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A reforma do Código Civil e o testamento – Propostas para o art. 1.857

Flávio Tartuce
03/06/2025
Como tenho repetido, uma das linhas metodológicas seguidas pela Comissão de Juristas nomeada no Senado Federal para a elaboração do projeto de reforma do Código Civil foi a de reduzir as burocracias, destravando a vida das pessoas, o que se aplica ao testamento, um dos institutos civis mais burocráticos previstos na atual legislação privada.
Nesse contexto, no atual PL 4/2025 há um incentivo para a celebração de testamentos, com a redução de formalidades desnecessárias, digitalização e normas que visam a incluir as pessoas com deficiência. Em relação às últimas, vale destacar as excelentes proposições feitas à Comissão de Juristas pelo professor e promotor de Justiça do Estado da Bahia, Fernando Gaburri, que participou da audiência pública em Salvador, no ano de 2023. Como não poderia ser diferente, foram elas acatadas integralmente, representando enormes avanços que estão sendo propostos para a codificação privada, hoje ausente e excludente quanto a esses temas.
A partir deste primeiro texto de uma série, portanto, passarei a analisar algumas das proposições feitas para a manifestação sucessória de última vontade, o que visa a aumentar a sua adesão pela população brasileira, como importante mecanismo de planejamento sucessório. A verdade é que no Brasil não há o costume de elaborar testamentos, por vários fatores, entre eles o excesso de solenidades e de custos para a sua efetivação.
Neste artigo, analisarei as propostas que são feitas para o art. 1.857 do Código Civil, que inaugura o tratamento a respeito da sucessão testamentária e dos testamentos em geral. Nos termos do seu caput, “toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte”. O seu § 1.º, de forma peremptória, prevê que a legítima dos herdeiros necessários – correspondente a cinquenta por cento do patrimônio do falecido – não poderá ser incluída no testamento. Por fim, admitindo que o testamento tenha um conteúdo além do patrimônio corpóreo, o § 2.º desse comando estabelece serem “válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado”.
Pois bem, em relação ao caput do art. 1.857 da lei civil não se fez qualquer proposta de mudança, estando a primeira proposta relevante a ser destacada no seu § 1.º. Em sua redação atual, como visto, os bens da legítima ou legitimários, que equivalem a cinquenta por cento do patrimônio do testador ou autor da herança, não podem ser objeto de testamento.
De todo modo, apesar do que está previsto na norma, em rumoroso julgado de 2023, envolvendo a herança do apresentador Gugu Liberato, entendeu a 3ª turma do STJ que o testamento até pode tratar de todo o patrimônio, desde que respeitada a parte dos herdeiros necessários. No caso concreto, o apresentador fez testamento em que dispôs sobre a totalidade de seu patrimônio, dividindo-o entre seus filhos e sobrinhos, ficando os primeiros com 75% da herança e os últimos com os 25% restantes. No inventário, com total razão, no meu entendimento, duas filhas do falecido questionaram a inclusão da legítima dos herdeiros necessários na base de cálculo dessa divisão, sob a alegação de que o testamento deve compreender apenas a metade disponível do patrimônio. Porém, entendeu o Tribunal da Cidadania o seguinte:
“(…). A legítima dos herdeiros necessários poderá ser referida no testamento porque é lícito ao autor da herança, em vida e desde logo, organizar e estruturar a sucessão, desde que seja mencionada justamente para destinar a metade indisponível, ou mais, aos referidos herdeiros, sem que haja privação ou redução da parcela a que fazem jus por força de lei. Hipótese em que, examinando-se a disposição testamentária transcrita no acórdão recorrido, conclui-se que o testador pretendeu dispor de todo o seu patrimônio e não apenas da parcela disponível. Isso porque o testador se referiu, no ato de disposição, reiteradamente, à totalidade de seu patrimônio, inclusive quando promoveu a divisão dos percentuais entre os filhos, herdeiros necessários que tiveram a legítima respeitada, e os sobrinhos, herdeiros testamentários” (STJ, REsp 2.039.541/SP, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20.06.2023, DJe 23.06.2023).
Com o devido respeito, entendo que o aresto traz em seu conteúdo lesão à legítima, violando a norma peremptória do art. 1.857, § 1.º, do Código Civil, norma cogente ou de ordem pública que não pode ser contrariada, sob pena de caracterização da fraude à lei imperativa e à correspondente nulidade absoluta da disposição, nos termos do art. 166, inc. VI, do Código Civil.
Na verdade, é preciso reparar a norma em estudo, para que se afaste essa divergência, o que está sendo proposto justamente pelo projeto de reforma do Código Civil, a saber: “§ 1.º O testador pode individualizar os bens da legítima dos herdeiros necessários, bem como partilhá-los entre eles, respeitado o limite e a proporção legal”. A proposição, portanto, segue a mesma linha do julgado superior destacado, vencidas as minhas resistências doutrinárias nos debates da Comissão de Juristas. Assim, o tema encontrará a necessária estabilidade, aumentando a liberdade do testador para planejar a sua própria sucessão.
Como outro aspecto relevante, pretende-se também incluir nesse art. 1.857 da lei civil dois novos parágrafos, tratando das figuras do testamento pupilar e quase pupilar. Conforme o novo § 3.º, “os pais, no exercício da autoridade parental, podem instituir, por testamento público, herdeiros ou legatários aos filhos absolutamente incapazes, para o caso de eles falecerem nesse estado, ficando sem efeito a disposição logo que cesse a incapacidade”. E, nos termos do § 4.º, essa norma tem aplicação “a todos os filhos, sem distinção de idade, que não estiverem em condições de expressar sua vontade de forma livre e consciente, no momento do ato, ficando sem efeito a disposição logo que cesse a limitação volitiva”.
