédito, dentre outras modalidades de acesso. Abrange ineludivelmente recursos destinados ao custeio, investimento e comercialização. A regulamentação do crédito rural – abrangendo políticas públicas, títulos de crédito especiais, garantias e suas execuções – assume alto grau de complexidade nos dias atuais na medida em que se encontra disciplinada em inúmeras leis extravagantes (v.g., Lei 4.829/1965, Decreto 58.380/1966, Decreto-Lei 167/1967, Lei 8.171/1991, Lei 8.929/1994, Lei 9.138/1995, Lei 13.986/2020, entre outras tantas).
Nada obstante a complexidade da matéria no cenário contemporâneo, buscando a segurança jurídica das relações sociais e o máximo de efetividade das normas jurídicas, missão primeira do Direito, é possível sedimentar a existência de verdadeiro microssistema de tutela do crédito rural. Embora não haja codificação ou consolidação normativa específica para a matéria, é certo que nenhuma dessas leis extravagantes deve ser interpretada de maneira isolada, como eixo próprio de significados e sentidos. Impõem-se a teoria do diálogo das fontes, na qual todas essas normas – partes integrantes de um microssistema próprio – devem interagir como verdadeiros vasos comunicantes; não sendo possível concluir aprioristicamente por sua incidência autônoma em determinada relação jurídica. Dito de outro modo, as leis que regulam o crédito rural revestem-se de verdadeira camada porosa que permite a conexão de dispositivos legais regrados em outros diplomas legais da mesma natureza e com idêntica finalidade.
Essa visão holística foi expressamente agasalhada pelo legislador que em inúmeras oportunidades nessas leis acaba por referenciar conceitos, institutos, e normas em geral, de outras leis integrantes desse microssistema próprio do crédito rural. Cite se, à guisa de exemplo, a emblemática norma do art. 12, § 3º, da Lei 8.929/1994, que submete a aplicação da mesma sistemática de cobrança emolumentar das cédulas de crédito rural (disciplinadas pelo Decreto-Lei 167/1967) às CPR’s.
Pode-se assentar, por conseguinte, que as leis que regulamentam o agronegócio e seu financiamento no Brasil possuem diretrizes normativas que são verdadeiras normas de conexão e podem ser aplicadas, dentro de seus limites objetivos, sempre que exista um título formal hábil ao registro – seja ele qual for (v.g., instrumento particular, escritura pública, cédula de crédito rural, cédula de produto rural, cédula de crédito bancário, etc.) – que constitua garantias reais.
8. Esclarecendo a cobrança emolumentar no Registro de Imóveis
Sabe-se que os emolumentos19 devidos aos serviços notariais e de registro são considerados tributos da espécie taxa.20 Como tal somente a lei pode regular sua aplicação aos casos concretos, garantindo-se a higidez do primado da legalidade tributária. Tratando-se de espécie de tributo vinculado – por exigir do Estado uma contraprestação específica –, no atual regime jurídico-constitucional, essa exação pode ser dividida em taxa de polícia, quando tem por contraprestação do Estado o exercício do poder de polícia;21 e taxa de serviço, quando tem por contrapartida do Estado a prestação de um serviço púbico específico e divisível (art. 145, II, da CF, e art. 78 do CTN).22 Nessa linha de raciocínio, no rigor da técnica tributária, pode-se observar que, no que concerne às atividades notariais e registrais, os emolumentos podem ser considerados como sendo uma taxa de natureza especial, sui generis, afinal, nítido seu caráter bifronte, já que parcela dos valores integrantes desta exação remunera os serviços do notário ou registrador e outra parcela remunera o poder de polícia exercido em razão da fiscalização feita pelo Poder Judiciário, nos termos do art. 236, § 1º, da Constituição Federal.23
Seguindo esse talante o legislador foi preciso ao estabelecer às claras que a cobrança emolumentar dos atos de registro de alienações fiduciárias de produtos e subprodutos agropecuários, veiculados ou não em Cédulas de Produto Rural, submetem se à mesma sistemática de incidência emolumentar das cédulas de crédito rural, remodelada pela Lei 13.986/2020.
