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Auxílio-moradia: Legitimidade e dissimulação
José dos Santos Carvalho Filho
02/01/2017
1. Além da endemia de antiética que abate o país em praticamente todos os setores, a sociedade ainda tem que defrontar-se com algumas situações inquinadas de flagrante favorecimento ou imoralidade.
Uma dessas situações diz respeito à vantagem pecuniária conhecida como “auxílio-moradia”, que beneficia algumas categorias de agentes públicos.
2. Em outra oportunidade, definimos as vantagens pecuniárias como sendo “as parcelas pecuniárias acrescidas ao vencimento-base em decorrência de uma situação fática previamente estabelecida na norma jurídica pertinente”. (1)
Com efeito, é a lei que vai delinear o suporte fático do qual emana a vantagem pecuniária, de modo que o administrador, no caso, atua vinculadamente, ou seja, somente pode pagar a vantagem se presente estiver o respectivo fato gerador.
3. A propósito, e de antemão, não é dispensável relembrar que as vantagens pecuniárias classificam-se em remuneratórias e indenizatórias, conforme a natureza de que se revestem.
As vantagens remuneratórias ostentam efetivo caráter de remuneração e, por isso, complementam o vencimento-base do servidor. Por outro lado, as vantagens indenizatórias não têm a marca de remuneração, mas, ao contrário, representam um adiantamento ou um reembolso conferido ao servidor em virtude de alguma despesa que tenha efetuado por força de sua função. (2)
4. A Lei nº 8.112/1990, o Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União, admite três tipos de parcelas que podem ser acrescidas aos vencimentos: a) indenizações; b) gratificações; e c) adicionais (art. 49, I a III).
Numa interpretação lógica, é possível depreender que o legislador federal também adotou aquela classificação, mas incluiu, de um lado, parcelas indenizatórias, a que se referiu como “indenizações”, e, de outro, as remuneratórias, estas constituídas pelas vantagens categorizadas como gratificações e adicionais.
5. Embora as vantagens remuneratórias e as indenizatórias tenham finalidades diversas, a grande verdade é que nem sempre é fácil distinguir a linha demarcatória entre as duas categorias.
O problema, contudo, não é somente a da dificuldade na distinção. Em várias situações, interpretações – algumas delas distorcidas – têm incluído vantagem de uma em outra categoria, fato que rende ensejo a uma aplicação transversa da lei.
6. Um desses casos é a vantagem denominada de “auxílio-moradia”. A inspiração da vantagem foi a de proporcionar ao servidor, em situações especiais, a restituição, total ou parcial, de sua despesa com moradia. Significa, pois, que tal vantagem nasceu com a natureza indenizatória, pois que visa a indenizar o servidor pelo dispêndio com sua moradia.
7. A Lei nº 8.112/1990, já citada, é bem clara quanto ao objetivo do legislador relativamente a esse benefício. Assim dispõe a lei:
“Art. 6º-A. O auxílio-moradia consiste no ressarcimento das despesas comprovadamente realizadas pelo servidor com aluguel de moradia ou com meio de hospedagem administrado por empresa hoteleira, no prazo de 1 (um) mês após a comprovação da despesa pelo servidor.”
8. Ao ler o texto, não se precisa fazer nenhum grande esforço interpretativo para concluir que a vantagem pecuniária tem notória natureza indenizatória. Para fazer jus a ela, o servidor há de fazer a despesa e comprová-la junto ao órgão a que pertence para fins de reembolso.
9. Além disso, a disciplina da vantagem encontra limites restritos para a aquisição do direito de percebê-la. De fato, a lei impõe uma série de requisitos, como, por exemplo, a inexistência de imóvel funcional, ou o uso deste por cônjuge ou companheiro, e, principalmente, não ser o servidor proprietário ou promitente comprador de imóvel no local onde exerça suas funções. (3)
Outros requisitos são ainda exigidos, mas citamos apenas esses porque revelam nitidamente que o legislador não pretendeu conferir amplitude à vantagem, incongruente com sua natureza e fins.
