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Aspectos práticos sobre a união estável e o casamento
Salomão de Araujo Cateb
06/07/2017
Admitindo que somos juízes, e teremos de proferir uma decisão, apreciar o processo, claro que toda a matéria exposta pelas partes será apreciada. Somente assim, poderemos determinar qual a norma a ser aplicável, para submeter o caso sub judice.
Uma sentença, segundo renomados autores, inclusive Francesco Ferrara, é um silogismo, compondo-se de uma premissa maior que é a lei, uma premissa menor que são os fatos apresentados e o corolário ou conclusão, que é a sentença.
Dentro do assunto do nosso enfoque, temos que determinar os direitos do cônjuge e/ou do companheiro, segundo o Código Civil, os pontos controvertidos, levantados pelos advogados das partes e, finalmente, o pronunciamento judicial.
Cabe ao juiz e aos advogados interpretar a lei, segundo conveniências, porém dentro de princípios básicos. Temos a interpretação legislativa, própria das vozes dos legisladores, a interpretação real da norma, que, segundo Windscheid, o intérprete deve descobrir o conteúdo real da norma jurídica, a interpretação histórica, que busca o conteúdo histórico que gerou aquela norma jurídica; a interpretação doutrinal, motivada e exposta pelos estudiosos do assunto que a norma aborda; a interpretação literal, também denominada de gramatical, linguística e verbal; a interpretação lógica ou racional, que remonta aos princípios históricos, inspiraram a lei e o resultado que se quer obter na sociedade.
Nenhum princípio jurídico existe isoladamente, mas promana de elementos encontrados no meio social, às vezes de normas vigentes, e os anseios daquela coletividade. Teoricamente, (porque no Brasil as coisas são diferentes do usual), a lei deve revelar as aspirações da sociedade em determinado momento histórico. É a vontade do povo (dentro do regime democrático), colhido pelo legislador que lhe dá uma forma específica.
Dizem autores que a lei surge, sempre, com certo atraso, porque, desde sua coleta de dados, até a promulgação e publicação dista uma longa jornada (veja-se, por exemplo, os dois códigos civis que conhecemos). O projeto Bevilácqua data de novembro de 1899 e o atual, de uma comissão composta em 1969. No primeiro caso, tivemos a Lei Feliciano Pena que interferiu no projeto apresentado; no segundo caso, a Constituição da República de 1988, contendo imposições e orientações que modificaram o projeto.
Abordadas essas premissas como introdução, vejamos nosso tema, partindo do texto legal, solvendo os erros que a lei pode revelar.
A matéria foi disciplinada nos artigos 1.790, 1.829, 1.830, 1.831 e 1.832.
Primeiramente, a ordem da vocação hereditária, figurando o cônjuge como centro das atenções. Por quê? Quem nos responde é a história, revelando situações que existiram e resultaram em promoções do cônjuge supérstite, especialmente, das mulheres[1]. Aliás, abrindo um parêntese, a regra geral é que os homens morrem primeiro e as mulheres em seguida – teoria pura, com observação em dados do IBGE. Há muito mais viúvas que viúvos. Nós, homens, vamos em primeiro lugar, quer por motivos biológicos, sociológicos, enfim, por uma série de fatores, dificilmente explicáveis em poucas palavras.
Não vamos partir da época dos imperadores romanos, como o faz, de maneira brilhante, o estudioso Zeno Veloso[2], mas, tão somente, apreciando as consequências das duas grandes guerras. Nesses dois momentos da nossa (des) civilização, os homens foram, em grande massa, para as frentes de batalhas, com uma mortalidade elevada (milhões de pessoas) e as mulheres, em suas casas, na retaguarda, tomaram as iniciativas para a permanência da sociedade, criação dos filhos, produção de alimentos, etc. As mulheres lutaram por uma posição melhor, deixando de ser subordinadas a seus maridos e ocupando os lugares que aos homens pertenciam.
Se na família romana, somente os homens, o pater (ou o primogênito) poderia acender a lâmpada para os deuses, no século XX as mulheres o fizeram, por força das circunstâncias.
Entre nós, tudo começou com a Lei Feliciano Pena, no ano de 1.907, quando o cônjuge ultrapassou os colaterais e passou a administrar os bens recebidos por herança. Essa mesma lei reduziu a classe dos colaterais, restringindo-a até o 6º grau. O projeto do Código Civil de Clóvis Bevilácqua encontrava-se no Congresso Nacional, em discussão legítima e/ou apaixonada. Emendas e mais emendas foram introduzidas, muitas delas por desagradar alguns senadores, que discordavam da revisão gramatical ou da redação de trechos. Longas discussões que pouco êxito representou.
