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A reforma do Código Civil e algumas propostas quanto ao inadimplemento das obrigações
Flávio Tartuce
25/10/2024
O inadimplemento das obrigações é um tema clássico do Direito Civil, estando relacionado à responsabilidade civil contratual ou negocial, com tratamento atual entre os arts. 389 e 416 da atual lei geral privada brasileira. Como tantos outros assuntos, trata-se de temática consolidada, mas que hoje necessita de ajustes na legislação, o que não passou despercebido pela Comissão de Juristas nomeada no âmbito do Senado Federal para a reforma do CC, sobretudo pelos professores José Fernando Simão e Edvaldo Brito, notáveis membros da subcomissão de Direito das Obrigações, a quem prestou uma justíssima homenagem com este artigo.
Nesse contexto, foram feitas propostas de alteração pontual do CC, para suprir lacunas, resolver divergências, superar debates e incluir no texto de lei posições hoje consolidadas pela doutrina e pela jurisprudência. Vejamos algumas delas neste artigo, destacando-se os dispositivos iniciais relativos ao inadimplemento.
Consequências do inadimplemento absoluto
A primeira proposta a ser analisada diz respeito às consequências do inadimplemento absoluto, sobretudo no que diz respeito à menção que consta aos honorários de advogado no art. 389, caput, que hoje tem a seguinte redação, após o advento da lei 14.905/24: “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros, atualização monetária e honorários de advogado”. A menção aos honorários confronta a doutrina com a jurisprudência, no cenário atual do Direito Civil brasileiro.
Isso porque tem prevalecido na doutrina a afirmação no sentido de se tratar de honorários contratuais, e não de sucumbência, geralmente cobrados do credor para o ingresso da ação, o que aumenta o seu prejuízo. Essa posição é compartilhada por Maria Helena Diniz, que muito me influenciou em minhas conclusões, desde o surgimento do código de 2002 (CC anotado. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 352). Na mesma linha, opinam Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado, juristas que participaram da fase final de elaboração da atual lei Privada: “Os honorários aqui referidos não são os honorários sucumbenciais, já contemplados pela legislação processual. Trata-se de honorários extrajudiciais, a serem incluídos na conta sempre que o credor houver contratado para fazer valer o seu direito” (CC anotado. São Paulo: Método, 2005, p. 203). Esse também é o sentido do enunciado 426, aprovado na V Jornada de Direito Civil, representando a doutrina majoritária: “Os honorários advocatícios previstos no art. 389 do CC não se confundem com as verbas de sucumbência, que, por força do art. 23 da lei 8.906/94, pertencem ao advogado”.
No âmbito da jurisprudência do STJ, por sua vez, tem prevalecido uma outra visão, apesar de divergências. Como julgou a 2ª seção da corte, em 2012, em caso relativo a honorários advocatícios contratuais de advogado em reclamação trabalhista julgada procedente, considerou-se como necessária a “manutenção do Acórdão Embargado, que julgou improcedente ação de cobrança de honorários contratuais ao Reclamado, a despeito da subsistência do julgamento paradigma em sentido diverso, pois não sujeito à devolução recursal nestes Embargos de Divergência” (STJ, EREsp 1.155.527/MG, 2.ª Seção, rel. Min. Sidnei Beneti, j. 13.06.12, DJe 28.06.12). No mesmo sentido, de não incluir os honorários contratuais nas perdas e danos, ou seja, nos prejuízos sofridos pelo credor, destaco: “os honorários advocatícios contratuais não integram os valores devidos a título de reparação por perdas e danos, conforme o disposto nos arts. 389, 395 e 404 do CC de 2002. Precedentes: REsp 1.480.225/SP, rel. ministro Og Fernandes, 2ª turma, DJe 11.09.15; AgRg no REsp 1.507.864/RS, rel. ministro Moura Ribeiro, 3ª turma, DJe 25.09.15; AgRg no REsp 1.481.534/SP, rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª turma, DJe 26.08.15)” (STJ, AgRg no AREsp 746.234/RS, 2.ª turma, rel. Min. Herman Benjamin, j. 27.10.15, DJe 19.11.15).
