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Desafios do federalismo fiscal brasileiro
Marcus Abraham
27/10/2022
No início deste mês, a Constituição Federal de 1988 completou 34 anos de vigência. Um tema candente desde a sua promulgação, e que merece a nossa reflexão, é o da relação política e financeira que foi desenhada para a convivência entre os entes federativos – União, estados, Distrito Federal e municípios – na realização das suas funções. Afinal, diuturnamente vivenciam tensões decorrentes de uma estrutura heterogênea, diante de uma multiplicidade de interesses e das diferenças regionais de natureza cultural, social e econômica.
Federalismo fiscal
A expressão financeira desta coexistência é denominada de federalismo fiscal, modelo que visa garantir a plena e efetiva realização dos papéis distribuídos a cada um dos entes em suas diferentes esferas.
Porém, o nosso modelo de distribuição entre meios e fins para consecução das finalidades estatais não tem conseguido gerar o ideal de um federalismo cooperativo, através do qual deve haver uma obrigação constante e ininterrupta de entendimento entre as partes.
Nas palavras do ministro Ricardo Lewandowski, “a nova Magna Carta adotou o denominado ‘federalismo cooperativo’, em que se registra o entrelaçamento de competências e atribuições governamentais, caracterizado por uma repartição vertical e horizontal de competências, aliado à partilha de recursos financeiros”.
A Constituição assegura aos três entes fontes próprias de recursos financeiros, que advêm, essencialmente, da partilha patrimonial (de bens públicos e de recursos naturais), da competência tributária para a instituição e cobrança de tributos e das transferências financeiras intergovernamentais obrigatórias e voluntárias, a partir de um sistema de partilha e repasse de receitas.
Pontos extremamente sensíveis
Mas a estrutura de Estado Federal de um país com as dimensões do Brasil e com as diferenças socioeconômicas regionais impõe atenção e reflexão para alguns aspectos tidos para nós como extremamente sensíveis, tais como:
a) o equilíbrio entre atribuições distribuídas aos entes federativos e os recursos financeiros para a sua realização (fins e meios);
b) critérios justos e ideais de distribuição de recursos entre entes desiguais;
c) a excessiva concentração de poder fiscal nas mãos da União em prejuízo dos estados e municípios;
d) o balanceamento entre as competências tributárias e as transferências financeiras intergovernamentais;
e) o imprescindível exercício da competência tributária pelos entes federativos;
f) o jogo democrático no processo orçamentário; e
g) o imperioso respeito ao instrumento de lei complementar como veículo instituidor de normas gerais em matéria financeira.
Para que essa estrutura federativa do Estado brasileiro seja adequada para todo o país e para os seus cidadãos, deve haver um necessário equilíbrio entre as responsabilidades e funções constitucionalmente atribuídas a cada um dos entes federativos e os recursos financeiros a eles dedicados; afinal, como diz o brocardo, “quem dá os fins, dá os meios”, ou, em outra formulação, “a Constituição não dá com a mão direita para tirar com a esquerda”. Do contrário, não se atingirá o objetivo final da nação: o atendimento das necessidades do povo e a realização do bem comum. Conferir um rol de atribuições e responsabilidades aos estados e municípios – um poder-dever estatal de realizar – sem fornecer recursos suficientes para a sua efetivação é frustrar o próprio texto constitucional.
Metodologia para distribuição das competências tributárias
Ora, devemos indagar se os critérios e a metodologia hoje utilizados para a distribuição das competências tributárias e para as transferências intergovernamentais são adequados e suficientes para atender aos objetivos constitucionais, em especial àqueles insculpidos no artigo 3º da Constituição.
Quanto à primeira, lembramos que a distribuição das competências tributárias entre estados e municípios, fixada nos artigos 145 a 156 da Constituição, foi desenhada a partir de critérios históricos e políticos e com alguma racionalidade fiscal. Todavia, ao estabelecer homogeneamente as competências, em que todos os entes têm direito igualmente a instituir aqueles determinados impostos, deixa de levar em consideração as realidades próprias e as disparidades existentes entre eles, especialmente aquelas de ordem econômica e demográfica. Outrossim, pensamos que o equivocado entendimento de que o exercício da competência tributária seria meramente facultativo implica uma consequência que reputamos extremamente negativa: como é possível realizar adequadamente as políticas públicas e atender às necessidades públicas constitucionalmente asseguradas sem a totalidade dos recursos financeiros que seriam oriundos de uma competência tributária que acaba por não ser exercida a partir de uma facultatividade do ente federativo?
Por sua vez, sobre as transferências intergovernamentais, que são os repasses de recursos financeiros entre entes descentralizados de um Estado, ou entre estes e o poder central, com base em determinações constitucionais, legais ou, ainda, em decisões discricionárias do órgão ou da entidade concedente, pensamos que o modelo construído há mais de três décadas precisa ser revisitado. Além disso, ainda que sejam levados em consideração critérios como renda e população para a partilha dos recursos dos Fundos de Participação dos Estados (FPE) e Municípios (FPM), apenas estas variáveis, a nosso ver, não são suficientes para atender as peculiaridades de cada região e ente.
Outro ponto de reflexão reside em um eventual desequilíbrio de concentração do poder em favor da União, em detrimento dos estados e municípios, circunstância que pode propiciar negativas consequências, tais como: a) o enfraquecimento do processo democrático decorrente da luta entre as forças políticas regionais e a central; b) uma indesejada competição fiscal – vertical e horizontal – entre os entes federativos, conhecida como “guerra fiscal”; c) a incapacidade de o governo central exercer satisfatoriamente sua função coordenadora em todo o território, gerando práticas autônomas dos governos regionais e locais incompatíveis com o interesse nacional; d) a minimização dos processos de redução das desigualdades regionais e do estímulo ao desenvolvimento social e econômico local.
Grande exemplo de um desdobramento negativo do modelo de federalismo fiscal que ainda não encontrou um ponto ideal de equilíbrio é a guerra fiscal, “competição” que ocorre constantemente e nos quatro cantos do nosso país, e que revela um conflito na federação e um abalo no ideal cooperativo.
Enfim, em um país de grandeza continental como o Brasil, estruturado como Estado Federal – que exprime os ideais de unidade a partir da convivência da pluralidade de seus integrantes –, conciliar a descentralização fiscal com a redução das desigualdades regionais, propiciando uma virtuosa autonomia financeira e independência política dos seus entes federativos, com a busca do desenvolvimento socioeconômico homogêneo e equilibrado de todo o país, é o grande desafio que devemos superar e objetivo que se impõe atingir.
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