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Atuação normativa do regulador à luz do princípio do Hard Look Review
Ilana Zeitoune
06/03/2017
Resumo
A despeito de a Agência ter atribuição normativa devido a deslegalização técnica que fora autorizada pela legislação, destaca-se no presente trabalho que esse papel normativo encontra limitações de ordem jurídica. Nesse sentido, a Lei 9.478/97 exige, para a validade do ato, a realização de consulta e audiência pública para a expedição de atos normativos. Nesse processo, o regulador, à luz do seu caráter neutral, ponderará as contribuições do público na sua decisão. As decisões da ANP, como toda e qualquer outro ato administrativo, sujeita-se a controle judicial, sob o aspecto de sua legalidade, ou mesmo sob o aspecto técnico em caso de falta de razoabilidade ou proporcionalidade. As contribuições do público em audiência e consulta pública merecem respostas da Agência. Em caso de falta de ponderação pelo regulador acerca das questões trazidas, a questão pode ser debatida no Poder Judiciário por força do princípio do “hard look review”. Nesse sentido, o Poder Judiciário analisará se a Agência conferiu a “devida atenção” às propostas trazidas.
1. Introdução
A Emenda Constitucional 09/95 flexibilizou o monopólio sobre a exploração e produção de petróleo e gás natural de forma a permitir a contratação de empresas públicas e privadas para atuação no setor, além de ter criado a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (“ANP”) com a função de regular, com especial conotação técnica, o setor de óleo e gás. Para tanto, foi atribuído a esse ente relativa autonomia do governo central, esta se materializando em autonomia financeira, vedação à demissão “ad nutum” de seus Diretores, além de atribuições paralegislativa e parajudiciárias.
A função paralegislativa da ANP, em especial, consiste, para a melhor doutrina, na possibilidade de o regulador, através de uma ponderação de diversos elementos técnicos, criar normas específicas para o setor regulado. Dado que o Legislador típico não detinha o conhecimento necessário para a definição de normas de conteúdo particularmente técnico, a solução apropriada se materializou no instituto da “deslegalização”, isto é, na delegação de atividade normativa técnica a um órgão especialmente definido.
Não obstante se argumente em favor da legitimidade da Agência à luz da técnica, nota-se, em contraposição ao Poder Legislativo, composto por representantes eleitos pelo povo, que as Agências Reguladoras carecem de idêntica representatividade democrática para normatizar, a despeito de seu conteúdo técnico. Nesse cenário, o déficit democrático do regulador é ponderado com a teoria do consensualismo administrativo que conclama para uma Administração Pública Participativa, ou seja, aquela que na tomada de decisão confere maior participação da população, em especial do administrado diretamente afetado no processo de elaboração das normas expedidas pelas Agências Reguladoras.
Em termos de Agências Reguladoras, o método tradicional para a participação dos administrados se dá por meio de consultas e audiência públicas. Consoante balizada doutrina, a Consulta/Audiência Pública tem por objetivo recolher subsídios, conhecimentos e informações para o processo decisório do regulador; propiciar aos agentes econômicos e aos demais interessados a possibilidade de encaminhamento de opiniões e sugestões; identificar, da forma mais ampla possível, todos os aspectos relevantes à matéria objeto da audiência pública; bem como dar publicidade, transparência e legitimidade democrática às ações da Agência Reguladora.
Nesse contexto, o art. 31, §1º, da Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito federal, prevê que “Quando a matéria do processo envolver assunto de interesse geral, o órgão competente poderá, mediante despacho motivado, abrir período de consulta pública para manifestação de terceiros, antes da decisão do pedido, se não houver prejuízo para a parte interessada.”
No mesmo sentido, a Lei nº 9.478/97, que criou a ANP, previu expressamente, no seu art, 19, que “As iniciativas de projetos de lei ou de alteração de normas administrativas que impliquem afetação de direito dos agenteseconômicos ou de consumidores e usuários de bens e serviços das indústrias de petróleo, de gás natural ou de biocombustíveis serão precedidas de audiência pública convocada e dirigida pela ANP.” Dispositivo equivalente existe na lei de outras agências brasileiras. A Resolução ANP n.º 5, de 20/02/2004, regulamenta, ainda que sucintamente, o processo de audiência pública e de consulta pública no âmbito da ANP.
