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As futuras gerações como titulares do Direito Fundamental ao meio ambiente e ao clima (limpo, saudável e seguro)?

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Ingo Wolfgang Sarlet
Ingo Wolfgang Sarlet

30/03/2023

“(…) respeitar a liberdade futura exige que a transição para a neutralidade climática seja iniciada em tempo hábil. Em todas as áreas da vida – produção, serviços, infraestrutura, administração, cultura, consumo, basicamente todas as atividades que atualmente ainda são relevantes para o CO2 – os desenvolvimentos precisam ser iniciados para garantir que, no futuro, ainda se possa fazer uso significativo da liberdade protegida pelos direitos fundamentais” (Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, Caso Neubauer e Outros v. Alemanha, 2021).

A Constituição deve ser compreendida como um pacto político-jurídico intra e intergeracional, de modo a estabelecer diretrizes normativas que assegurem uma distribuição equânime e proporcional de direitos fundamentais entre as gerações presentes (com especial proteção para crianças e adolescentes) e as futuras gerações.O reconhecimento da titularidade do direito fundamental ao meio ambiente – e, em particular, ao clima – às futuras gerações humanas é tema bastante polêmico, carecendo ainda de maior desenvolvimento teórico, sobretudo na doutrina nacional.

A atribuição de titularidade às futuras gerações se torna cada vez mais relevante no campo da tutela jurídica ecológica e climática, já que ela está vinculada diretamente à ideia de manutenção da integridade ecológica das bases naturais para o pleno desenvolvimento da vida, não só na perspectiva temporal presente, como também futura.

Isso, por sua vez, implica a ampliação da dimensão temporal na atribuição da titularidade de direitos. Não sem razão, o conceito dedesenvolvimento sustentável, cunhado no Relatório Bruntland, traz a ideia de que seria “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades”1, conforme reproduzido no Princípio 3 da Declaração do Rio (1992)2.

A ideia de sustentabilidade está na razão de ser da proteção ecológica, já que manter (e, em alguns casos, recuperar) o equilíbrio ambiental e climático implica o uso racional e harmônico dos recursos naturais, de modo a não os levar ao seu esgotamento, e, consequentemente, à sua degradação.

Responsabilidade de deixar como legado ecológico e planetário às futuras gerações

Em sintonia com tal premissa, a Lei 6.938/81, no seu art. 4º, VI, entre os objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente, destaca “a preservação e restauração dos recursos ambientais com vistas à sua utilização racional e disponibilidade permanente, concorrendo para a manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida”.

Até por uma questão de justiça entre gerações humanasoujustiça intra e intergeracional, a geração presente teria a responsabilidade de deixar como legado ecológico e planetário às futuras gerações condições ambientais idênticas ou melhores do que aquelas recebidas pelas gerações passadas, estando a geração vivente, por sua vez, vedada a alterar negativamente as condições ecológicas, até por força do princípio da proibição de retrocesso ecológico (e climático) e do dever (do Estado e dos particulares) demelhoria progressiva da qualidade ambiental (e climática).

O Acordo de Paris (2015) talvez seja um dos diplomas ambientais e climáticos que coloque de forma mais clara a ideia de um pacto geracional (climático), na medida em que busca justamente, por meio da cooperação internacional, alcançar metas progressivas de longo prazo (art. 3º e 4º) em termos de limitação do aumento da temperatura global e neutralidade climática (em relação às emissões de gases do efeito estufa) e, assim, evitar que as piores consequências do aquecimento global e das mudanças climáticas se projetem de forma irresponsável e inconsequente no futuro e, assim, recaiam de modo desproporcional sobre as gerações mais jovens e as futuras gerações, impactando a sua vida, dignidade e direitos fundamentais. 

O estado de emergência climática contemporâneo, como exposto pelos cientista do IPCC – vide as conclusões do seu 6ª Relatório (AR6) – e pelas reivindicações do movimento estudantil Fridays for Future – desde o seu surgimento no mês de agosto de 2018 por meio das manifestações individuais da estudante sueca Greta Thunberg na frente do parlamento sueco, em Estocolmo –, evidencia as limitações do atual sistema democrático, de modo a perpetuar a sub-representação política dos interesses e direitos não apenas de crianças e adolescentes, mas também das futuras gerações humanas.

Afinal de contas, como dito pelo Ministro Luís Roberto Barroso, “a maioria das pessoas que serão afetadas pela mudança climática não tem voz nem voto, ou por serem muito jovens ou por sequer haverem nascido”3. O reconhecimento de direitos fundamentais titularizados pelas futuras gerações, por essa ótica, pode fortalecer a defesa de tais interesses e direitos hoje sub-representados, haja vista inclusive a eficácia contramajoritária inerente ao regime constitucional dos direitos fundamentais, elevando, assim, o seu status jurídico em termos de proteção e blindagem normativa contra retrocessos. 

Proteção indireta, deveres estatais e deveres fundamentais

A proteçãoindireta dos interesses e direitos das futuras gerações, por meio de deveres estatais e deveres fundamentais (atribuídos aos particulares das gerações presentes) não tem se mostrado suficiente para a salvaguarda constitucional adequada do comando normativo expresso no caput do art. 225 da CF/1988: “ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Ao comentar tal dispositivo constitucional, Benjamin assinala que o constituinte desenhou um regime de direitos de filiação antropocêntrica “temporalmente mitigada”, com titularidade concedida também às futuras gerações 4.