Muitas décadas depois, o Governo federal, dirigente do estado de exceção que imperava no País, nomeou uma comissão para redigir novo projeto de Código Civil. Os juristas que compunham a Comissão entregaram seu trabalho em 1.975, enviado para discussão e aprovação no Congresso Nacional. Passaram-se vinte e seis anos, quando os legisladores votaram a aprovaram o novo Código Civil brasileiro.
Na mesma marcha de países europeus, a nova legislação elencou o cônjuge como herdeiro necessário, elevando-o a concorrer com os descendentes (primeira classe), com os ascendentes (segunda classe) e ocupando a terceira classe, antes dos colaterais. Condicionou, entretanto, o CC o direito do cônjuge no art. 1.830, “se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois (2) anos, salvo prova, neste caso, de que esta convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.” Essa condição se estende a todas as hipóteses, que se aplicam ao supérstite.
Volta à baila a discussão sobre “culpa”. No nosso caso, se o cônjuge supérstite tiver dado origem à separação de fato do casal, será ele excluído do processo sucessório (permanece seu direito à meação, se houver). Salvo raras posições isoladas, é possível dizer-se que somente um dos cônjuges ocasionou a separação de fato do casal? Provavelmente, apurando o magistrado, com a oitiva de testemunhas, ambos concorreram para o evento danoso, embora um deles tenha agido temerariamente ou com mais intensidade.
Aceitando o texto legal e voltando à doutrina, concorrendo o sobrevivente com os descendentes, precisamos saber quais os regimes eleitos pelo Código Civil. A leitura do art. 1.829, em conjunto com as normas do Direito de Família, permite-nos dividir os regimes em seis (6): regime de comunhão universal, separação obrigatória, comunhão parcial sem bens particulares, comunhão parcial com bens particulares, separação convencional e participação final nos aquestos[3].
Nas três primeiras hipóteses não há concorrência. A herança será entregue somente aos descendentes, restando ao cônjuge supérstite, conforme o art. 1.831, o direito real de habitação, se no monte há somente um bem dessa natureza. Nova filigrana enriqueceu os direitos do cônjuge. Interessante frisar que o art. 1.831 beneficia o supérstite, pouco importando o regime de bens do casal, respeitada a ressalva legal, de existir somente um bem residencial inventariado.
Nos demais regimes de bens, o cônjuge receberá sua meação (Direito de Família), quando for o caso, e concorrerá com os descendentes na meação que caberia ao de cujus. Aqui começa o pomo da discórdia, porque não são todos os autores que admitem essa realidade.
Ora, retornamos ao princípio do capítulo. Como interpretar a lei? Qual o melhor método? Há dúvida no texto legal, ou ele é de fácil compreensão? Isso é justo? Ora, para essa última indagação, diríamos que ao juiz não cabe interpretar a lei sob o aspecto de “justo ou injusto”, sendo claro e compreensível a norma jurídica vigorante. Há exceções, sem dúvida, como é o caso de um pobre que furta uma galinha para alimentar sua família, e é absolvido, por ser irrisório o objeto subtraído.
Discute-se, no direito sucessório, exclusivamente patrimônio, seu partilhamento e não direitos inalienáveis, integrantes da personalidade da pessoa humana e sua dignidade.
Claro o texto legal, inexistindo lacuna na lei, não é lícito ao magistrado, mesmo aos ministros do Superior Tribunal de Justiça, inovar, interpretando a lei de forma a beneficiar o justo (que lhe parece), em detrimento da legislação em vigor, criando dúvidas aos demais membros do respeitável Poder Judiciário.
Vamos abrir um pequeno parêntese. O cônjuge ascendeu à primeira posição, na lei brasileira, seguindo códigos do continente europeu. Ab initio, o Código Civil italiano, com a reforma de 1.975; segue o Código Civil português de 1.966, com as reformas que se seguiram, especialmente a de 1.977; o Código Civil francês, com a redação na lei de 2001; o Código Civil belga, com a redação da lei de 1.981; o suíço, com a mudança do art. 471,3. Espelhando a nova posição, o BGB, a lei holandesa de 1.992, bem como avanços do Código espanhol – que sempre manteve posição diferente dos demais – e outros Códigos ou leis sucessórias. Adotaram normas similares a lei japonesa, o CC cubano, o paraguaio, o argentino, o chileno e outros mais[4].