O dispositivo em referência revela fundamental etapa do processo de criação de normas pela ANP. Se por um lado, fala-se em déficit do poder normativo da Agência Reguladora por outro, busca-se equilibrá-lo sob a necessária perspectiva de que o exercício da atividade normativa deslegalizada seja realizada com abertura à participação popular e interessados no processo de elaboração da norma.
Nesse viés, a despeito de o poder de decidir o conteúdo da norma ser uma atribuição exclusiva da Agência, é relevante entender que a legitimidade democrática do poder normativo da ANP se densifica na exata medida em que se confere abertura à participação de terceiros. É exatamente nesse ponto que surge a aplicação do princípio “hard look review”. Este princípio, ao que nos parece, albergado pelo art. 19 da Lei 9.478/99, determina que o regulador, além de autorizar a participação dos interessados no processo normativo, avalie expressamente as sugestões outrora apresentadas sob pena de permanecer no indesejado déficit de legitimidade democrática, tornando a norma criada como nula.
Nesse contexto, o presente artigo tem por objetivo analisar, em um primeiro momento, a evolução da indústria do petróleo com a criação da ANP e os poderes que lhe foram conferidos; atentar, em segundo momento, para a função
normativa da Agência e a necessidade de sua legitimação; adiante, analisaremos importantes mecanismos para a efetivação dessa legitimação consistentes nas audiências e consultas públicas, etapas integrantes do devido processo administrativo; por fim, concluímos para a necessidade de uma maior participação dos administrados na elaboração de normas que possam afetar seus interesses, assim como uma fundamentação apropriada da ANP com relação às proposições dos interessados, de forma que tais procedimentos (consultas e audiências públicas) não se transmutem em formalidades estéreis do processo legal de produção da norma regulatória e, em ultima instância, reste atendido a forma como fora densificado o interesse público na hipótese, assim como os demais princípios consagrados pelo ordenamento jurídico brasileiro.
2. A nova ordem econômica brasileira
A ordem econômica brasileira, à luz do art. 170 da Constituição Federal de 1988 (CRFB/88), é fundada em dois principais postulados: a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano. Todas as atividades econômicas exercidas em âmbito nacional, independente do agente, devem se compatibilizar aos referidos postulados, que, têm por finalidade última, assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social.
Aparentemente, a ideia de livre iniciativa é antagônica à valorização do trabalho humano e à justiça social, se fundada nos anseios da maximização dos lucros e redução de custos. Por essa razão, a Constituição clama por uma intervenção do Estado no domínio econômico, para restringir e condicionar a atividades dos particulares em favor do interesse público, e para implementar as políticas econômicas que concretizem tais princípios, sem fazer as vezes do empreendedor.1 Conforme salienta TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, contudo, tal intervenção não se faz contra o mercado, mas a seu favor.
Duas são as formas de atuação do Estado na ordem econômica: (i) como agente regulador ou (ii) como agente executor. Nesta última hipótese, o Estado não se limita a fiscalizar as atividades econômicas destinadas à iniciativa privada, mas ingressa efetivamente no plano da sua execução, no interesse da coletividade. Sua exploração pode se dar de modo direito – se necessária aos imperativos de segurança nacional ou relevante interesse coletivo –ou de modo indireto, as atividades econômicas e serviços públicos são exercidos pelas empresas públicas e sociedades de economia mista, controladas e dirigidas pelo Estado, para a execução de seus objetivos institucionais.2
Por Estado regulador entende-se aquele que se incumbe de estabelecer as regras disciplinadoras da ordem econômica com vistas a ajustá-las aos ditames da justiça social. Sua intervenção, nesse caso, é verificada através das imposições normativas destinadas principalmente aos particulares, bem como de mecanismos preventivos e repressivos para coibir condutas abusivas.3 Tal poder regulador é limitado pelo Direito, pela vontade da maioria, aprovado pelos representantes populares no Congresso Nacional e pelos agentes econômicos e usuários através da participação direta na regulação, com a promoção de audiências e consultas públicas.