De todo modo, ressalte-se que o próprio Tribunal da Cidadania já julgou em sentido contrário, deduzindo que “os honorários advocatícios contratuais integram os valores devidos a título de reparação por perdas e danos, conforme o disposto nos arts. 389, 395 e 404 do CC de 2002. A fim de reparar o dano ocorrido de modo integral, uma vez que a verba é retirada do patrimônio da parte prejudicada, é cabível àquele que deu causa ao processo a reparação da quantia. Diversamente do decidido pela Corte de origem, este Superior Tribunal já se manifestou no sentido da possibilidade da inclusão do valor dos honorários contratuais na rubrica de danos materiais” (STJ, AgRg no REsp 1.410.705/RS, 2.ª turma, rel. Min. Humberto Martins, j. 10.02.15, DJe 19.02.15).
Nesse contexto de enorme divergência, com os fins de trazer maior certeza e segurança jurídica sobre os honorários de advogado, a comissão de Juristas pretende resolver definitivamente esse dilema no texto de lei. Assim, o art. 389 receberia dois novos parágrafos, a tratar dos honorários contratuais. Em verdade, com a inclusão recente de um novo parágrafo único pela lei 14.905/24, para tratar da correção monetária e do índice considerado como regra geral, essas propostas passarão a ser os §§ 2º e 3º da norma.
De acordo com a primeira proposta, “os honorários de advogado previstos no caput são os contratualmente fixados entre as partes, desde que haja efetiva prova do seu prévio pagamento e que conste da ação ajuizada a específica pretensão de reembolso da despesa efetivamente realizada pelo credor”. As exigências do efetivo pagamento e da ação ajuizada visam a afastar o enriquecimento sem causa em sua cobrança e recebimento, bem como eventual abuso de direito em sua cobrança.
Além disso, para os fins de que o instituto não seja confundido com os honorários sucumbenciais, e com as limitações previstas no art. 85 do CPC, a segunda proposição prevê que “os honorários contratuais previstos neste artigo não excluem os honorários sucumbenciais tratados na lei processual”. Após intensos debates na comissão de Juristas, acabou prevalecendo a ideia, defendida por mim e pela maioria dos seus membros, de que os honorários contratuais podem ser livremente pactuados, sendo a intervenção para a sua redução pelo julgador somente cabível em hipóteses excepcionalíssimas, não devendo ser transpostos para o CC os limites previstos no Estatuto Processual, como era a outra sugestão.
Como se pode perceber, as propostas encerram uma das maiores divergências percebidas nos mais de vinte anos de vigência do CC, trazendo estabilidade institucional e segurança jurídica para os honorários. Espera-se, portanto, a sua aprovação pelo Parlamento brasileiro.
Mora das obrigações negativas
Outra proposição a ser analisada neste texto diz respeito à mora das obrigações negativas, de não fazer. Como é notório, atualmente somente há regra relativa ao inadimplemento absoluto dessas obrigações, no art. 390 do CC, a saber: “Nas obrigações negativas o devedor é havido por inadimplente desde o dia em que executou o ato de que se devia abster”.
Com os fins de suprir essa lacuna relativa à mora, na IX Jornada de Direito Civil, realizada em 2022, foi aprovado o enunciado 647, prevendo que “a obrigação de não fazer é compatível com o inadimplemento relativo (mora), desde que implique o cumprimento de prestações de execução continuada ou permanente e ainda útil ao credor”. Nos termos das justificativas, que servem para explicar o seu teor, “nas obrigações de não fazer de execução instantânea, o inadimplemento da obrigação de não fazer será necessariamente absoluto, ou seja, haverá sub-rogação da prestação original por indenização. Nesse caso, não há como retornar ao estado anterior. Todavia, há obrigações de não fazer que são de execução continuada ou de efeitos permanentes. É possível a purgação da mora, o que se depreende do art. 251, ao mencionar que o credor pode exigir que o devedor desfaça o que concretizou, a cuja abstenção se obrigara. É relevante tal consideração, uma vez que no caso de inadimplemento relativo será possível a preservação do vínculo obrigacional originário, com o retorno ao estado anterior, a fim de que se restabeleça a abstenção, cuja execução é contínua e permanente”. Os fundamentos da proposta que gerou o enunciado, sem dúvidas, são muito consistentes.
