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Administração do medo, apagão das canetas e novos contornos do controle com as alterações da LINDB
Irene Patrícia Nohara
01/03/2023
Neste trecho retirado da 12ª edição do livro Direito Administrativo, Irene Nohara discute a Administração do medo, o apagão das canetas e os novos contornos do controle com as alterações da LINDB. Leia!
Administração do medo, apagão das canetas e novos contornos do controle com as alterações da LINDB
Administração Pública do medo1 é, como também tivemos2 oportunidade de expor, a situação em que, diante da proliferação dos controles (social, administrativo, pelo Ministério Público, legislativo, com auxílio do Tribunal de Contas e judicial), que dão ensejo a diversas oportunidades de responsabilização, por processo disciplinar, por improbidade, por ação de responsabilização, por ações penais etc., como regra geral, sem que haja bis in idem3, o gestor começa a ficar com receio de manejar com segurança as oportunidades de agir, em virtude da possibilidade de se lhe imputar uma responsabilidade e de ser condenado, mesmo quando agiu da melhor forma ante os obstáculos e ao contexto de realidade enfrentado.
Por conta desta realidade, ocorre o indesejável “apagão das canetas”. Com esta expressão se designa a paralisação de decisões, diante do temor da responsabilização, perante a Administração Pública do medo, pois, tendo em vista a imprevisibilidade do conteúdo de decisões oriundas dos mais variados órgãos de controle, os bons gestores acabam ficando com receio de decidir e futuramente serem responsabilizados por uma decisão justa, mas que iria de encontro às orientações cambiantes de diversos dos órgãos de controle, os quais nem sempre atuam de forma harmônica.
A Lei de Improbidade, com alteração feita pela Lei nº 14.230/2021, estabelece no § 8º do art. 1º que não configura improbidade a ação ou omissão decorrente de divergência interpretativa da lei, baseada em jurisprudência, ainda que não pacificada, mesmo que não venha a ser prevalecente nas decisões dos órgãos de controle ou dos tribunais do Poder Judiciário. Trata-se de um passo importante4 para combater a responsabilização irrazoável decorrente de divergência interpretativa, ainda mais diante de orientações cambiantes dos órgãos de controle.
Assim, com a proliferação de controles, os gestores ficam com receio de agir e, na prática, muitos evitam que haja uma decisão que possa lhes ocasionar futuros dissabores. Contudo, para evitar tal diagnóstico, a Lei nº 13.655/2018 foi criada para tentar minimizar os controles excessivos que recaem sobre os gestores públicos. Para tanto, houve a enunciação do primado da realidade e a valorização do chamado consequencialismo.
Primado da realidade indica a necessidade de se interpretar o texto normativo e as exigências da gestão pública também da perspectiva das dificuldades reais do gestor e das exigências das políticas públicas a seu cargo, sendo averiguadas, quando da regularização da situação, as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.
O consequencialismo, por sua vez, procura evitar decisões injustas e desequilibradas, estimulando que haja uma ponderação das consequências práticas da decisão, exigindo-se que a motivação de uma decisão de invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa indique, de modo expresso, as suas consequências jurídicas e administrativas.
Nesta perspectiva, determina o art. 21 da LINDB (Lei de Introdução às Normas no Direito Brasileiro), inserido pela Lei nº 13.655/2018, que: “a decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas”. O parágrafo único do art. 21 acrescenta que a decisão que se refere o caput, “deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos”.
Para auxiliar na interpretação de sentido de tal dispositivo, há o enunciado 7, proveniente do trabalho do IBDA sobre a LINDB e os impactos no Direito Administrativo (Tiradentes/2019):
Na expressão “regularização” constante do art. 21 da LINDB estão incluídos os deveres de convalidar, converter ou modular efeitos de atos administrativos eivados de vícios sempre que a invalidação puder causar maiores prejuízos ao interesse público do que a manutenção dos efeitos dos atos (saneamento). As medidas de convalidação, conversão, modulação de efeitos e saneamento são prioritárias à invalidação.
