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Crueldade com Animais: Retrocesso da EC 96/2017
José dos Santos Carvalho Filho
07/08/2017
A Emenda Constitucional nº 96, de 6.6.2017, acrescentou o § 7º ao art. 225 da Constituição, cujos termos são os seguintes:
“§ 7º – Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.”
Esse novo dispositivo, na verdade, excepciona a regra de proteção dos animais contra práticas cruéis, prevista no mesmo art. 225, § 1º, VII, segundo o qual cumpre “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.
Tal exceção se afigura inteiramente lamentável e espelha um inegável retrocesso do ordenamento brasileiro no que tange à proteção dos animais, comparando-se com os ordenamentos mais modernos, no âmbito dos quais, a cada dia, se amplia o espectro protetivo, em consonância com os mais modernos padrões de civilidade.
A nova diretriz ofende flagrantemente a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, firmada pela ONU, através da UNESCO, em 27.1.1978, em Bruxelas, cuja preocupação central foi o cometimento de crimes contra os animais e contra a natureza – o que deveria ser preocupação também de todas as sociedades modernas.
Vale a pena lembrar os postulados básicos desse documento. Primeiramente, declara-se que “todos os animais nascem iguais diante da vida, e têm o mesmo direito à existência” (art. 1º), além de que “a) Cada animal tem direito ao respeito; b) O homem, enquanto espécie animal, não pode atribuir-se o direito de exterminar os outros animais, ou explorá-los, violando esse direito. Ele tem o dever de colocar a sua consciência a serviço dos outros animais; c) Cada animal tem direito à consideração, à cura e à proteção do homem” (art. 2º). Finalmente, o art. 3º dispõe que “nenhum animal será submetido a maus tratos e a atos cruéis” e que, “se a morte de um animal é necessária, deve ser instantânea, sem dor ou angústia”.
Referidos postulados retratam, com certeza, a sensibilidade que conduz a uma relação de piedade e de respeito entre humanos e animais e, ao mesmo temo, indicam que a era da crueldade monstruosa sofrida pelos animais é coisa do passado.
A exceção contemplada no novo § 7º do art. 225 da CF alude a “práticas desportivas” que sejam “manifestações culturais”. Ora, esses fatos são extremamente subjetivos e neles podem ser enquadradas, por uma interpretação míope e deturpada, algumas manifestações que nada têm de desportivas, nem de essencialmente culturais, mas, ao contrário, fazem aflorar em certos grupos a sanha mortífera que macula seu espírito e destrói sua alma.
Um dos pontos que constituem a gênese dessa modificação constitucional foi a discussão que se travou sobre a constitucionalidade, ou não, da prática conhecida como “vaquejada”, adotada usualmente em regiões do nordeste do país. Essa prática consiste no propósito sádico de dois vaqueiros para derrubar um boi, puxando-o pelo rabo até que consigam alcançar seu objetivo de queda do animal.
A fisionomia dessa cruel atividade foi posta em xeque perante o STF, sendo que, em decisão proferida em outubro de 2016, ficou declarada, na ADI 1.493, a inconstitucionalidade da Lei nº 15.299/2013, do Estado do Ceará, que disciplinava a vaquejada. Entretanto, numa demonstração de efetivo dissenso, a decisão foi proferida por apertada maioria, com votos de seis Ministros pela inconstitucionalidade e de cinco pela legitimidade da lei.
A decisão desagradou os grupos interessados nessa prática insensível e cruel, com a justificativa de que se trataria de antiga manifestação cultural, na qual prevaleceria o propósito das tradições locais sobre o da proteção aos animais. Com isso, outras práticas, como, por exemplo, a “briga de galo” acabarão por ser legitimadas, a despeito da inegável perversidade dos humanos relativamente aos animais postos sob intenso sofrimento nas rinhas – tudo com a falsa ideia de “competição” ou “jogo”.
Na verdade, como o Judiciário havia posto uma pá de cal sobre tal prática, considerando-a ofensiva à Constituição, o Legislativo, certamente composto por vários representantes dos interessados na manutenção da vaquejada, chancelou a atividade, promulgando a referida E.C. 96/2017.
Tudo isso reflete a sanha assassina de um povo ainda incivilizado e destituído dos mínimos padrões de educação e discernimento e, portanto, distante do processo evolutivo que se desenvolve em países modernos, com o fito de proteger os animais quanto à vida e contra práticas cruéis e de maus tratos por parte de humanos.
Em suma, a E.C. 96 é o símbolo mais fiel do retrocesso da sociedade brasileira quanto a seu instinto assassino e medieval – isso sem contar, como se observa diuturnamente, outras grandes mazelas que dão o triste contorno de sua fisionomia social anacrônica.
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