Com efeito, as regras especiais de cobrança de emolumentos para registro de garantias reais atreladas ao agronegócio foram bem delimitadas pela Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo:
O art. 56 da Lei nº 13.986/2020, ao criar um teto de emolumentos (0,3% sobre o valor do crédito concedido), ainda vedou ”quaisquer outros acréscimos a título de taxas, custas e contribuições para o Estado ou Distrito Federal, carteira de previdência ou para associação de classe, criados ou que venham a ser criados sob qualquer título ou denominação” (cf. nova redação da Lei nº 10.169/2000, art. 2°, § 2°, I e II, f), com a ressalva de que pode ser exigida “taxa de fiscalização judicial , limitada a 5% (cinco por cento) do valor pago pelo usuário”. Ora, no quadro da legislação paulista, claro está que essa “taxa de fiscalização judicial” corresponde à receita de 4,289473% destinada ao Tribunal de Justiça (alínea e do inciso I do art. 19 da Lei nº 11.331/2002), sem quaisquer outros repasses, e sem a necessidade de nova lei paulista que esclareça esse ponto.
Prossegue o ilustrativo parecer normativo:
Ademais, certo está que o art. 61 da Lei nº 13.986/2020 revogou o art. 34, par. único, do Decreto-lei nº 167, de 14 de fevereiro de 1967; por conseguinte, perderam eficácia, também, os itens 8 e 9 das notas explicativas anexas à Lei nº 11.331/2002, que previam modos específicos de calcular os emolumentos, no caso de registro de cédula de crédito ou de produto rural pignoratícia ou de registro de hipoteca cedular rural. Agora em diante o cômputo se fará, no registro de imóveis, pelos itens 1 e 2 das notas explicativas, como sucede com cédulas de crédito bancário e outros contratos em geral, mas respeitados os novos tetos de 0,3% e 0,1% sobre o crédito concedido, nos casos de registro stricto sensu e averbação, e sem repasses, salvo o devido ao Tribunal de Justiça, como já referido.
Concluiu-se, ainda, delimitando a necessidade de vinculação da garantia ao agronegócio:
Deve-se também ressaltar que a normativa resultante da Lei nº 13.986/2020 só tem aplicação aos casos em que a constituição de garantia estiver ligada a crédito rural concedido em atividade fim, como sempre se entendeu a fim de que não se contrarie o disposto no inciso II e no § 6º do art. 150 da Constituição Federal.
Em síntese: aqui não há como declarar ou não a constitucionalidade do art. 56 da Lei nº 13.986/2020, e é forçoso reconhecer que essa regra tem aplicabilidade desde logo, superando o sistema vigente, na forma apontada.24
Em síntese, na moldura do art. 12, § 3º, da Lei 8.929/1994, a sistemática de cobrança emolumentar para registro de garantias reais vinculadas ao agronegócio deve ser também aplicada ao registro de alienação fiduciária dos produtos e subprodutos agropecuários, tenha sido veiculada em CPR ou outro título formal hábil ao registro.
9. Notas conclusivas
De todo o exposto é possível concluir que:
i) Os gêneros agropecuários possuem natureza própria, sui generis, eis que sua existência está subordinada ao processo de produção e/ou beneficiamento, o que fez o legislador atribuir expressamente a competência para o registro constitutivo de garantias que sobre eles recaem ao Ofício Predial. Trata-se de imputação legislativa expressa para a aplicação do regime jurídico-registral imobiliário.
ii) A constituição da garantia fiduciária sobre os gêneros agrícolas importa em formação de verdadeiro patrimônio de afetação, assumindo, em razão do fim a que se destina, a condição de relevante regime especial de propriedade que deve encontrar sua base de segurança e publicidade no Registro de Imóveis.
iii) A Lei 14.421/2022 defere expressamente a tipicidade do fato inscritível para o registro da garantia de produtos e subprodutos agrícolas ao Ofício de Registro de Imóveis, sem qualquer restrição ao título formal pelo qual se concretiza a contratação, tendo expressamente revogado a competência do Registro de Títulos e Documentos.
iv) Não se pode conceber no sistema de registros públicos hodierno a delimitação de atribuição dos Ofícios em razão do título formal a ser apresentado, sendo indispensável considerar a natureza do bem jurídico ou, subsidiariamente, a finalidade primeira do registro almejado. Somente o Registro de Imóveis, com sua estrutura,
capilaridade e repositório confiável é capaz de garantir ao agronegócio a segurança e eficácia necessárias dos direitos a serem publicizados.