Assim, deve haver uma propensão ao saneamento dos atos, dentro da ênfase de uma postura mais orientadora e preventiva do controle do que simplesmente repressiva. Esta postura está refletida no art. 13, § 1º, do Decreto 9.830/2019 (que regulamenta a LINDB), segundo o qual: “a atuação dos órgãos de controle privilegiará ações de prevenção”. Trata-se também de mitigação da atitude denominada por “engenheiro de obra pronta”.
Engenheiro de obra pronta é expressão utilizada para criticar a situação em que o controle a posteriori foca-se exclusivamente em apontar falhas e erros, sem procurar compreender as dificuldades práticas e obstáculos enfrentados pelo gestor no processo, sobretudo quando não há orientações claras e compreensão dos gargalos existentes em cada situação concreta e, em vez da prevenção, o controle acaba se focando exclusivamente na repressão e no sancionamento, especialmente se este é excessivo e injusto.
Inclusive, do ponto de vista da repreensão, a LINDB prevê, conforme já exposto, que o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro. Houve a mitigação da responsabilidade no caso de culpa leve, sobretudo no que diz respeito à regressiva em reparação de dano civil, para evitar o fenômeno do “apagão das canetas”, diminuindo o medo de responsabilização na gestão.
Note-se, após a Lei nº 14.230/2021, a improbidade é doravante apenas dolosa, o que afasta então o conteúdo do art. 28 da LINDB, que exigia dolo ou erro grosseiro, sendo este considerado culpa grave, pois agora se exige o dolo.
Apesar de a LINDB não resolver, na prática, muitos dos problemas interpretativos existentes, pois ela padece5, em alguns casos, dos mesmos problemas de indeterminação e abstração que geram a abertura existente, ela tenta estimular o controle a editar atos normativos orientadores para garantia de uma decisão futura mais previsível, enfatizando inclusive a importância da justiça negocial quando houver determinações estatais que provoquem efeitos demasiadamente onerosos ou injustos.
Por conseguinte, a partir da edição de regras interpretativas orientadoras ao direito público na LINDB, houve a intensificação do debate sobre: os limites do controle, a justa ponderação consequencial, os excessos nas punições dos agentes públicos e também a necessidade de uma maior previsibilidade na atuação, cada vez mais preventiva e orientadora, dos controles internos e externos, isto é, nas esferas administrativa, controladora e judicial, de acordo com o vocabulário da Lei nº 13.655/2018.
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NOTAS
1 Referencial teórico de relevância sobre o assunto é Rodrigo Valgas dos Santos, cuja tese sobre as disfunções do controle foi publicada em 2020, sob o título: Direito administrativo do medo, em que expõe com desenvoltura e profundidade o tema. Cf. SANTOS, Rodrigo Valgas. Direito administrativo do medo. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
2 Em obra elaborada em coautoria com Fabrício Motta: MOTTA, Fabrício; NOHARA, Irene Patrícia. LINDB no Direito Público: Lei 13.655/2018. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 24.
3 Agora com a alteração da Lei nº 14.230/2021 à Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), há mais limites à incomunicabilidade, conforme os §§ 3º, 4º e 5º, do art. 21 da lei, que enfatizam que: (a) as sentenças civis e penais produzirão efeitos em relação à ação de improbidade quando concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa de autoria; (b) a absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação de improbidade, em todos os fundamentos de absolvição previstos; e (c) sanções eventualmente aplicadas em outras esferas deverão ser compensadas com as sanções aplicadas nos termos da lei de improbidade.
4 Apesar do questionamento da ADI 7236, que gerou suspensão em liminar, sujeita à confirmação do Plenário do STF. Cf. https://direitoadm.com.br/alexandre-de-moraes-suspende-improbidade/
5 Uma análise mais crítica pode ser encontrada na obra: NOHARA, Irene Patrícia. LINDB: hermenêutica e novos parâmetros ao direito público. Curitiba: Juruá, 2018.