Na década de 1970, em especial, impera-se, no cenário global, um forte ideário neoliberal e, por conta dele, a defesa do afastamento do Estado de empreendimentos produtivos e de serviços básicos, por meio da privatização e da liberalização financeira, da concessão de benefícios e garantias ao capital estrangeiro e das reformas estruturais capazes de reduzir os deveres do Estado para a sociedade.
Nesse contexto, é promovida a abertura do mercado brasileiro de setores antes fechados à iniciativa privada, bem como a privatização de empresas estatais e a criação de agências reguladoras independentes. Estas, na visão de GUSTAVO BINENBOJM (2006), representam verdadeira ruptura com a tradicional estrutura piramidal do Poder Executivo, em que todos os órgãos e entes executivos eram vinculados às escolhas políticas do Governo. Daí a se configurar a estrutura policêntrica da Administração Pública defendida pelo doutrinador, na qual os centros decisórios se alastram setorialmente por campos econômicos e sociais.4
O setor petrolífero, a exceção de outras atividades econômicas, não foi objeto de privatização, mas de abertura de mercado com a instituição de um regime de concorrência entre a Petróleo Brasileiro S.A. – empresa estatal – e demais empresas privadas, como veremos adiante.
3. A flexibilização do monopólio da Petrobras e a criação da ANP com determinadas prerrogativas
Inicialmente, o Estado criou, por meio do Decreto-lei nº 395, de 1938, o Conselho Nacional de Petróleo (“CNP”) para intervir no desenvolvimento do setor petrolífero no Brasil e regular a Indústria. Esteve, inicialmente, subordinado à Presidência da República, e posteriormente passou a incorporar o Ministério das Minas e Energia (“MME”).
Em 1953, é editada a Lei 2.004, que disciplina o monopólio da União sobre as atividades de pesquisa, lavra, industrialização, comércio e transporte de petróleo, conferindo à Petrobras, empresa constituída na forma de sociedade por ações, a execução do monopólio estatal e o controle sobre todas as atividades correlatas ao setor. Criou-se, daí, a ideia de monopólio natural, entendido como a atividade econômica cuja exploração somente pode ser realizada por um único agente.5
A Emenda Constitucional nº 09/95 introduziu profunda alteração no regime jurídico relacionado ao petróleo, com a quebra da exclusividade e reserva de mercado atribuída à Petrobras, que passa a desempenhar suas atividades em regime de concorrência com outras empresas privadas.6 Em vista desse novo regime concorrencial, o §2º do art. 177 previu a criação, pela via legal, de um órgão regulador do monopólio da União, para controlar e fiscalizar as atividades da Indústria a serem exercidas por diversos players.
Nesse contexto, é editada, em 06 de agosto de 1997, a Lei 9.478, que delineia os objetivos da política energética nacional e cria a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (“ANP”) – com a natureza jurídica de autarquia especial, vinculada ao MME e integrante da Administração Pública Indireta – e o Conselho Nacional de Política Energética (“CNPE”), órgão de assessoramento da Presidência da República com a atribuição de elaborar propostas para assegurar o abastecimento interno e o aproveitamento racional dos recursos energéticos.
