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A reforma do Código Civil e algumas propostas quanto aos alimentos familiares

REFORMA DO CÓDIGO CIVIL

Flávio Tartuce

Flávio Tartuce

14/10/2024

Seguindo-se na análise de algumas das propostas formuladas pelas Comissão de Juristas nomeada no âmbito do Senado Federal para a reforma do Código Civil, iniciarei uma nova série de artigos, a tratar dos alimentos familiares, devidos por vínculo de parentesco, casamento ou união estável, um dos assuntos de maior relevância para o Direito Privado brasileiro.

Vale destacar, sobre a metodologia do seu tratamento na lei geral privada, que, seguindo-se sugestão da relatora-geral, professora Rosa Maria de Andrade Nery, propõe-se a divisão do tratamento dos alimentos nos seguintes capítulos, de forma mais coerente e técnica: “Subtítulo III. Dos Alimentos. Capítulo I. Disposições Gerais. Capítulo II. Dos Alimentos devidos ao Nascituro e à Gestante. Capítulo III. Dos Alimentos devidos às Famílias Conjugais e Convivenciais. Capítulo IV. Dos Alimentos Compensatórios”.

Quanto ao art. 1.694 da codificação privada, primeira norma sobre o instituto e que traz os pressupostos da obrigação dos alimentos familiares, há proposta de menção aos conviventes, e não mais aos companheiros, pela opção feita à primeira expressão no anteprojeto, tida como mais correta pelos membros da Comissão de Juristas.

Também passam a ser limitados expressamente nessa norma os parentes que podem pleitear os alimentos: em linha reta até o infinito e os colaterais de segundo grau, ou seja, os irmãos. Nesse contexto, o dispositivo enunciará o seguinte: “podem os parentes em linha reta, os cônjuges ou conviventes e os irmãos pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação”. Com isso, encerra-se de forma definitiva o debate quanto à possibilidade de tios, sobrinhos, primos e outros parentes pleitearem os alimentos.

Também não se denominam mais as partes credor e devedor, diante de todas as peculiaridades muito bem conhecidas e delineadas da obrigação alimentar, diferente de todas as demais, e passando o seu § 1º a ter a seguinte redação: “os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada”.

Na sequência, insere-se previsão necessária, no sentido de que pode haver a obrigação de alimentos em qualquer modalidade de parentesco, inclusive havendo vínculo socioafetivo ou multiparentalidade: “§ 2º A obrigação de prestar alimentos independe da natureza do parentesco e da existência de multiparentalidade”. Deve ficar claro, contudo, que, ao contrário do que foi afirmado de modo totalmente equivocado por alguns juristas, não há pela proposição vínculo alimentar automático entre padrastos, madrastas e enteados, tão somente em virtude do parentesco por afinidade na linha reta, sendo necessária a comprovação dos elementos da posse de estado de filho para que essa obrigação esteja presente.

Além da regra do caput, o binômio ou trinômio alimentar é mantido no § 3º do art. 1.694 do CC/02, ao mencionar, na projeção, que, “para a manutenção dos filhos, os cônjuges ou conviventes contribuirão na proporção de seus recursos”. Insere-se, ainda, regra relativa à possibilidade de o alimentante, aquele que paga os alimentos, solicitar esclarecimentos a respeito da utilização da verba alimentar, independentemente do pedido de prestação de contas: “§ 4º Havendo fundados indícios sobre a adequada utilização da verba alimentar, o alimentante pode solicitar esclarecimentos, que não exigem a apresentação de prestação de contas”.

Por fim quanto a esse comando, atendendo a sugestão da defensora pública Fernanda Fernandes, membro consultora da Comissão de Juristas nomeada no âmbito do Senado Federal, foi incluído no art. 1.694 um § 5º, segundo o qual “a violência doméstica impede o surgimento da obrigação de alimentos em favor de quem praticou a agressão”. A proposta, em boa hora, terá aplicação não somente em relação a cônjuges e conviventes, mas também quanto aos parentes do alimentante, obstando o surgimento da obrigação alimentar em relação a filhos, pais, irmãos e outros, visando à tutela e à proteção dos direitos das mulheres.

Seguindo, há sugestão de inclusão de três regras a respeito dos alimentos compensatórios, seguindo-se sugestões apresentadas pelo professor Rolf Madaleno, integrante da subcomissão de Direito de Família. Com a inclusão do instituto na lei civil, todas as resistências a respeito dessa categoria tendem a desparecer, diante do seu futuro amparo legal.

Nesse contexto, conforme o novo art. 1.709-A do Código Civil, “o cônjuge ou convivente cuja dissolução do casamento ou da união estável produza um desequilíbrio econômico que importe em uma queda brusca do seu padrão de vida, terá direito aos alimentos compensatórios que poderão ser por prazo determinado ou não, pagos em uma prestação única, ou mediante a entrega de bens particulares do devedor”. Como se pode perceber, trata-se de proposição clara, técnica e objetiva a respeito do conceito, do conteúdo e da forma de pagamento dos chamados alimentos compensatórios.

