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Comentários Breves às Alterações do Código Civil Promovidas pela Medida Provisória 881/2019 (Parte 1.)

CÓDIGO CIVIL

CÓDIGO CIVIL DE 2002

MEDIDA PROVISÓRIA 881/2019

MP DA LIBERDADE ECONÔMICA

Flávio Tartuce

Flávio Tartuce

17/05/2019

Artigo escrito por Maurício Bunazar

“E a primeira de todas as ciências, a ciência da jurisprudência, orgulho do intelecto humano que, com todos os seus defeitos, redundâncias e erros, é a razão acumulada dos séculos, combinando os princípios da justiça original com a infinita variedade das preocupações humanas (…)”. Edmund Burke, Reflexões sobre a Revolução na França.

A medida provisória 881/2019 (que passou a ser conhecida como MP da Liberdade Econômica) alterou sensivelmente o direito positivo brasileiro, com a finalidade declarada – e louvável – de proteger a livre iniciativa e o livre exercício de atividades econômicas (artigo 1º da MP).

A MP da Liberdade Econômica positiva regras que inequivocamente são importantes para a proteção e concretização da garantia constitucional de livre iniciativa. Cito, por todas, a contida no artigo 5º, a qual impõe a realização de análise prévia de impacto regulatório sempre que houver propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal.

A análise prévia de impacto regulatório tenderá a proteger o empresário e, consequentemente, o consumidor contra atos normativos regulatórios que, na melhor das hipóteses, muitas vezes são meramente simbólicos, mas que, não raramente, visam a atender interesses pouco republicanos.

No entanto, embora julgue que a MP tenha muitas mais qualidades do que defeitos, algumas das alterações que ela promoveu no Código Civil merecem críticas, seja porque não foram propriamente técnicas, seja porque podem causar grave insegurança no mercado, algo que é de todo inconveniente para a livre iniciativa e para o livre exercício da atividade econômica.

Neste primeiro texto, passo a uma análise muitíssimo breve das alterações promovidas pela MP no regime jurídico da desconsideração da personalidade jurídica.

A desconsideração da personalidade jurídica consiste na imposição de ineficácia, temporária e relativa, da personalidade jurídica da pessoa jurídica de modo a possibilitar que o patrimônio de sócios e/ou administradores da pessoa jurídica responda por obrigações que ordinariamente seriam dela ou que ela venha a responder por obrigações que seriam de seus sócios e/ou administradores.

A desconsideração da personalidade jurídica, que sempre deve ser excepcional, tem por requisito necessário a caracterização do abuso da personalidade jurídica. Antes mesmo de o direito positivo disciplinar a desconsideração da personalidade jurídica, a doutrina apontava não só a excepcionalidade da medida, mas a necessidade de vir fundamentada na deturpação da personalidade jurídica[1].

Por deturpação, pode-se, com Lamartine Corrêa de Oliveira, entender a instrumentalização da personalidade jurídica para que atenda a propósitos que não os próprios. O autor ensina que “os problemas ditos de ‘desconsideração’ envolvem frequentemente um problema de imputação. O que importa basicamente é a verificação da resposta adequada à seguinte pergunta: no caso em exame, foi realmente a pessoa jurídica que agiu, ou foi ela mero instrumento nas mãos de outras pessoas, físicas ou jurídicas?”[2].

Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o sistema jurídico brasileiro passou a contar com uma disciplina geral da desconsideração da personalidade jurídica, aplicável a todo direito privado de forma direta ou subsidiária.

O Código Civil disciplina a desconsideração da personalidade civil em seu artigo 50, cuja redação original era a seguinte:

“Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

A MP alterou o texto do artigo 50 e também incluiu nele parágrafos e incisos. A alteração do caput do artigo 50 consistiu na imposição de limite subjetivo ao alcance da desconsideração da personalidade jurídica. A partir da entrada em vigor da MP, somente podem ser patrimonialmente responsabilizadas as pessoas que, direta ou indiretamente, beneficiaram-se do abuso da personalidade jurídica.

Embora reconheça que a limitação subjetiva imposta pela MP implique maior dificuldade para a aplicação da norma – afinal o requerente terá de demonstrar em maior ou menor medida quem foi beneficiado pelo abuso –, entendo que a alteração traz, sim, incremento de segurança no exercício da atividade empresária ao imunizar contra os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica aqueles sócios que, por qualquer razão, não tenham meios de influenciar a administração da pessoa jurídica e tampouco hajam obtido qualquer benefício com a prática abusiva[3].

Os parágrafos acrescentados ao artigo 50 podem ser agrupados da seguinte forma: os parágrafos 1º, 2º e 5º buscam delimitar o sentido das expressões desvio de finalidade e confusão patrimonial; os parágrafos 3º e 4º, especificar o alcance da desconsideração, respectivamente, para reafirmar a possibilidade da chamada desconsideração inversa e para evitar que o reconhecimento da existência de grupo econômico implique, por si só, a desconsideração da personalidade jurídica. Ressalva feita ao estilo da redação, os parágrafos 3º e 4º não me parecem merecedores de críticas, razão pela qual passo à análise dos parágrafos 1º, 2º e 5º.

As pessoas jurídicas têm em seu substrato um aspecto teleológico (consistente em seu propósito ou finalidade)[4] que serve de norte para as suas atividades e, consequentemente, de parâmetro para a identificação de comportamentos desviantes.