Percebe-se, pelo rol de funções da ANP, que a mesma passou a assumir o papel que caberia ao Poder Público, ao planejar, implementar e promover a política nacional de petróleo e gás e, ainda celebrar contratos, fiscalizar e aplicar penalidades, fixando diretrizes para o setor da economia regulado. Realiza o que MANUEL GONÇALVES FERREIRA FILHO apresenta como intervenção conforme na economia, orientando os regulados por uma política global, financeira, sem lhes eliminar a livre determinação.7
Com o fim de garantir a neutralidade e independência do regulador, foram-lhe conferidas certas prerrogativas. Cite-se a forma de investidura dos cargos e a estabilidade de seus dirigentes, que são indicados pelo Presidente da República ao Senado e por este sabatinados para posterior nomeação para o exercício do mandato por prazo fixo (fato que impede a demissão ad nutum e ainda que o mandato só possa vir a ser retirado em casos excepcionais, mediante o preenchimento das condições expressamente instituídas, com vistas a assegurar a desvinculação relativa da agência com relação ao Executivo). Adicionalmente, a lei previu à agência reguladora uma direção colegiada, composta de pessoas de notório saber no segmento regulado, e não uma autoridade singular, a fim de preservar a independência.
De igual modo, buscou-se garantir a independência financeira da ANP, que tem receitas próprias identificadas no art. 15 da Lei 9.478/97.8
Outrossim, ressalta-se a função judicante do ente regulador que, da mesma forma que atribui direito de ingresso, pode determinar o afastamento de determinado operador no mercado. A partir de uma decisão regulatória, a agência, sempre sopesando custos e benefícios de suas medidas, fixa um entendimento acerca do que deve ser a conduta razoável do regulado, e seu impacto a todo o segmento regulado.9
Por fim, prerrogativa que daremos maior destaque é a ampla capacidade normativa da ANP em relação ao setor petrolífero por ela regulado da as particularidades da lei que a instituiu (a lei-quadro). Três são as teorias apontadas por MARCOS JURUENA (2011) que a justificariam, a seguir: (i) a Teoria da Transmissão Democrática, pela qual a lei atribui a agentes reguladores o poder de editar normas técnicas e comandos necessários ao desenvolvimento eficiente do setor, para uma generalidade de casos; (ii) a Teoria da Especialização, pela qual o legislador reconhece que o regulador deve ser um especialista na matéria e, por isso, confere-o liberdade para regular com vistas a obtenção de um funcionamento eficiente do setor e a consecução dos interesses da coletividade regulada; e (iii) a Legitimação pela Participação, por força da qual todas as normas antes de editadas devem ser submetidas a um processo de consulta pública, para que, desse modo, se chegue a um ponto ótimo de equilíbrio entre a estabilidade financeira do fornecedor e o poder aquisitivo do consumidor.10 Esta teoria foi a contemplada pela Lei nº 9.478/97 como veremos a frente.
Vale ressaltar que, embora hoje pacificado na doutrina, o poder normativo das agências reguladoras já foi objeto de muitas críticas. Para os mais conservadores, a Administração Pública não criaria direitos e obrigações, que já estariam previamente estabelecidos na lei, mas detalharia, com certa margem de discricionariedade, a maneira pela qual deveriam ser implementados.
ALMIRO DO COUTO E SILVA atenta para o retrocesso dessa noção conservadora e argumenta que, no exercício de competência legalmente definida, têm os agentes públicos um dilatado campo de liberdade para desempenhar a função formadora. Por essa razão, argumenta o autor que a lei criadora da entidade reguladora é dotada de amplo grau de generalidade e abstração para permitir a plena atuação do agente público, dentro das regras e princípios nela contidos. 11
No mesmo sentido, MARÇAL JUSTEN FILHO (2002) defende a natureza interpretativa e integrativa do regulamento, refutando a tese que o mesmo se traduz em mero reprodutor legal. Para tanto argumenta que assegurar a fiel execução da lei, de fato, propicia a adoção de determinações que configurem inovação à disciplina por ela adotada, desde que respeitados o seu espírito ou sua finalidade. Desse modo, o preenchimento de espaços vazios na disciplina contida por uma lei, pelo administrador regulador, não configuraria ofensa à determinação constitucional de atuação orientada a promover a fiel execução da lei. E conclui o autor “logo, o que se pode discutir não é a existência de cunho inovador nas regras contidas no regulamento, mas a extensão da inovação produzível por essa via.”12
O Supremo Tribunal Federal, em decisão liminar de relatoria do Ministro Marco Aurélio, proferida nos autos da ADI 1688, deu interpretação conforme à Constituição, sem redução de texto, a dispositivos da Lei Geral de Telecomunicações, com o objetivo de fixar exegese segundo a qual a competência normativa da ANATEL – e, analogicamente, a das demais agências reguladoras – subordina-se aos preceitos constitucionais, legais e regulamentares pertinentes ao setor que regula.