Ressalve-se, contudo, que na obrigação negativa não é necessário constituir em mora o devedor, sendo esta automática ou ex re. Nessa linha, da jurisprudência superior: “Em se tratando especificamente de obrigação de não fazer, o devedor será dado por inadimplente a partir do momento em que realizar o ato do qual deveria se abster – nos exatos termos do art. 390 do CC/02 -, fazendo surgir automaticamente o interesse processual do credor à medida coercitiva, ou seja, a prática do ato proibido confere certeza, liquidez e exigibilidade à multa coercitiva, possibilitando a sua cobrança” (STJ, REsp 1.047.957/AL, 3.ª turma, rel. Min. Fátima Nancy Andrighi, j. 14.06.11, DJe 24.06.11).
Feita essa nota, observo que mais uma vez, adotando a posição do enunciado doutrinário destacado e da jurisprudência superior, a comissão de Juristas nomeada para a Reforma do CC pretende elucidar a temática com a inclusão de um necessário parágrafo único no art. 394, preceituando o seguinte: “Nas obrigações negativas, o devedor incorre em mora desde o dia em que executou o ato em que devia se abster”.
Como outro assunto a ser tratado neste breve texto, complementando os dois preceitos que lhe antecedem, preconiza o art. 391 da atual codificação material que “pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor”, o que consagra o princípio da imputação civil dos danos, para os casos de responsabilidade civil contratual, ou o princípio da responsabilidade patrimonial do devedor.
Como pode ser encontrado em qualquer obra de Direito das Obrigações ou responsabilidade civil, o dispositivo apresenta uma falha técnica, eis que não são todos os bens do devedor que respondem. Isso porque, como é notório, existem bens que são impenhoráveis, como aqueles que constam do Estatuto Processual em vigor (art. 833) e o bem de família (arts. 1.711 a 1.722 do CC/02 e lei 8.009/90). A melhor redação para a compreensão dessa norma civil, e da consequente responsabilidade patrimonial do devedor, portanto, é a do art. 789 do CPC/15, reprodução do art. 591 do CPC/73: “O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei”.
Por isso, a comissão de Juristas incumbida da Reforma do CC sugere a seguinte redação para o preceito: “Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações, respondem todos os bens do devedor, suscetíveis de penhora”. Sana-se, portanto, mais um problema técnico e redacional da atual lei geral privada.
Ideia geral de patrimônio mínimo ou mínimo existencial para o Direito Civil brasileiro
Como último tema a ser aqui abordado, por proposição de cunho humanista formulada pela relatora-geral, professora Rosa Maria de Andrade Nery, almeja-se a inclusão de um novo art. 391-A no CC, a tratar de uma ideia geral de patrimônio mínimo ou mínimo existencial para o Direito Civil brasileiro. A tese do patrimônio mínimo visa assegurar à pessoa um mínimo de direitos patrimoniais, para que viva com dignidade.
Nesse contexto, o caput da norma projetada enuncia que, “salvo para cumprimento de obrigação alimentar, o patrimônio mínimo existencial da pessoa, da família e da pequena empresa familiar é intangível por ato de excussão do credor”. A intangibilidade é associada à ideia de impenhorabilidade, prevista no CPC e também em leis especiais.