São os comportamentos desviantes qualificados normativamente como caracterizadores de abuso da personalidade jurídica que justificam sua desconsideração. Na redação original do Código Civil, o codificador se valeu de conceito jurídico indeterminado para descrever o suporte fático da desconsideração (abuso da personalidade jurídica) e, por isso, optou por delimitar sua caracterização, ainda que por meio de outros dois conceitos jurídicos indeterminados (desvio de finalidade e confusão patrimonial).

A doutrina e a jurisprudência, em verdadeira retroalimentação[5], cuidaram de delimitar com precisão satisfatória o que se entendia por desvio de finalidade e por confusão patrimonial, de modo que a indeterminação dos conceitos utilizados pelo legislador não pode, com honestidade científica, ser apontada como fonte de decisões judiciais contraditórias e, por isso, de insegurança jurídica.

A MP, ao menos com relação ao conceito de desvio de finalidade, não procurou diminuir a indeterminação de seu significado, mas sim alterá-lo. A caracterização do desvio de finalidade que, até então era objetiva, passou a depender da demonstração do dolo de lesar credores e de praticar atos ilícitos. Embora não concorde com a afirmação de que a prova do dolo seja quase impossível[6] – a prova será feita por meio da análise das circunstâncias do caso e por meio das máximas de experiência, como em regra é feita nos casos em que a norma tem o dolo em seu suporte fático –, entendo que a exigência é desarrazoada seja porque a intenção de fraudar e de praticar atos ilícitos é acidental ao desvio de finalidade, seja porque, de fato, torna a sua caracterização injustificadamente mais difícil, prestigiando não o livre mercado, mas o empresário imprudente e descompromissado com as práticas da gestão responsável. O § 5º, que por razões sistemáticas deveria estar junto ao § 1º, dispõe que não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica, em outras palavras, dispõe que o desvio de finalidade não constitui desvio de finalidade. De todas as alterações do Código Civil promovidas pela MP, talvez essa tenha sido a mais desastrada (ou desastrosa).

É uma alteração ruim não só porque nega a própria ideia de desvio de finalidade, mas principalmente porque legitima a prática desleal e irresponsável de exercer atividades estranhas ao objeto social, violando o dever de informação que é corolário elementar da boa-fé objetiva. Qual segurança se terá em investir em uma sociedade empresária se nunca se saberá com segurança qual o seu efetivo objeto social?  Como aferir os riscos de determinado empreendimento se, a qualquer momento, um controlador aventureiro poderá alterar radicalmente o campo de atuação da sociedade?

Se é lugar comum afirmar que a segurança jurídica é pressuposto para um mercado saudável em que se prestigia a livre iniciativa, receio que logo passe a ser lugar comum afirmar a inconveniência do § 5º do artigo 50.

Quanto ao § 2º do artigo 50, a MP optou por descrever fatos caracterizadores da confusão patrimonial, deixando, contudo, uma cláusula aberta em seu inciso III.

Os comportamentos descritos nos incisos do § 2º, realmente, são os que a doutrina em geral e a jurisprudência em especial comumente apontam como aptos a demonstrar a ausência de separação de fato entre os patrimônios das pessoas jurídicas e físicas e/ou jurídicas. Sendo assim, o que justificaria a existência do § 2º do artigo 50?

O objetivo da MP parece ter sido o de qualificar os comportamentos potencialmente caracterizadores de confusão patrimonial de modo a dificultar o reconhecimento da violação do princípio da autonomia patrimonial. Com efeito, para que se caracterize confusão patrimonial, não bastará que a pessoa jurídica cumpra obrigações do sócio ou administrador (ou vice-versa), será necessário que isso ocorra repetidamente; não bastará que haja transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, será necessário que os valores transferidos sejam proporcionalmente significativos. Não penso que a condescendência com a violação da autonomia patrimonial seja bom caminho para a livre iniciativa e a liberdade econômica.

Como conclusão, reitero que, em minha opinião, a MP é positiva para o atingimento dos objetivos a que se propõe, merecendo, mesmo no que toca às alterações que promoveu no Código Civil, mais elogios do que críticas. Como o propósito deste texto é o de colaborar com o debate em torno da MP, para que, quando de sua eventual conversão em lei, tenhamos uma norma ainda melhor, permito-me apresentar como sugestão ao legislador a supressão dos parágrafos 1º e 5º do artigo 50 e a supressão das expressões repetidamente e exceto o de valor proporcionalmente insignificante, respectivamente dos incisos I e II do § 2º do artigo 50.

Maurício Bunazar é Mestre e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco-USP. Professor do Damásio Educacional. Professor do IBMEC-SP. Advogado.


[1] Por exemplo, Fábio Konder Comparato. Direito Empresarial, Saraiva, 1990, p. 63.
[2]A dupla crise da pessoa jurídica, Saraiva, 1979,  p. 613.
[3] No mesmo sentido, Rodrigo Xavier Leonardo e Otavio Luiz Rodrigues, A MP da liberdade econômica: o que mudou no Código Civil? (parte 1), Conjur, 6/05/2019.
[4] Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial. Volume II. Almedina, 2019, 6a edição, Coimbra, p. 159.
[5] Antonio Junqueira de Azevedo, Estudos e Pareceres de Direito Privado, Saraiva, 2004, p. 26 e seguintes.
[6] Rodrigo Xavier Leonardo e Otavio Luiz Rodrigues, A MP da liberdade econômica: o que mudou no Código Civil? (parte 1), Conjur, 6/05/2019.

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