Assim, o fundamento de validade à atuação normativa da ANP relaciona-se a promoção dos objetivos legais consignados, dentre outros, no art. 8º da Lei 9.478/97, devendo, igualmente, atender às políticas energéticas nacionais enumeradas no art. 1º13 dessa Lei.
Além disso, a aludida Lei determinou, em seu art. 19, outro requisito de validade a que deve a ANP obediência quando de sua atuação normativa, qual seja, o dever de promover consulta e audiência públicas previamente à iniciativa de projetos de lei e/ou de alteração de normas administrativas que afetem direito de seus regulados. Nos debruçaremos sobre tal dever no item que segue.
4. O dever de realização de consulta e audiência pública pela ANP
A Lei nº 9.478/97, em seu art. 19, como acima mencionado, prevê expressamente que as normas que impliquem afetação de direitos dos agentes econômicos serão precedidas de audiência pública. Confira-se a redação do referido dispositivo ora transcrito:
Art. 19. As iniciativas de projetos de lei ou de alteração de normas administrativas que impliquem afetação de direito dos agentes econômicos ou de consumidores e usuários de bens e serviços das indústrias de petróleo, de gás natural ou de biocombustíveis serão precedidas de audiência pública convocada e dirigida pela ANP.
Do dispositivo supracitado extrai-se o comando no sentido de que toda e qualquer norma que crie uma obrigação para o Concessionário deve, necessariamente, passar pelo crivo da Audiência Pública para que a autoridade administrativa: (i) recolha subsídios, conhecimentos e informações para o processo decisório; (ii) propicie aos agentes econômicos e aos consumidores e usuários a possibilidade de encaminhamento de opiniões e sugestões; (iii) identifique, da forma mais ampla possível, todos os aspectos relevantes à matéria objeto da audiência pública; bem como (iv) dê publicidade, transparência e legitimidade às ações da ANP. Desse modo, a norma que é editada pela ANP sem submeter-se a tal procedimento é desprovida de coercibilidade, e, por conseguinte, não pode ser oposta ao regulado, pela ausência do requisito de validade previsto no art. 19 da Lei nº 9.478/97.
Registra-se ainda o disposto no art. 1.º da Resolução ANP 05/2004 que dispõe que essa forma de participação popular é “instrumento de apoio ao processo decisório e será realizada previamente à edição dos atos regulatórios (…)”.
A obrigação de ser realizada audiência pública, no âmbito das normas editadas pela ANP, assume especial relevância pela necessidade de ser suprido, ou, ao menos, atenuado o déficit de legitimidade democrática das agências reguladoras. Ao contrário do que ocorre com o Congresso Nacional, as agências reguladoras editam normas com efeitos externos, sem que tenham seus representantes eleitos pelo voto popular, como visto em item acima.
Assim, com o intuito de conferir legitimidade aos atos editados da ANP, a Lei nº 9.478/97, em boa hora, veio a instituir a obrigação de audiência pública para a edição das normas regulatórias, a fim de permitir que a sociedade e os agentes regulados possam tomar conhecimento e influir no processo de elaboração da norma, fato que contribui para uma decisão mais legítima e eficiente para a regulação das atividades.
Com efeito, a audiência pública é modalidade de participação popular que concede a mais ampla publicidade, uma vez que as partes interessadas têm o direito de realizar proposições de aprimoramento da norma regulatória, que devem ser debatidas em ato público realizado pelo ente regulador. Este, por sua vez, deve justificar as razões pelas quais adota ou rejeita a proposição realizada pela sociedade ou pelos agentes econômicos.