No âmbito da responsabilidade civil ambiental, por exemplo, discute-se o conceito de dano geracional, bem como, no direito penal ambiental, a caracterização das futuras gerações como sujeitos passivos da criminalidade. É cada vez mais necessário o reconhecimento de uma dimensão intertemporal dos direitos fundamentais, a fim de assegurar de modo efetivo, no presente, a proteção de interesses e direitos que serão exercícios no futuro (pelas gerações mais jovens e, de modo especial, pelas futuras gerações).

O sistema constitucional brasileiro, conforme pontua Patryck de Araújo Ayala, realça a caracterização de um “sistema de proteção de uma espécie de direito a um futuro, direito que é atribuído não só a todos os membros desta geração, como também às futuras gerações, e que acompanha o reconhecimento pela ordem constitucional de uma obrigação jurídica de proteção do futuro, obrigação esta que atende particularmente aos interesses das futuras gerações5”. E não se trata de “qualquer futuro”, mas um futuro digno, saudável e seguro, tanto do ponto de vista ambiental quanto climático. As futuras gerações, por tal ótica, são consideradas por alguns autores6como uma categoria jurídica detentora de vulnerabilidade, haja vista que os seus interesses (e direitos?) somente podem ser resguardados e reivindicados por terceiros (no caso, a geração presente), o que reforça a esfera dos deveres jurídicos (e morais) e responsabilidade que recaem sobre as gerações viventes. Como dito por Bobbio, “olhando para o futuro, já podemos entrever a extensão da esfera do direito à vida das futuras gerações, cuja sobrevivência é ameaçada pelo crescimento desmesurado de armas cada vez mais destrutivas, assim como a novos sujeitos, como os animais, que a moralidade comum sempre considerou apenas como objetos, ou, no máximo, como sujeitos passivos, sem direitos”.7

(Hiper)vulnerabilidade jurídica das futuras gerações

A respeito do reconhecimento da (hiper)vulnerabilidade jurídica das futuras gerações pelo STJ, destaca-se passagem do voto-relator do Ministro Antonio Herman Benjamin no julgamento do REsp 1.264.166/RS: “a expressão ‘necessitados’ (art. 134, caput, da Constituição), que qualifica, orienta e enobrece a atuação da Defensoria Pública, deve ser entendida, no campo da Ação Civil Pública, em sentido amplo, de modo a incluir, ao lado dos estritamente carentes de recursos financeiros – os miseráveis e pobres –, os hipervulneráveis (isto é, os socialmente estigmatizados ou excluídos, as crianças, os idosos, as gerações futuras), enfim todos aqueles que, como indivíduo ou classe, por conta de sua real debilidade perante abusos ou arbítrio dos detentores de poder econômico ou político, ‘necessitem’da mão benevolente e solidarista do Estado para sua proteção, mesmo que contra o próprio Estado.”8

No plano legislativo infraconstitucional, a tutela dos interesses das futuras gerações aparece presente no conteúdo da norma inscrita no art. 2º, I, da Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos, ao dispor ser objetivo da política em questão “assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos”. De igual maneira, o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), diploma legislativo de indiscutível caráter ecológico, notadamente na perspectiva do meio ambiente urbano ou artificial, dispõe no seu art. 2º, I, como objetivo da política urbana por ele delineada a “garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes efuturas gerações”.

Há, certamente, muito ainda a ser desenvolvido, notadamente no plano doutrinário, para podermos estabelecer, de forma adequada, a titularidade de direitos das futuras gerações, o que certamente exigirá a superação de muitas das premissas e conceitos clássicos da Teoria Geral do Direito e da Teoria dos Direitos Fundamentais com as quais ainda trabalhamos. No entanto, há razões de sobra para que tal esforço seja empreendido, tendo em vista a necessidade de construirmos uma ponte teórica e normativa sólida que nos conecte com o futuro e com a possibilidade de as futuras gerações (nossos filhos/as, netos/as, bisnetos/as, tataranetos/as etc.) desfrutarem de uma vida digna e saudável, o que não se fará possível se não assegurarmos a elas um meio ambiente ecologicamente equilibrado e uma atmosfera terrestre íntegra e segura. E começarmos a fazer isso hoje! 

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LEIA TAMBÉM


NOTAS

1 COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Relatório Nosso Futuro Comum. 2. ed. São Paulo: Editora da Fundação Getulio Vargas, 1991, p. 43.

2 “Princípio 3 – O direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas equitativamente as necessidades ambientais e de desenvolvimento de gerações presentes e futuras.”

 3 BARROSO, Luís Roberto. Sem data vênia: um olhar sobre o Brasil e o mundo. Rio de Janeiro: História Real, 2020, p. 93.

4 BENJAMIN, Antonio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 110.

5 AYALA, Patryck de Araújo. A proteção jurídica das futuras gerações na sociedade do risco global: o direito ao futuro na ordem constitucional brasileira. In: FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato (org.). Estado de direito ambiental: tendências. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 246. Sobre a concepção de um direito ao futuro, v. FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: o direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2011.

6 HIPPEL, Eike von. Der Schutz des Schwächeren. Tübingen: J. C. B. Mooh, 1982, p. 140 e ss.; e MIRAGEM, Bruno; MARQUES, Claudia Lima. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: RT, 2012, p. 166 e ss.

7  BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 32.

8 STJ, REsp 1.264.166/RS, 2ª T., Rel. Min. Herman Benjamin, j. 18.10.2011.

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