v) À luz da interpretação gramatical da Lei 8.929/1994, para o comando normativo do art. 12, § 4º e art. 8º, não há qualquer restrição à aplicação exclusiva das normas às Cédulas de Produto Rural. Ao contrário, contempla em seu contexto diversos dispositivos sobre garantias no âmbito do agronegócio que também possuem aplicação geral, ou seja, incidentes em quaisquer que sejam os instrumentos que as veiculem (v.g., cédula de produto rural, cédula de crédito rural, instrumentos particulares, escrituras públicas, cédulas de crédito bancário, etc.).
vi) Há hoje no Brasil verdadeiro microssistema de financiamento do agronegócio e garantias atinentes, sendo imperativa a leitura sistêmica e integrada dos institutos que são disciplinados nas respectivas leis extravagantes.
vii) Em razão da estreita vinculação da contratação da alienação fiduciária de produtos e subprodutos agropecuários com o financiamento do agronegócio deve ser aplicada in totum a cobrança emolumentar para os atos registrais no Ofício Predial nos moldes da disciplina implementada pela Lei 13.986/2020, a “Lei do Agro”, independentemente da natureza do título formal que veicule a garantia fiduciária.
Sem qualquer espaço para dúvidas, forte nos argumentos acima delineados, conclui-se que o legislador optou por atribuir expressamente ao Ofício de Registro de Imóveis a constituição da garantia fiduciária de produtos e subprodutos agropecuários, qualquer que seja o título que a formalize, não se limitando esta atribuição predial às alienações fiduciárias materializadas em Cédulas de Produto Rural (CPR’s).
10. Referências bibliográficas
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: teoria geral – Introdução. As pessoas. Os bens. v.1. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
GARBI, Carlos Alberto; GABI JÚNIOR; Carlos Alberto. Tipicidade dos fatos inscritíveis. In: AHUALLI, Tânia Mara; BENACCHIO, Marcelo; SANTOS, Queila Rocha Carmona dos (org.). Direito Notarial e Registral: Homenagem às Varas de Registros Públicos da Comarca de São Paulo. São Paulo, Quartier Latin, 2016.
LAGO, Ivan Jacopetti. História do Registro de Imóveis. Coleção de Direito Imobiliário. v. I. São Paulo: Thomson Reuters, 2022.
MARCHI, Eduardo C. Silveira; RODRIGUES, Dárcio R. M.; MORAES, Bernardo B. Q., As bases romanísticas do Código Civil brasileiro: traduções e estudos comparados. São Paulo: YK Editora, 2022.p.131).
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Parte geral: Bens. Fatos jurídicos. t.II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Direito das coisas: propriedade. t.XI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Alienação fiduciária de bens imóveis. Coleção de Direito Imobiliário. v. X. São Paulo: Thomson Reuters, 2022.
RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Registro de imóveis: anotações à Lei 14.382/2022. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2023. RIZZARDO, Arnaldo. Direito do agronegócio. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.
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LEIA TAMBÉM
1 RIZZARDO, Arnaldo. Direito do agronegócio. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.p.507
2 A Lei 14.421/2022 alterou substancialmente a compreensão de produtos rurais para fins de delimitação do objeto das CPR’s (art. 1º, § 2º), bem assim ampliou a legitimação daqueles que podem emitir as cédulas (art. 2º).
3 “De rigor estabelecer importante diretriz terminológica. Embora por vezes os institutos se confundam em práxis descuidada, sendo nominados um pelo outro, a melhor técnica sinaliza que o nomen “alienação fiduciária de bens imóveis” deve ser reservado ao negócio jurídico real imobiliário (rectius: ao título causal) ou, mais simplesmente, ao contrato de alienação fiduciária. Já a expressão “propriedade fiduciária” representa o jus in re, o direito real já constituído e em sua plenitude. Direito real esse que só nasce a partir de seu registro constitutivo na matrícula do imóvel (art. 23 da Lei 9.514/1997, c.c. art. 167, I, nº 35, da Lei 6.015/1973). Somente essa distinção terminológica tem aptidão para harmonizar o instituto telado no sistema do título e modo adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro na órbita dos direitos reais imobiliários e do registro predial” (RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Alienação fiduciária de bens imóveis. Coleção de Direito Imobiliário. v. X. São Paulo: Thomson Reuters, 2022. p.673- 112).