Deve ser lembrado, sempre, que as leis americanas e inglesas permanecem em regime diverso, permitindo ao titular do patrimônio o direito de poder testar ilimitadamente.
Retornando à lei brasileira, continuamos a emitir nossa posição doutrinária. Há filhos comuns e filhos exclusivos. Filhos que pertencem ao casal e filhos de um só dos cônjuges. Quando o cônjuge supérstite concorre com os filhos comuns, tem direito a parte igual, nunca inferior a ¼ (um quarto), 25% do monte arrecadado. O restante será dividido entre todos os filhos. Essa norma é ditada pelo art. 1.832 do CC. Então, na prática, se há filhos, em número máximo de três (3), o cônjuge receberá o mesmo tanto que os seus descendentes. Se, no entanto, quatro eram os filhos comuns, retira-se a parcela destinada ao cônjuge e o restante será partilhado entre os filhos. Claro que o cônjuge receberá mais que seus filhos. Quando, porém, há filhos exclusivos do de cujus, o direito do cônjuge será igual ao direito dos filhos, isto é, uma divisão por cabeça, não prevalecendo a parte final do art. 1.832.
Esse privilégio é outorgado ao cônjuge, desde que seja ascendente dos descendentes que, com ele, concorrem.
É permanente o conflito entre os doutrinadores, quando interpretam o texto do art. 1.832. Parece-nos, no entanto, que o artigo tem boa redação e se exprime de uma clareza incontestável. Diversos outros artigos do CC permitem interpretações amplas; contudo, o artigo aqui enfocado favorece uma única interpretação, interpretação restritiva.
Continuemos. Lembramos, como advertência, que a meação provém do Direito de Família. No regime de comunhão parcial com bens particulares, primeiramente são excluídos esses bens particulares, para o cálculo dameação. Se ambos tinham bens particulares, antes do casamento, constantes ou não do pacto antenupcial, formam-se três universalidades: uma do varão (então, solteiro), outra do virago (também, solteira) e o terceiro formado dos aquestos, na constância do casamento.
Ao adentrarmos no Direito Sucessório, virá a meação do decujus, acrescentando-lhe, evidentemente, os seus bens particulares. É essa realidade que, muitas vezes, ilustres autores não concordam. Mas a lei não contém qualquer disposição excludente e não cabe ao intérprete fazê-lo. Se a lei é simples e imperfeita, se é justa ou injusta, cabe ao legislador corrigi-la. (Aliás, projeto de reforma do Código Civil, apresentado pelo deputado Ricardo Fiúza, nunca saiu dos primeiros passos, tendo sido arquivado na Câmara dos Deputados).
Arrisco dar uma interpretação aos autores discordantes, que não seja verdadeira. Quase todos os discordantes propugnam pela reforma do art. 1.790, porque, inexistindo descendentes e ascendentes, o companheiro arrecadará somente “os bens havidos na constância da união estável a título oneroso”. O restante, senhores, transforma-se em herança jacente e pertence aos municípios, onde estão localizados tais bens.
Esses doutrinadores não aceitam essa realidade, a expressão autêntica do citado art. 1.790. Houve erro do legislador? Esse é outro problema. Há proposições no Congresso para mudar essa norma? Sim, mas não andam. A lei n. 8.971, de 29 de dezembro de 1.994 foi revogada pelo Código Civil vigente e não se aplica mais o inc. III do art. 2º. O CC retrocedeu? A insatisfação desses ilustres doutrinadores, muitos doutores em Direito Civil ou Privado, não vivifica o texto revogado. Somente uma nova lei, alterando o CC vigente, poderia restabelecer a amplitude da herança do companheiro.
Se a norma vigente não espelha aos anseios da população (ou de parte dela), ao juiz não é lícito aplicar um artigo de lei do direito das obrigações, ou entender o que é justo ou injusto. Trata-se de uma norma restritiva e deve ser interpretada como tal.
Repetimos, que alguns doutrinadores (os que mais escrevem) posicionam-se contra esse inciso do art. 1.790, querendo revigorar a Lei n. 8.971/94, que regulou de forma diversa no inc. III do art. 2º, consoante o caput daquele artigo. A livre manifestação de vontades é um corolário da democracia e todos podem fazê-la. Aos juízes, entretanto, não é lícito interpretar a lei a seu “bel modo”. Muito ao contrário, a regra básica para os magistrados é: “dá-me os fatos, que eu lhe darei a lei”.