A esse propósito, nos termos do § 1º do sugerido art. 391-A do CC, “além do salário-mínimo, a qualquer título recebido, bem como dos valores que a pessoa recebe do Estado, para os fins de assistência social, considera-se, também, patrimônio mínimo, guarnecido por bens impenhoráveis: I – a casa de morada onde habitam o devedor e sua família, se única em seu patrimônio; II – o módulo rural, único do patrimônio do devedor, onde vive e produz com a família; III – a sede da pequena empresa familiar, guarnecida pelos bens que a lei processual considera como impenhoráveis, se coincidir com o único local de morada do devedor ou de sua família”. Consolidam-se, portanto, na lei geral privada e com os fins de retomada do seu protagonismo legislativo, as proteções previstas em normas especiais, caso da já citada lei do bem de família (lei 8.009/90) e do estatuto da terra (lei 4.504/64).
Além da imperiosa proteção da pessoa humana, há o objetivo de tutela, ainda, do patrimônio mínimo empresarial, como se retira do último inciso transcrito e que vem em boa hora, na linha da melhor doutrina e de julgados superiores, caso do seguinte: “A impenhorabilidade da lei 8.009/90, ainda que tenha como destinatários as pessoas físicas, merece ser aplicada a certas pessoas jurídicas, às firmas individuais, às pequenas empresas com conotação familiar, por exemplo, por haver identidade de patrimônios’ (FACHIN, Luiz Edson. ‘Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo’, Rio de Janeiro, renovar, 2001, p. 154)” (STJ, REsp 1.514.567/SP, 4.ª turma, rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 14.03.23, DJe 24.04.23).
Também se objetiva a proteção das pessoas com deficiência e incapazes, em consonância com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, com regra segundo a qual “considera-se bem componente do patrimônio mínimo da pessoa deficiente ou incapaz, além dos mencionados nas alíneas do parágrafo anterior, também aqueles que viabilizarem sua acessibilidade e superação de barreiras para o exercício pleno de direitos, em posição de igualdade” (art. 391-A, § 2º). A título de exemplo, os veículos de transporte e os instrumentos que facilitam a vida dessas pessoas também devem ser tidos como protegidos, especialmente pela impenhorabilidade.
Por fim, o novo § 3º do art. 391, ora proposto para a lei geral privada, trará importante exceção, muito debatida há tempos, para prever que “a casa de morada de alto padrão pode vir a ser excutida pelo credor, até a metade de seu valor, remanescendo a impenhorabilidade sobre a outra metade, considerado o valor do preço de mercado do bem, a favor do devedor executado e de sua família”. Como é notório, hoje o tema é divergente no âmbito da jurisprudência superior, prevalecendo o entendimento de que não se pode excepcionar o imóvel de alto valor.
Com essa afirmação, por todos os mais recentes acórdãos, colaciono: “Segundo a orientação jurisprudencial desta Corte, para efeito da proteção do art. 1º da lei 8.009/90, basta que o imóvel sirva de residência para a família do devedor, sendo irrelevante o valor do bem. Isso porque as exceções à regra de impenhorabilidade dispostas no art. 3º do referido texto legal não trazem nenhuma indicação nesse sentido. Logo, é irrelevante, a esse propósito, que o imóvel seja considerado luxuoso ou de alto padrão (STJ, Ag. Int. no AREsp 2.456.158/SP, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª turma, julgado em 15/4/24, DJe de 17/4/24)” (STJ, Ag. Int. no REsp 1.963.732/SP, 3.ª turma, rel. Min. Humberto Martins, j. 23.09.24, DJe 25.09.24). Essa forma de julgar causa perplexidade em alguns, sobretudo pelo detrimento dos interesses dos credores. De toda sorte, somente se poderá resolver esse dilema com a alteração do texto da lei.
Como se pode perceber por mais este texto, ao contrário do que defendem alguns sabotadores, o Anteprojeto de Reforma do CC somente procura trazer para o texto de lei posicionamentos que hoje são tidos como majoritários, com orientação da doutrina consagrada nas jrnadas de Direito Civil e pela jurisprudência superior. Também se procura resolver alguns dilemas hoje existentes, caso do último, trazendo maior certeza e segurança para as relações privadas. Espera-se, portanto, a sua ampla discussão e aprovação pelo Parlamento brasileiro.
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