Tais audiências públicas são normalmente antecedidas de consultas públicas, que, apesar de possuírem o mesmo espírito, não se equivalem. Nesse sentido, salienta José dos Santos Carvalho Filho que “na consulta pública, a Administração deseja compulsar a opinião pública através da manifestação firmada através de peças formais, devidamente escritas, a serem juntadas no processo administrativo. A audiência pública é, na verdade, modalidade de consulta, só que com o especial aspecto de ser consubstanciada fundamentalmente através de debates orais em sessão previamente designada para tal fim.”.14
No âmbito da ANP, tal procedimento dá-se da seguinte forma: a ANP, primeiramente, publica no Diário Oficial da União e divulga em seu sítio eletrônico um aviso de consulta pública e audiência pública – contendo o objetivo, o prazo e a forma de participação na Consulta, bem como a data e o local em que ocorrerá a Audiência, e sua programação – juntamente com a disponibilização de uma minuta da norma que se pretende editar. Os interessados encaminham seus comentários ao longo do prazo da consulta, os quais devem ser analisados pela ANP e, posteriormente, incorporados ou rejeitados à minuta do ato regulamentar. Demais manifestações de interessados realizados no dia da Audiência Pública podem ser também aproveitadas pela Agência no fechamento da minuta do ato administrativo. Vê-se na prática, contudo, que não raro a ANP não leva em consideração as sugestões dos administrados interessados à norma e tampouco justifica o afastamento dessas sugestões, limitando-se a uma sucinta negativa.
Consoante balizada doutrina, essas exigências procedimentais, longe de serem meras formalidades constituem, quando impostas pelo ordenamento jurídico, requisito de validade dos atos e normas a serem editados. 15 Igual ponderação restou assentada no excerto abaixo transcrito, extraído de acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Confira-se:
[…] Já o exercício do seu poder normativo obedece aos mesmos parâmetros que pautam a atividade legislativa, dentre os quais os princípios da realidade, da razoabilidade e da proporcionalidade. Às agências incumbe, portanto, o exercício do poder sempre com a participação dos destinatários dos seus atos. Contudo, o postulado da legitimidade do poder normativo das agências reguladoras não é alcançado pela simples e formal realização de audiência pública, mas pela sua efetiva e material realização e por todo o procedimento de elaboração do ato normativo. A experiência demonstra que as audiências públicas reduziram-se à sessões formais e o coeficiente democrático da Agência Nacional de Petróleo – ANP chegou a causar perplexidades manifestas.16 (grifamos)
Acerca da ilegitimidade de norma produzida em desrespeito à exigência de participação popular, vale citar, o MS 24.184/DF, no qual o STF entendeu inexistir legalidade de determinado Decreto que tinha por fim ampliar os limites de área de preservação ambiental, sem que o Poder Público tivesse realizado previamente a consulta pública que é expressamente exigida pela legislação ambiental. O precedente em questão faz referência ao art. 22, § 2.º da Lei 9.985/00 que versa exclusivamente sobre a necessidade Consulta Pública, o qual nos parece ser um norte em termos de ilegitimidade de atos da ANP no que se refere à necessidade de fiel execução do art. 19 da Lei 9.478/97.
Desse modo, o dever de motivação a que está submetida a Administração não pode ser suprido por justificativas sucintas e superficiais, por ir de encontro ao Princípio do hard look review, sobre o qual dissertaremos adiante.
5. O dever de motivação da ANP e o Princípio do Hard Look Review: controle judicial dos atos administrativos
A legitimidade da ação da Agência não é obtida somente por conta da aplicação formal das etapas descritas no art. 19 da Lei 9.478/97 e da Resolução ANP 5/2004, como ressaltamos anteriormente. É preciso que a Agência considere, em concreto, as diversas contribuições trazidas pelo público em seu processo decisório.
A exigência de análise das diversas contribuições do público, em uma visão centrada nos motivos que geraram a necessidade de prévia consulta e audiência públicas, indica que a Agência deve tratar com a devida profundidade (ou dispensar a “devida atenção” a) os comentários, até para que possa exercer o seu papel de ponderação dos diversos interesses em jogo.
