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A inconstitucionalidade do artigo 56 da Lei nº 15.0422024 (parte 1)

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A inconstitucionalidade do artigo 56 da Lei nº 15.042/2024 (parte 2)

LEI Nº 15.042/2024

SISTEMA BRASILEIRO DE COMÉRCIO DE EMISSÕES DE GASES DE EFEITO ESTUFA

ilangoldberg

18/03/2025

Continuação da parte 1

É difícil imaginar seguradoras, resseguradoras locais, sociedades de capitalização e entidades de previdência complementar aberta participando ativamente do mercado de compra/venda de créditos de carbono, fazendo-o em mistura completamente desarrazoada com a obrigação de constituir reservas técnicas para pagar sinistros. E é igualmente preciso observar que o artigo 7º, o inciso V, traz o genérico termo “outros”, além das modalidades de investimento mencionadas nos incisos I a IV. Se é preciso investir com cautela, utilizando instrumentos que não ofereçam quaisquer riscos especulativos às reservas técnicas, o genérico “outros” não poderá fugir dessa característica.

Com todas as ressalvas que a pauta ambiental merece, não cabe à Lei nº 15.042 imiscuir-se na obrigação visceral de seguradoras, sociedades de capitalização, resseguradoras locais e entidades de previdência complementar aberta.

O artigo 56 menciona uma obrigação de investir em ativos ambientais não inferior a 0,5 % de todas as reservas desses personagens. Para que se tenha uma ideia vaga, o total das reservas constituídas apenas pelas entidades de previdência complementar aberta ao final de 2024 era da ordem de R$ 1,5 trilhão, tudo destinado à seguridade social de seus participantes. Desnecessário dizer que caso se somem as reservas dos outros 3 personagens, chegar-se-ia à cifra gigantesca, que impacta, profundamente, no PIB do país. A obrigação criada pela Lei nº 15.042 é perigosa [1]!

Chegando à parte final e mais importante desse breve artigo, a Lei nº 15.042, por meio de seu artigo 56, criou obrigações para personagens do (1) Sistema Financeiro Nacional (CF, artigo 192) e do (2) Sistema da Seguridade Social (CF, artigo 202). Lei de espécie ordinária criou obrigação para seguradoras, resseguradoras locais, sociedades de capitalização e para entidades de previdência complementar aberta.

Segundo o disposto no artigo 192 da Constituição, com a redação adotada após a promulgação das Ementas à Constituição nº 13/1996 e 40/2003, permanece a necessidade de que sejam promulgadas leis complementares para tratar de seus personagens.

Na mesma linha observa-se o artigo 202, enfático ao determinar que Lei Complementar deverá ser promulgada para disciplinar o regime de previdência complementar:

O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se manifestar a respeito dessa temática quando, em 1999, por intermédio da Lei nº 9.932, o Congresso Nacional tentou flexibilizar o monopólio do resseguro no Brasil exercido pelo IRB, ignorando a necessidade de que a espécie legislativa adotada fosse a complementar. O resultado do julgamento da Adin 2223-7 foi no sentido de reconhecer a obrigatoriedade de que se fizesse aquela modificação mercadológica por intermédio de lei complementar:

Posteriormente, a Adin em questão restou prejudicada em razão do advento da Emenda à Constituição nº 40/2003, que propôs nova redação ao artigo 192 da Constituição, revogando os seus incisos e parágrafos, designadamente a menção que até então havia ao resseguro em seu inciso II:

Tempos depois, e nesta oportunidade por intermédio de Lei Complementar, aí sim logrou-se êxito na flexibilização do monopólio do IRB, o que decorreu da sanção da Lei Complementar nº 126/2007, ou seja, para resseguro, no país, ratificou-se a necessidade de que se legislasse através de lei da espécie complementar [2].

Às entidades de previdência complementar aberta a questão se mostra ainda mais incisiva considerando o disposto na Lei Complementar nº 109/2001, e, expressamente, o que determina o artigo 202 da Constituição da República, aqui novamente reproduzido:

A determinação de as entidades de previdência complementar constituírem reservas e provisões técnicas que garantirão o benefício contratado está prevista na Lei Complementar nº 109/2001, em seu artigo 9º, caput. E, especificamente o §2º dispõe: “É vedado o estabelecimento de aplicações compulsórias ou limites mínimos de aplicação.”

Assim, não há, na lei específica, possibilidade de aplicação de limites mínimos ou reservas compulsórias. As entidades de previdência complementar constituirão reservas técnicas, provisões e fundos, de conformidade com os critérios e normas fixados pelo órgão regulador e fiscalizador, e aplicarão os recursos correspondentes conforme diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, sendo expressamente vedado o estabelecimento de aplicações compulsórias ou limites mínimos de aplicação.

Ou seja, o artigo 56 da Lei nº 15.042 se choca frontalmente com o disposto na Lei Complementar nº 109/01, ao determinar que ao menos 0,5% das reservas técnicas e provisões das entidades abertas sejam aplicados em ativos ambientais ou em fundos de investimentos em ativos ambientais.

Nesse sentido, a Lei Ordinária nº 15.042, de 2024, de matéria geral, conflita expressamente com as regras específicas da Lei Complementar nº 109/01, circunstância que salta aos olhos independentemente da espécie legislativa de cada uma, isto é, se complementar ou ordinária.

