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“Contratos de parceria” e impropriedade semântica
José dos Santos Carvalho Filho
17/10/2016
A Lei nº 13.334, de 13.9.2016, instituiu, no âmbito da Presidência da República, o Programa de Parcerias de Investimentos – PPI, com o objetivo de ampliar e fortalecer o inter-relacionamento entre o Estado e o setor privado por meio de negócio jurídico cooperativo celebrado entre pessoas públicas e privadas.
Em que pese ter o legislador atrelado o programa à Chefia do Executivo federal, a própria lei comportou maior alcance dentro da federação, admitindo a integração, no referido programa, (a) de empreendimentos públicos de infraestrutura da competência da administração direta e indireta federal; (b) de idênticos empreendimentos a cargo dos Estados, Distrito Federal e Municípios; e (c) de medidas do Programa Nacional de Desestatização, alinhavado pela Lei nº 9.491/1997.
Na prática, o citado programa tem o propósito de resgatar as ações públicas, diretamente ou por delegação, no segmento da infraestrutura, propiciando a oferta de fomento aos empreendimentos que se direcionem a esse objetivo. Não se desconhece que em tal setor se situam as mais intensas reclamações da população e o natural inconformismo com a ausência ou lentidão do Poder Público para alcançar suas finalidades.
Noutro giro, pretende-se fomentar as ações e estratégias delineadas na Lei nº 9.491/1997, que instituiu o Programa Nacional de Desestatização, com o objetivo de afastar o Estado de determinadas atividades econômicas suscetíveis de melhor execução pela iniciativa privada, reservando-se-lhe, contudo, a prestação dos serviços públicos essenciais e, normalmente, indelegáveis.
Sobre a desestatização, já tivemos a oportunidade de afirmar que “o Estado, depois de abraçar, por vários anos, a execução de muitas atividades empresariais e serviços públicos, com os quais sempre teve gastos infindáveis e pouca eficiência quanto aos resultados, resolveu imprimir nova estratégia governamental: seu afastamento e a transferência das atividades e serviços para sociedades e grupos empresariais”. (1)
Ocorre que o legislador previu que o programa deverá ser executado “por meio da celebração de contratos de parceria” (art. 1º), completando o sentido no § 2º do mesmo artigo, com o seguinte teor:
“§ 2º Para os fins desta Lei, consideram-se contratos de parceria a concessão comum, a concessão patrocinada, a concessão administrativa, a concessão regida por legislação setorial, a permissão de serviço público, o arrendamento de bem público, a concessão de direito real e os outros negócios público-privados que, em função de seu caráter estratégico e de sua complexidade, especificidade, volume de investimentos, longo prazo, riscos ou incertezas envolvidos, adotem estrutura jurídica semelhante.”
Não é difícil observar que o legislador cometeu uma grande impropriedade técnica ao denominar os ajustes de “contratos de parceria”. E, nesse aspecto, confundiu o fato jurídico “parceria” com os instrumentos jurídicos através dos quais ela se formaliza.
Com efeito, a parceria em si não traduz espécie de contrato, mas, ao contrário, reflete uma conjugação de esforços entre os parceiros, na busca de objetivos comuns fundados em interesses recíprocos. Trata-se, portanto, de um fato jurídico e, como tal, passível de produzir efeitos no mundo jurídico. Essa é que é a verdadeira ideia da parceria.
Discorrendo sobre a terminologia das parcerias público-privadas, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO deixou expresso que o termo parceria indica um fato genérico, no qual se incluem várias ferramentas específicas. Diz a autora que “o vocábulo parceria continuará a ser utilizado em sentido amplo, para designar as várias modalidades tratadas neste livro”. (2)
Idêntica ideia é apontada por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO: “Parceria também é uma expressão genérica, prestante para indicar qualquer modalidade de colaboração entre entidade pública e particulares; logo, também insuficiente para permitir identificar o instituto jurídico que estaria em causa”. (3)
Fica, por conseguinte, bem claro que não há que falar em “contrato de parceria”, mas sim em “parceria”, fato jurídico cuja materialização se processa por vários tipos de contrato – estes, sim, constituindo as espécies de contratação que traduzem parceria entre os setores público e privado.
O próprio dispositivo refere-se a várias modalidades de contrato, como os de concessão comum, concessão especial (patrocinada e administrativa), concessão regida por legislação setorial, permissão de serviço público, arrendamento de bem público, concessão de direito real, fazendo, ainda, referência a outros negócios similares.
Quer dizer, para concretizar o propósito de conjugar seus esforços com a iniciativa privada através das parcerias, o Estado se socorrerá dos diversos instrumentos atualmente existentes por meio dos quais tal associação se formaliza. Em todos eles, o núcleo do negócio jurídico é a cooperação mútua e a busca de objetivos comuns e do interesse dos pactuantes. A ideia é a mesma, ou seja, a de que é melhor que duas pessoas se associem somando seus esforços, do que uma só delas tentar isoladamente o mesmo objetivo, o que decerto encerrará a interposição de maiores obstáculos.
Semelhante cenário permite inferir que a União não celebrará qualquer negócio jurídico nominado de “contrato de parceria”. Recorrerá, isto sim, a alguma das espécies contratuais que espelhem parceria entre os setores público e privado.
O legislador, portanto, não adotou a melhor técnica ao prever que o programa de parceria de investimentos se formalizaria através de “contratos de parceria”. A expressão aqui é totalmente distorcida, não auxilia em nada a inteligência da norma e ainda provoca confusão nos intérpretes, sabido que as terminologias, se não são definitivas para a interpretação, representam importante dado para perscrutar a teleologia da norma.
Mais técnico seria dizer que o programa será realizado por meio de parcerias, o que é bem diferente de dizer que será efetivado pela celebração de contratos de parceria. São pequenos detalhes, mas que usualmente provocam dúvidas nos estudiosos e operadores jurídicos – estes sempre em busca da ideia mais simples de representação da mens legis.
Cabem aqui duas últimas – e breves – observações. Primeiramente, a expressão parceria público-privada não indica tecnicamente o nome do contrato. A denominação efetiva é contrato de concessão especial, patrocinada ou administrativa (art. 2º, Lei nº 11.079/2004).
A outra observação é que, a despeito da nomenclatura, a parceria público-privada não reflete uma verdadeira parceria. Sobre esse aspecto, já averbamos em obra de nossa autoria: “A expressão ‘contrato de parceria’ é tecnicamente imprópria. Primeiramente, há inegável contradição nos termos: onde há contrato (tipicamente considerado) não há parceria em seu sentido verdadeiro”. (4) De fato, a verdadeira parceria não comporta interesses econômicos, como é o caso das concessões, mas sim um ajuste em que os pactuantes têm interesses comuns e visam à cooperação recíproca.
De qualquer modo, ainda que se considerassem parcerias as concessões de serviços públicos, em qualquer de suas modalidades, e outros contratos afins, a denominação “contrato de parceria” estaria inadequada, pois que, repetimos, parceria é o fato jurídico, o que é diverso das espécies de contrato que a formalizam.
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
(1)JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, Manual de direito administrativo, Gen/Atlas, 30ª ed., 2016, pág. 369.
(2)MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, Parcerias na administração pública, Atlas, 9ª ed., 2012, pág. 65.
(3)CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Curso de direito administrativo, Malheiros, 32ª ed., 2015, pág. 228.
(4)JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, Manual cit., pág. 454.
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