4 Nos ordenamentos jurídicos contemporâneos é comezinha e relevante a distinção de bens móveis e bens imóveis; legado dos povos germânicos. No Direito Romano pré-clássico, no entanto, esse critério era irrelevante na medida que importava efetivamente os bens de produção, bens de capital (res mancipi) e os bens que não eram utilizados em atividades produtivas (res nec mancipi); pouco importava, assim, se se tratava de bem imóvel ou móvel, mas sim sua utilidade econômico-social. Essa distinção era relevante àquela época para definir os modos de transmissão da propriedade: para as res mancipi a transmissão da propriedade dava-se através da macipatio e da in iure cessio; já as res nec mancipi transmitiam-se exclusivamente através da traditio. Com a evolução do direito romano, sobretudo no período pós-clássico essa distinção vai perdendo seu sentido de modo que a transmissão da propriedade de qualquer bem operava-se pela traditio. De qualquer sorte, não é demais lembrar que os sistemas registrais contemporâneos foram construídos e evoluíram estruturalmente a partir da experiência romana, seja para sua adoção, seja, em certa medida, em sua contraposição. No Brasil, o atual sistema do título e modo, possui raiz romana, sobretudo porque tem se no registro o modo de transmissão da propriedade sobre bens imóveis; sistema que tem fonte e inspiração na traditio romana. Nesse sentido: LAGO, Ivan Jacopetti. História do Registro de Imóveis. Coleção de Direito Imobiliário. v. I. São Paulo: Thomson Reuters, 2022.
5 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: teoria geral – Introdução. As pessoas. Os bens. v.1. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p.291.
6 “Quinto Múcio escreve: o proprietário de um imóvel vendera as árvores que estavam no prédio, recebeu o dinheiro por elas e não queria entregá-las. O comprador perguntava o que devia fazer, temendo que essas árvores não tivessem tornado de sua propriedade. POMPÔNIO: o conjunto de árvores que estão contidas no imóvel não é um corpo separado deste e por isso o comprador não poderá reivindicar, como dono, as suas árvores em específico, mas tem a ação ‘ex empto’ (Pomp.31 ad Q. Muc., D. 19, 1, 40. In MARCHI, Eduardo C. Silveira; RODRIGUES, Dárcio R. M.; MORAES, Bernardo B. Q., As bases romanísticas do Código Civil brasileiro: traduções e estudos comparados. São Paulo: YK Editora, 2022.p.131).
7 Embora exista alguma divergência doutrinária, produtos são frutos. Estes seriam os produtos orgânicos que se distinguiriam dos produtos inorgânicos. (cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Direito das coisas: propriedade. t.XI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p.180.) Há quem distinga frutos de produtos apontando que os frutos seriam tudo o que uma coisa produz periodicamente, sem prejuízo da sua substância; ao passo que os produtos seriam utilidades que se retiram da coisa até o esgotamento (como por exemplo, o minério). Destarte, enquanto a separação do fruto não altera a substância da coisa principal, a extração do produto determina sua progressiva diminuição.
8 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Parte geral: Bens. Fatos jurídicos. t.II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p.138-139.
9 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Direito das coisas: propriedade. t.XI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p.175.
10 Confira-se nesse sentido o didático Enunciado 628 das Jornadas de Direito Civil do CJF: “Os patrimônios de afetação não se submetem aos efeitos de recuperação judicial da sociedade instituidora e prosseguirão sua atividade com autonomia e incomunicáveis em relação ao seu patrimônio geral, aos demais patrimônios de afetação por ela constituídos e ao plano de recuperação até que extintos, nos termos da legislação respectiva, quando seu resultado patrimonial, positivo ou negativo, será incorporado ao patrimônio geral da sociedade instituidora”.
11 RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Alienação fiduciária de bens imóveis. Coleção de Direito Imobiliário. v. X. São Paulo: Thomson Reuters, 2022. p.673-674.