Nesse ponto, recorda-se o caráter neutral da Agência, especificamente para registrar que o regulador deverá colher tais informações para tomar uma decisão racional e equilibrada à luz de todas informações disponíveis, conhecendo a priori as diversas consequências de suas escolhas para o setor regulado.
Diante desse leque de informações, a doutrina da Administração Consensual aponta que o papel normativo da Administração Pública será mais bem executado à luz de uma diversidade de contribuições para a busca de uma melhor regulação do tema. Enfim, é diante desses comentários que o regulador terá melhor condições de tomar uma decisão que possa vir a atender de forma equilibrada o interesse público expresso na regulação versus os direitos dos particulares. Do contrário, retornar-se-ia a uma administração autoritária – exatamente aquilo que se quis impedir com a densificação da participação popular através das consultas e audiências públicas.
Por conta disso, afirma-se não ser suficiente, à luz do art. 19 da Lei 9.478/97, a mera realização dos instrumentos de participação popular. É fundamental que a Administração Pública informe as razões que a levaram a rejeitar ou acolher as solicitações das partes envolvidas. Esta conclusão pode ser extraída do disposto no artigo 31, § 2.º da Lei 9.784/99 que impõe à Administração Pública o dever de apresentar resposta fundamentada às colocações dos administrados, sendo certo que esse dispositivo legal autoriza ainda uma resposta comum a todas as alegações substancialmente iguais.
De todo modo, ainda que o Regulador ofereça uma resposta às questões a ele levadas, é fundamental que a resposta da Administração seja, por aplicação do art. 51, § da Lei 9.784/99, explícita, clara e congruente.
Enfim, encerrado os trabalhos da ANP, deve o Administrador avaliar a legalidade do procedimento e, obviamente, a legitimidade das escolhas do ato a ser publicado. Nada impede que o administrador reveja todo o procedimento por conta de uma ilegalidade (procedimental ou de mérito).
Caso a Administração Pública autorize a publicação do ato normativo diante de uma ilegalidade, esse ato poderá ser questionado na seara judicial pelo administrado. Naturalmente que esse questionamento judicial, regra geral, deve se dar à luz de um caso concreto.
A doutrina tradicional sempre tratou a questão da sindicabilidade do ato administrativo com severa restrição. Sem buscar aprofundar esse ponto, vale dizer que se reconheceu que o mérito administrativo não estava sujeito a controle judicial, até porque se trata de assunto que a Constituição reservou à Administração Pública.
No entanto, essa doutrina evolui para a possibilidade de questionamento do mérito do ato administrativo nas hipóteses de abuso, excesso e desvio de poder. Ainda em termos evolucionários, reconheceu-se que a esfera de escolhas conferidas ao administrativo não o autorizaria a prática de atos irrazoáveis ou desproporcionais.
Em termos de consulta pública e audiência pública nota-se que a sindicabilidade do ato está umbilicalmente ligada à motivação dada ao ato, a ponto de rechaçar escolhas arbitrárias da administração. Cabe registrar que neste ponto, se por um lado, parece-nos típica a deferência do Poder Judiciário às escolhas técnicas do regulador, não se pode dizer de forma terminante que a tecnicidade da questão impede o conhecimento de eventual questão trazida pelo administrado.
É exatamente aqui que se argumenta com a doutrina do “hard look review”. Nos termos desse instituto, o Poder Judiciário está legitimado a avaliar se a Agência teria dado a “devida atenção” às diversas contribuições de todas as partes. Neste ponto, o “hard look” demonstra-se como medida de salvaguarda a eventuais caprichos e arbitrariedades do regulador, dado que o debate da questão se dá exclusivamente na Administração Pública, diversamente daquilo que ocorre com a lei, que é instrumento de ampla discussão em duas casas legislativas com aprovação do Chefe do Poder Executivo.
Adicionalmente, acredita-se que esse formato de revisão traduz uma renovação dos freios e contrapesos entre os poderes Judiciário e Executivo.