10. A despeito do modelo inspirador do benefício, algumas categorias – usualmente as que constituem a elite do funcionalismo – passaram a admitir que o auxílio-moradia seja pago de forma genérica, vale dizer, convertendo sua natureza em vantagem remuneratória.
Só para comprovar o equívoco e a distorção dessa linha interpretativa, o auxílio-moradia é pago até mesmo a servidores que residem em imóvel próprio, sendo, portanto, isentos das despesas de locação imobiliária.
11. O fato, aliás, não é órfão na conturbada literatura sobre a relação funcional estatutária. Já anotamos que, se determinada vantagem, seja qual for o seu rótulo, é destinada indiscriminadamente a todos os servidores, ela representa, na verdade, uma forma dissimulada de remuneração, ainda que rotulada para indicar indenização. (4)
Um desses exemplos é o de uma lei do Estado de Pernambuco, que instituiu vantagem sob o nome de “gratificação de incentivo”, percebida geral e indiscriminadamente por todos os servidores. O STF, corretamente, considerou que, apesar do rótulo, cuidava-se de uma dissimulação, para o fim de aparentar ser uma vantagem pecuniária, quando, na verdade, representava verdadeira parcela remuneratória disfarçada. (5)
O mesmo ocorreu no Estado do Rio de Janeiro a propósito da conhecida “gratificação de encargos especiais” – denominação, aliás, sem qualquer significado preciso e apta a gerar efeitos ilusórios. Como foi estendida a todos os servidores com caráter de generalidade, o Tribunal de Justiça afastou a natureza de gratificação para considerá-la mera parcela remuneratória, também paga sob disfarce. (6)
12. Como se pode verificar, o Estado é useiro e vezeiro nesse tipo de dissimulação, e a razão não é difícil de explicar. Como o processo de aumento de vencimentos demanda maior complexidade, o ente público emprega gratificações e adicionais, mais fáceis de digerir, como meio de elevar vencimentos por linha oblíqua – propósito flagrantemente inconstitucional.
13. No caso do auxílio-moradia, no entanto, diferentemente do que ocorreu com outras vantagens pecuniárias, a dissimulação favoreceu apenas as categorias funcionais que constituem a elite dos agentes públicos, quais sejam, os membros do Legislativo, os magistrados e os membros do Ministério Público.
Pode, aqui ou ali, ter favorecido uma ou outra categoria, mas basicamente aquelas foram as maiores beneficiadas. O certo é que, como se pode constatar nos portais de transparência das respectivas instituições, os referidos agentes, em sua maioria, recebem a parcela de auxílio-moradia, independentemente de terem qualquer gasto com moradia, o que, convenhamos, raia ao absurdo.
14. Isso não ocorre com os servidores de menor patamar na Administração. Ao contrário, para os “mortais” incidirá a regra do art. 60-A da Lei nº 8.112/1990, que deixa bem clara a natureza indenizatória da vantagem, além de somente ser paga sob determinadas condições.
15. Em tal cenário, quem pretende interpretar os institutos funcionais com isenção e imparcialidade, certamente vai deduzir que o trato com o auxílio-moradia encerra duas vertentes: uma delas, de legitimidade, quando marca sua natureza indenizatória, e outra, de dissimulação, quando, a pretexto de sua rubrica, traduz evidente parcela remuneratória, incondizente com sua verdadeira natureza.
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1) JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, Manual de direito administrativo, Gen/Atlas, 30ª ed., 2016, p. 786.
2) MAURO ROBERTO GOMES DE MATTOS, Lei nº 8.112/1990 Interpretada e Comentada, América Jurídica, 2005, p. 259.
(3) Art. 60-B.
(4) JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, Manual cit., p. 788.
(5) STF, AI 437.175, Min. Sepúlveda Pertence, j. 12.8.2003.
(6) TJ-RJ, MS 870/1998, Des. Sérgio Cavalieri, publ. DO 23.3.1999.
Veja também:
- Vaquejada e conflito de princípios
- Litígios da OAB: Competência da Justiça Federal
- “Teste de Integridade”: Afronta à Dignidade da Pessoa Humana
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