O fato de serem, por si, lei ordinária e lei complementar não retiraria a impossibilidade de coexistência. E sim, devido ao fato da matéria tratada: lei específica vs. lei geral. Segundo a garantia prevista no artigo 202 da Constituição Federal, previdência complementar deverá ser tratada por meio de lei complementar.

Ainda, nos termos da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Lindb), a “lei posterior só revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior” (artigo 2º, § 1º).

Assim, a Lei nº 15.042/24, em seu artigo 56, não pode revogar a matéria específica tratada pelo artigo 9º, § 2º, da Lei Complementar nº 109/01, pois houve expressa vedação, na lei específica, de instituição de aplicações compulsórias ou limites mínimos de aplicação.

No âmbito do sistema de previdência complementar, vale perquirir também a distinção feita pelo artigo 56 da Lei nº 15.042/24 entre as entidades abertas e fechadas de previdência complementar ao determinar que somente as entidades abertas devem investir 0,5% de suas reservas e provisões técnicas em ativos ambientais.

O sistema de previdência complementar é formado pela previdência aberta e fechada, operado por entidade aberta de previdência complementar e entidade fechada de previdência complementar, e, como a própria denominação sugere, uma das diferenças entre a previdência privada aberta e a fechada é justamente a acessibilidade ao plano previdenciário. Ou seja, os planos de previdência abertos podem ser contratados por qualquer pessoa física. Por outro lado, a previdência fechada se destina a categoria específica de participantes ligados a patrocinadores ou instituidores, conforme artigo 12 da Lei Complementar nº 109/2001.

Os planos previdenciários dos dois segmentos apresentam idêntico funcionamento técnico e jurídico: os participantes vertem contribuição aos planos previdenciários por vários anos, as entidades de previdência aplicam tais recursos durante todo esse período e com base no fundo formado revertem, também, por décadas benefícios previdenciários aos participantes ou aos seus beneficiários.

Apesar de a regulamentação e dos órgãos de fiscalização e regulação serem distintos, as duas entidades de previdência contam com o mesmo objetivo — instituição e operação de planos previdenciários, conforme estabelecido no artigo 6° da Lei Complementar nº 109 de 2001.

À luz da argumentação jurídica referida, não há justificativa legal para que a Lei nº 15.042 estabeleça comando (inconstitucional, conforme já exposto) voltado somente às entidades abertas de previdência.

Celso Antônio Bandeira de Mello [3], em seu clássico “Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, nos ensina que o comando legal poderá estabelecer tratamento diferenciado a determinados sujeitos, desde que seja adotado critério discriminatório válido. Tal doutrinador nos ensina que deverá ser investigado não só o critério discriminatório entre os sujeitos, mas também a justificativa racional para tal diferenciação e, por fim, a correlação ou fundamento racional abstratamente existente e afinado com os valores prestigiados no sistema constitucional.

Ao estudar o referido artigo 56 da Lei nº 15.042, que determina que apenas as entidades abertas devem investir, obrigatoriamente, não menos que 0,5% de suas reservas e provisões técnicas em ativos ambientais, ao passo que tanto as entidades abertas e as fechadas integram o sistema de previdência complementar e ambas operam os planos previdenciários estruturalmente similares, não há critério discriminatório válido que possa excluir as entidades fechadas de tal comando (caso tal dispositivo não fosse formalmente inconstitucional).

Pior, o comando legal voltado somente às entidades abertas fere o sistema constitucional de previdência complementar o qual determina que a previdência privada deverá ser baseada em reservas que garantam o benefício contratado, conforme já explanado.

Conclui-se, portanto, que em relação à previdência complementar, tal artigo é inconstitucional por ferir o princípio da igualdade ao estabelecer diferenciação sem justo motivo jurídico das entidades abertas frente às entidades fechadas de previdência complementar.

E para além da violação ao princípio da igualdade, acima referida, pode-se afirmar com tranquilidade que o artigo 56 da Lei nº 15.042/2024 é inconstitucional, considerando o gritante vício de forma. Não cabe ao legislador ordinário imiscuir-se em matéria que, segundo os termos expressamente previstos pelo artigo 202 da Constituição Federal, deve ser única e exclusivamente tratada por Lei Complementar.

Fonte: ConJur

Sobre os autores

  • Maria da Glória Chagas Arruda é sócia do Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados, advogada, mestre e doutora em Previdência Complementar pela PUC-SP, autora dos livros A Previdência Privada Aberta como Relação de Consumo e A Inaplicabilidade do Código do Consumidor em face da Previdência Fechada, ambos pela LTr.
  • Ilan Goldberg é sócio fundador de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados, advogado e parecerista. Cursa estágio pós-doutoral em Direito Comercial na USP. É doutor em Direito Civil pela Uerj, mestre em Regulação e Concorrência pela Universidade Cândido Mendes (Ucam) e pós-graduado em Direito Empresarial LLM pelo IBMEC. Leciona na FGV Direito Rio. É membro dos Conselhos Editoriais da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC) e da Revista Jurídica da CNSeg.

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Direito dos Seguros - Comentarios ao Codigo Civil

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NOTAS

[1] Dados disponíveis em https://fenaprevi.org.br/conteudos/estatisticas-fenaprevi, visitado em 22/2/2025.

[2] O processo histórico em torno do término do monopólio exercido pelo IRB foi visto detalhadamente no nosso GOLDBERG, Ilan. Do monopólio à livre concorrência. A criação do mercado ressegurador brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed., 8ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2017.

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