Além disso, na linha da melhor doutrina e de julgados superiores, sugere-se a inclusão do art. 1.709-B, prevendo que “o cônjuge ou convivente, cuja meação seja formada por bens que geram rendas, e que se encontrem sob a posse e a administração exclusiva do seu parceiro, poderá requerer que lhe sejam pagos mensalmente pelo outro consorte ou convivente, parte da renda líquida destes bens comuns, a título de alimentos compensatórios patrimoniais, e que serão devidos até a efetiva partilha dos bens comuns”. Inclui-se na norma, portanto, o tratamento dos alimentos compensatórios patrimoniais, que, segundo a subcomissão de Direito de Família e seguindo-se a doutrina de Rolf Madaleno, “têm sua gênese no parágrafo único do art. 4º da lei 5.478/68, e que consiste na entrega de parte da renda líquida dos bens comuns, que geram renda e que estão sendo administrados pelo outro consorte ou companheiro, permitindo também, a aceleração do processo de partilha dos bens comuns”.

Como última proposição a respeito dos alimentos compensatórios, mais uma vez na linha da jurisprudência superior hoje consolidada, é incluída previsão que veda a prisão civil do seu devedor: “Art. 1.709-C. A falta de pagamento dos alimentos compensatórios não enseja a prisão civil do seu devedor”. A propósito, do STJ, no mesmo sentido, merece destaque entre os arestos mais recentes e por todos: “o inadimplemento de alimentos compensatórios, destinados à manutenção do padrão de vida de ex-cônjuge em razão da ruptura da sociedade conjugal, não justifica a execução pelo rito da prisão, dada a natureza indenizatória e não propriamente alimentar de tal pensionamento (RHC 117.996/RS, relator ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, 3ª turma, j. em 2/6/2020, DJe de 8/6/20)” (STJ, HC 744.673/SP, relator ministro Raul Araújo, 4ª turma, julgado em 13/9/22, DJe de 20/9/22).

Como já ficou evidente, a Comissão de Juristas sugere ainda regras mais claras a respeito dos alimentos entre parentes, com destaque para a inclusão da parentalidade socioafetiva e da multiparentalidade, desde que presentes os requisitos da posse de estado de filho: tratamento (tractatio), reputação (reputatio) e nome (nominatio). Mantém-se no anteprojeto o art. 1.696 do vigente Código Civil, que traz a ordem de pleito dos alimentos quanto aos parentes: “O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes e descendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros”. E mais, nos termos do projetado parágrafo único, para que não restem dúvidas: “a regra prevista no caput aplica-se aos casos de parentalidade socioafetiva e de multiparentalidade”.

Por outra sugestão da professora Rosa Nery, é também incluída uma regra relativa à igualdade econômica entre os filhos, devendo ser essa a premissa geral a ser considerada pelo julgador, a saber: “Art. 1.696-A. Os filhos, qualquer que seja a origem da filiação, têm direito de postular situação de igualdade econômica com seus irmãos ou com as pessoas que vivem às expensas do genitor ou da genitora com quem não mais convive ou nunca conviveu”.

Ficará em dúvida se essa igualdade será aplicada em casos de filhos que têm situação fática totalmente distinta, como aqueles que vivem em cidades distintas e com realidades econômicas diferentes, tendo decidido o STJ que em casos tais é possível fixar verbas alimentares com valores que não são iguais:

“(…) A igualdade entre os filhos, todavia, não tem natureza absoluta e inflexível, devendo, de acordo com a concepção aristotélica de isonomia e justiça, tratar-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades, de modo que é admissível a fixação de alimentos em valor ou percentual distinto entre os filhos se demonstrada a existência de necessidades diferenciadas entre eles ou, ainda, de capacidades contributivas diferenciadas dos genitores” (STJ, REsp 1.624.050/MG, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª turma, julgado em 19/6/18, DJe de 22/6/18).

 No meu entender, confirma-se com a proposição o princípio constitucional da igualdade entre filhos (art. 227, § 6º, da CF/88), havendo uma presunção relativa de igualdade da verba alimentar em relação aos filhos e até mesmo a outros alimentandos. Porém, essa presunção iuris tantum poderá ser afastada em casos específicos, e pelas peculiaridades do caso concreto, como está no acórdão superior destacado.

No próximo texto, seguirei com a análise de outras proposições sobre os alimentos familiares no anteprojeto, com destaque para a solução apresentada para o intricado e complexo art. 1.698 do Código Civil, tema que foi intensamente debatido na Comissão de Juristas.

Fonte: Migalhas

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