6. Conclusão
Dada a deslegalização autorizada pela Constituição, assim como pela Lei 9.478/97, entendemos que, embora a ANP, tenha a atribuição de um papel normatizador na perspectiva técnica, importante destacar que essa atribuição não pode ser exercida de qualquer modo. Com efeito, as Agências Reguladoras, incluindo-se a ANP, devem densificar o processo de consulta/audiência pública, não somente no aspecto formal (editais, avisos, etc.), mas trabalhar na ampliação da atuação material desse processo. Isso se dá, pela já vista abertura à participação de interessados, assim como por uma análise conclusiva das sugestões apresentadas por escrito ou verbalmente no processo de elaboração da norma, sem prejuízo de uma reavaliação do Poder Judiciário, notadamente, no que se refere às respostas dada pelo regulador, a fim de evitar caprichos e arbitrariedades.
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2 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris. 2009, p.880.
3 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris. 2009, p.867.
4 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.240.
5 PIRES, Paulo Valois. A evolução do monopólio estatal do petróleo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2000, pp.70- 71;77-79.
6 O §1º do art. 177 da CRFB/88 permitiu à União contratar empresas estatais ou privadas para a realização de atividades ligadas ao petróleo e sua exploração, previstas nos incisos I a IV desse dispositivo.
7 FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Comentário à Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1995, vol. 4, p. 14.
8 GUERRA, Sérgio. Agências Reguladoras e a Supervisão Ministerial. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.485.
9 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Agências Reguladoras. In: ROSADO, Marilda (coord). Estudos e Pareceres Direito do Petróleo e Gás. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p.378.
10 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Agências Reguladoras. In: ROSADO, Marilda (coord). Estudos e Pareceres Direito do Petróleo e Gás. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 374.
11 SILVA, Almiro do Couto. Poder Discricionário no Direito Administrativo Brasileiro. Revista de Direito Administrativo n° 179/180, p. 53.
12 JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito das Agências Reguladoras Independentes. São Paulo: Dialética, 2002, pp. 510-511.
13 Art. 1º da Lei nº 9.478/97: I – preservar o interesse nacional; II – promover o desenvolvimento, ampliar o mercado de trabalho e valorizar os recursos energéticos; III – proteger os interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos; IV – proteger o meio ambiente e promover a conservação de energia; V – garantir o fornecimento de derivados de petróleo em todo o território nacional, nos termos do § 2º do art. 177 da Constituição Federal; VI – incrementar, em bases econômicas, a utilização do gás natural; VII – identificar as soluções mais adequadas para o suprimento de energia elétrica nas diversas regiões do País; VIII – utilizar fontes alternativas de energia, mediante o aproveitamento econômico dos insumos disponíveis e das tecnologias aplicáveis; IX – promover a livre concorrência; X – atrair investimentos na produção de energia; XI – ampliar a competitividade do País no mercado internacional; XII – incrementar, em bases econômicas, sociais e ambientais, a participação dos biocombustíveis na matriz energética nacional. XIII – garantir o fornecimento de biocombustíveis em todo o território nacional; XIV – incentivar a geração de energia elétrica a partir da biomassa e de subprodutos da produção de biocombustíveis, em razão do seu caráter limpo, renovável e complementar à fonte hidráulica; XV – promover a competitividade do País no mercado internacional de biocombustíveis; XVI – atrair investimentos em infraestrutura para transporte e estocagem de biocombustíveis; XVII – fomentar a pesquisa e o desenvolvimento relacionados à energia renovável; XVIII – mitigar as emissões de gases causadores de efeito estufa e de poluentes nos setores de energia e de transportes, inclusive com o uso de biocombustíveis.
14 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo administrativo federal. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2001, p; 186 APUD ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. Forense: Rio de Janeiro, pp. 605-606.
15 Vide ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. Forense: Rio de Janeiro, p. 606.
16 Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Processo nº 0013063-32-2002.4.02.0000, Relator Desembargador Federal André Fontes, DJ 06/07/2007.
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