12 STJ – REsp 1.835.598/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 09/02/2021.
13 STJ – REsp 1327643/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j.21/05/2019.
14 “O rol dos atos suscetíveis de registro é taxativo, quer dizer, a enumeração é numerus clausus, razão pela qual apenas os atos expressamente previstos em lei, ainda que fora da lista do art. 167, I, da Lei 6.015/1973, são passíveis de registro” (CGJSP – Processo 184.953/2015, Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças, j. 27/01/2016). “O mesmo não ocorre, entretanto, nos casos de averbação, onde as hipóteses descritas no inciso II do mesmo art. 167 são meramente exemplificativas, constituindo numerus apertus” (CSMSP – Apelação Cível 0035067.98.2010.8.26.0576, Rel. Des. Maurício Vidigal, j. 11/08/2011).
15 Cf. GARBI, Carlos Alberto; GABI JÚNIOR; Carlos Alberto. Tipicidade dos fatos inscritíveis. In: AHUALLI, Tânia Mara; BENACCHIO, Marcelo; SANTOS, Queila Rocha Carmona dos (org.). Direito Notarial e Registral: Homenagem às Varas de Registros Públicos da Comarca de São Paulo. São Paulo, Quartier Latin, 2016, p. 511.
16 A título de didática ilustração, apenas com a Lei 14.382/2022, o tombamento de bens imóveis passou a integrar o rol de atos registráveis no art. 167, I, da Lei 6.015/1973. Nada obstante, tal registro já era efetivado desde a década de 1930, em razão da autorização legal da inscrição predial no art. 13, caput, do Decreto-Lei 25/1937.
17 Código Civil, art. 1.361, § 1º. Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro.
18 RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Registro de imóveis: anotações à Lei 14.382/2022. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2023.p.33.
19 Emolumentos correspondem aos valores, devidamente previstos em lei, a serem pagos pelos usuários como contraprestação aos serviços notariais e de registros. São, pois, aqueles numerários recebidos pelos notários e registrados em razão do exercício de sua atividade.
20 Trata-se de entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal. Pela clareza do raciocínio, vale transcrever passagem do voto da lavra do ex-ministro José Celso de Mello Filho: “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido de que as custas judiciais e os emolumentos concernentes aos serviços notariais e registrais possuem natureza tributária, qualificando-se como taxas remuneratórias de serviços públicos, sujeitando-se (…) ao regime jurídico constitucional pertinente a essa especial modalidade de tributo vinculado, notadamente aos princípios fundamentais que proclamam, dentre outras, as garantias essenciais da reserva de competência impositiva, da legalidade, da isonomia e da anterioridade. A atividade notarial e registral, ainda que executada no âmbito de serventias extrajudiciais não oficializadas, constitui, em decorrência de sua própria natureza, função revestida de estatalidade, sujeitando-se, por isso mesmo, a um regime estrito de direito público. A possibilidade constitucional de a execução dos serviços notariais e de registro ser efetivada “em caráter privado, por delegação do poder público” (CF, art. 236), não descaracteriza a natureza essencialmente estatal dessas atividades de índole administrativas” (STF – ADI 1.378-5/ES, Rel. Min. Celso de Mello, j. 30/11/1995).
21 Art. 78 do Código Tributário Nacional: “Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder”.
22 Art. 145 da Constituição Federal. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: (…) II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição.
23 Art. 236, § 1º, da Constituição Federal. Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
24 CGJSP – Processo 100392/2020, Des. Ricardo Mair Anafe, j.26/05/2021. Ainda com relação à incidência do ISSQN em casos tais, delimitou-se: “(…) como esse tributo não é um repasse tirado dos emolumentos para custeio de determinados entes, não se lhe aplica a limitação imposta pela nova legislação, e sua exigência, como aliás não poderia deixar de ser, continua a reger-se pelo que dispuser o direito municipal cabível. Em síntese: de todos os repasses previstos no art. 19 da Lei nº 11.331/2002, subsiste, na hipótese em questão (constituição de direitos reais de garantia ligados a crédito rural, depois da Lei Federal nº 13.986, de 7 de abril de 2020 – “Lei do Agro”), apenas aquele destinado ao Tribunal de Justiça, e o imposto sobre serviços continua a ser exigível como estiver previsto na lei local” (CGJSP – Processo 2021/20723, Des. Ricardo Mair Anafe, j.27/05/2021).