Nas exatas justificativas da subcomissão de Direito das Sucessões, as proposições têm “o objetivo de trazer de volta ao direito interno os testamentos pupilar e quase-pupilar, já bem conhecidos do direito romano e de diversos outros códigos civis da família romanista. O saudoso jurista Zeno Veloso já havia elaborado uma proposta semelhante, a partir de realidades que havia experimentado como tabelião”. Vejamos o que escrevia o Mestre em um dos seus textos, publicado em 2018, em que tratava dessas figuras, demonstrando uma iniciativa anterior de se alterar o Código Civil:
“Se um filho é acometido de doença mental profunda, permanente, e segundo o atual estágio da ciência médica, irreversível, irremediável, achando-se desprovido de vontade, não podendo resolver, escolher, decidir, independentemente de ter havido ou não uma sentença judicial reconhecendo esta situação, não possuindo, ademais, herdeiros necessários, seu pai deve ser autorizado a fazer um testamento, suprindo a incapacidade testamentária do filho, e indicando, por ele, herdeiros ou legatários. Admitida essa possibilidade, o testamento do pai pode abranger todos os bens do filho, sem considerar a procedência dos mesmos. Obviamente, o testamento do pai perde o efeito e caduca, se o filho adquirir ou readquirir o juízo perfeito, ou se tiver herdeiros necessários.”
- O Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM nomeou uma Comissão de Juristas para promover estudos e oferecer um anteprojeto de reforma do Livro V – Do Direito das Sucessões – do Código Civil. O presidente desta Comissão é o advogado e professor Mário Delgado, e também fazem parte da mesma os professores Ana Luiza Maia Nevares, João Brandão Aguirre e Flávio Tartuce, que neste ano de Copa do Mundo da Rússia, posso dizer que formam uma verdadeira seleção brasileira de juristas. Por eles tenho grande admiração e apreço.
Ex positis, e servindo a própria exposição como justificativa, venho oferecer minha colaboração a essa douta Comissão, com base nas reflexões antes feitas. Proponho, então, que, em seguida do art. 1.960 do Código Civil, seja introduzida a Seção III, com dois novos artigos, e a redação seguinte:
‘Seção III
Substituição do filho incapaz de testar
Art. 1.960-A. O ascendente que não teve suspenso nem extinto o poder familiar (arts. 1.635, 1.637, 1.638), cujo filho não pode manifestar a sua vontade, por enfermidade ou deficiência mental, poderá, por testamento, nomear herdeiros ou legatários para este filho.
Art. 1.960-B. Caduca o testamento se o filho recobrar a razão, ou deixar descendentes, ascendentes, cônjuge ou companheiro'” (VELOSO, Zeno. Substituição quase-pupilar – deve ser introduzida no Direito Brasileiro? Artigo publicado em 1.º de outubro de 2018.)1
Como se pode perceber, os institutos que se pretende inserir na lei há tempos são debatidos no âmbito doutrinário, e admitidos em outras legislações, sendo muito interessantes para a prática dos atos de planejamento sucessório, na linha de outras proposições da própria Reforma.
Ainda a respeito desse mesmo assunto, é incluído um novo inciso V no art. 1.801 do Código Civil, prevendo que não podem ser nomeados herdeiros nem legatários os pais que, no exercício da autoridade parental, instituam, por testamento público, herdeiros ou legatários aos filhos absolutamente incapazes, para o caso de eles falecerem nesse estado, ficando sem efeito a disposição logo que cesse a incapacidade.
Por fim, como outra proposição importante, o § 2.º do art. 1.857 passará a prever que “são válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, inclusive as que tenham por objeto situações existenciais, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado”. A necessidade de ampliação do texto vigente se dá, entre outras razões, pelo fato de o Código Civil passar a tratar da herança digital, podendo ser ela objeto de disposição de última vontade, pelo chamado testamento digital.
Destaque-se, ainda, o fato de que, aprovado o PL 4/2025, será também possível o testamento genético, ou seja, que o ato de última vontade trate do destino do material genético ou de embriões, para os fins de reprodução assistida. Conforme a proposta de um novo art. 1.629-Q do Código Civil, será permitido o uso de material genético de qualquer pessoa após a sua morte, seja óvulo, espermatozoide ou embrião, desde que haja expressa manifestação, em documento escrito, autorizando o seu uso e indicando: a) a quem deverá ser destinado o gameta, seja óvulo ou espermatozoide, e quem o deverá gestar após a concepção; b) a pessoa que deverá gestar o ser já concebido, em caso de embrião. E, conforme o parágrafo único dessa norma projetada, “em caso de filiação post mortem, o vínculo entre o filho concebido e o genitor falecido se estabelecerá para todos os efeitos jurídicos de uma relação paterno-filial”.
Além disso, com vistas à segurança jurídica, o novo art. 1.629-R da codificação privada enunciará que não serão permitidas a coleta e a utilização de material genético daquele que não consentiu expressamente, ainda que haja manifestação de seus familiares em sentido contrário. Portanto, justifica-se plenamente a ampliação do texto do art. 1.857, § 2.º, para que o testador manifeste atos existenciais, como são essas disposições relativas à reprodução assistida post mortem.
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NOTAS
1 Disponível aqui.