Apoiados na forma unilateral, visionária, ilustres estudiosos equiparam o companheiro ao cônjuge, contrariando o texto constitucional. São dois institutos de Direito de Família bem distintos e milenares. A família é o esteio da sociedade e ambos podem formar as famílias, sob a proteção constitucional. A cada dia mais se aproximam, permanecendo, contudo, institutos autônomos.
No casamento há pressupostos, capacidades dos nubentes, prévia habilitação em processo administrativo, verificando-se se há, ou não, impedimentos, até que ele se realize. Se normas legais são desrespeitadas, poderá o casamento ser declarado nulo ou anulável, estudando o julgador cada caso.
A legislação brasileira não se amolda aos costumes aplicados em Las Vegas, nos Estados Unidos da América, onde o casal se adentra em uma “capela” e um “possível juiz” celebra o ato, conferindo-lhe a legitimidade, consoante as leis locais. Esse procedimento, aplicado no Brasil, seria avançado e aplicável, se tratasse de união estável. A união estável começa com um simples “vamos morar juntos”, “você quer morar comigo”. Pode haver um contrato prévio, o que, porém, não é usual. Aquilo que seria o pacto antenupcial ocorre posteriormente, quando as relações já se consolidaram. Ainda assim, muitos casais relutam a estabelecê-lo.
Voltemos à vaca fria, como diria o saudoso mestre Antônio Augusto de Melo Cançado, em cultas e alegres aulas ministradas no curso de doutorado da UFMG. O cônjuge casado no regime de comunhão universal recebe sua meação e não concorre com seus descendentes na sucessão do outro. O mesmo se verifica, quando o regime de bens é o da comunhão parcial e não houve bens particulares, antes ou depois do casamento. Por quê? Porque, nesse caso, o regime se assemelha ao da comunhão universal, e o supérstite terá, tão somente, a meação, deixando toda a herança para os descendentes.
Na hipótese de o regime de bens ser o da comunhão parcial, regime legal, e os cônjuges (ou um só deles) tiver bens particulares, havidos antes das núpcias ou no curso do casamento (no regime legal de comunhão parcial), o art. 1.659 do CC aponta as exclusões patrimoniais da universalidade dos aquestos. Tais benefícios patrimoniais pertencerão à universalidade particular de cada qual dos cônjuges.
E a união estável? Diz o art. 1970, caput, que os direitos a dividir são os havidos a título oneroso na constância da união. Desse montante retirar-se-á a meação do companheiro sobrevivente, fazendo-se, em seguida, a partilha da herança.
A união estável começa com um simples convite: vamos morar juntos? Ou, posso ficar com você alguns dias? Ou, vamos viajar? E, na volta, logo passam a morar juntos. Se veio a briga, não querem mais, um se retira, leva suas roupas e pronto. Depois, a longa briga, na divisão dos bens amealhados durante a vida a dois. Não fizeram contrato, não escolheram o regime de bens, é uma sociedade de fato.
É diferente do casamento? Sim, em termos. Tudo depende do regime de bens adotado no casamento. A presença de descendentes altera, definidamente, o quadro da divisão sucessória. Casamento se encerra com o divórcio. Mesmo separados, continua o vínculo.
Portanto, não se pode falar de distinção de casamento e união estável, senão de forma relativa. São dois institutos, duas formas de formar a família. Quando a união estável existe há muitos anos, inexistindo impedimentos para o casamento, provavelmente um dos dois não quer ou não aceita o casamento. Essa crença vem do interior do Estado, sob forte influência da religião. Como? O divórcio é norma legal e pode ser feito sem qualquer justificativa. Mas permanece a ideia de “vínculo” eterno, “até que a morte os separe”.
O tema é infindo, permitindo discorrer por horas. Essa é uma palavra inicial.
Breve discorrerei sobre o julgado do STF sobre “inconstucionalidade do art. 1.790”.
[1] FUSTEL DE COULANDES. A cidade antiga.. São Paulo: HEMUS, 12ª. Edição.
[2] VELOSO, Zeno. Direito hereditário do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010
[3] RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Forense. 2ª. Ed.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva. 2009
[4] VELOSO, Zeno. Ob. cit.
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