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Desjudicialização de conflitos

CURSO DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL

DESJUDICIALIZAÇÃO

DESJUDICIALIZAÇÃO DE CONFLITOS

LUIZ FUX

Luiz Fux

Luiz Fux

07/07/2022

No capítulo Desjudicialização de conflitos, parte do livro Curso de Direito Processual Civil,  Luiz Fux defende a importância da desjudicialização de processos enquanto estratégia para uma justiça menos morosa e mais eficaz. Acompanhe!

Desjudicialização de conflitos

Os tempos hodiernos, mais que nunca, reclamam por uma justiça acessível, que conceda ao cidadão uma resposta justa e tempestiva. No contexto atual, em que o volume quantitativo de processos é manifestamente inassimilável por juízes e tribunais, o deslocamento de competências do Poder Judiciário para órgãos extrajudiciais – o que consubstancia a chamada desjudicialização –, deixa de corresponder a uma mera possibilidade de melhoria do acesso à justiça e passa a ostentar status de estratégia imprescindível. 

Consectariamente, urge a adoção de uma concepção mais ampla de acesso à justiça, que pressupõe um “ir além”. Ir além do tradicional espaço judicial, ir além dos procedimentos judiciais e ir além da tutela dos Tribunais. É, precisamente, neste cenário de desjudicialização, que a atuação dos notários e registradores se revela como aspecto fundamental para consecução de um efetivo acesso à justiça.

De fundamental importância que vejamos, com clareza, a complementariedade entre a atividade notarial e registral e a do Judiciário, ambas voltadas à garantia de direitos. O acesso à justiça, hoje, só pode ser compreendido a partir do binômio judicialização-desjudicialização: as portas do Poder Judiciário estão sempre abertas, o que não quer dizer que seja a solução prioritária, a mais adequada ou, muito menos, a única.

É muito positivo o sentimento geral a respeito do desempenho desse papel pela atividade notarial. A partir das premissas apontadas, os cartórios surgem como uma saída natural para a solução de conflitos, longe de uma simplista estratégia de desafogamento do Judiciário, porque reúnem qualidades essenciais.

A primeira é a capilaridade: os cartórios estão em todo o território nacional, que tem, como sabemos, dimensões continentais.[44]A população de qualquer parte do país tem acesso a um cartório, que, notadamente em interiores, representa o Estado e o Poder Público, no ideário popular, ao lado das prefeituras. O notário tem “fé pública”, no mais essencial significado da expressão.

Permeados pelo espírito republicano, os cartórios brasileiros colaboram, decisivamente, através de atividade de fiscalização de práticas ilícitas, informando, por exemplo, atos suspeitos ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).[45]

O tabelião é tido, acertadamente, como autoridade, por conta, ainda, de sua capacidade resolutiva. De fato, os cartórios conseguem exercer sua atividade de solução de conflitos de maneira célere e precisa, porque imbuídos de um espírito prático e, ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, pouco burocrático.

Há uma outra característica que escancara a relevância dos serviços notariais e registradores: a credibilidade. Esse aspecto, sentido na prática e na concepção popular, já foi reiteradamente confirmado por pesquisas que apontam para um altíssimo grau de confiabilidade dos cartórios perante a população. Nesse sentido, o estudo encomendado pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR) e realizada pelo instituto Datafolha em 2015 demostrou que, mesmo em cotejo com instituições de significativa credibilidade no País, como Correios, Forças Armadas, Ministério Público e Poder Judiciário, os cartórios extrajudiciais se destacam, ocupando o primeiro lugar em termos de confiabilidade dentre todas instituições pesquisadas.[46]

Evidente, portanto, que os cartórios são um elemento crucial na equação do reconhecimento e da efetivação do crescente leque de direitos fundamentais, engrenagem decisiva para fazer fluir o sistema de Justiça.

Os Tabeliães de Notas, por exemplo, têm o condão de prevenir litígios, na medida em que exercem a função de aconselhamento e orientação na lavratura dos atos e contratos realizados em cartório. A atuação dos Registradores de Imóveis é passível de incrementar o tráfico imobiliário nacional, conferindo segurança jurídica às partes através da publicidade dos atos praticados. Os Registradores Civis das Pessoas Jurídicas, por sua vez, promovem a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado ao tornarem públicos seus atos constitutivos, ao passo que os Registradores Civis das Pessoas Naturais têm a função de lavrar os assentos referentes à situação jurídica e ao estado das pessoas físicas, o que é fundamental para a celebração de contratos.

Os Tabeliães de Protestos, por fim, oferecem um meio célere de cobrança extrajudicial e mantêm um importante e seguro banco de dados que embasa as relações de crédito e débito. Outorgar-lhes maior leque de instrumentos coercitivos tem colaborado para a maior eficiência da atividade executiva, superando a exclusividade do Poder Judiciário na satisfação do exequente, cuja produtividade tem sido incomparavelmente mais baixa em processos de execução, que, em média, tardam 7 anos até serem encerrados. Também, o Conselho Nacional de Justiça vem buscando, nos últimos tempos, melhorar a experiência do usuário desses serviços, autorizando, por exemplo, o pagamento postergado de emolumentos e demais despesas (Provimento 86/2019).

A relevância da categoria no processo de otimização do Sistema de Justiça se torna mais evidente com a ampliação do leque de matérias que podem ser definitivamente solvidas em cartório.

A despeito da recente intensificação do deslocamento de competências do Poder Judiciário para órgãos extrajudiciais – fruto da percepção tanto da prescindibilidade como da insuficiência da atuação dos tribunais na tutela de determinados direitos de forma tempestiva –, o fenômeno de desjudicialização não é propriamente uma novidade. 

Em 1997, por exemplo, a Lei nº 9.492 oportunizou um importante passo nesse sentido ao dispor sobre protesto de títulos. Antes, para satisfação de créditos referentes a outros documentos de dívida – que não títulos de crédito – a única alternativa era o Poder Judiciário. Com a lei, embora a função precípua do instituto seja probatória, o protesto passou a ser utilizado como eficiente meio de cobrança extrajudicial efetiva.

Já a Lei nº 9.514/1997 contribuiu no sentido de instituir a alienação fiduciária de coisa imóvel, inovando os mecanismos de garantia no mercado imobiliário que até então eram pouco eficientes. Além de amenizar a exagerada proteção conferida ao devedor pela hipoteca – que pressupunha o ajuizamento de morosa execução judicial em casos de descumprimento da obrigação contratada –, a lei disponibilizou um meio mais célere e descomplicado para que seja permitido ao credor reaver seu crédito. As instituições financeiras praticamente abandonaram a hipoteca e passaram a preferir a alienação fiduciária nos contratos celebrados.

Merece ainda especial destaque a Lei nº 11.441/2007, que, regulamentada em detalhes pela Resolução nº 35/2007 do Conselho Nacional de Justiça, ofertou aos interessados a possibilidade de realizar inventário, partilha, separação e divórcio extrajudicialmente perante os tabeliães de notas – observados os pressupostos necessários.

Em relação ao inventário, a via extrajudicial mostra-se como uma opção ao jurisdicionado quando não houver incapazes entre os herdeiros ou quando o autor de herança não houver deixado testamento. Ressalte-se que os custos do inventário extrajudicial são certamente bem inferiores aos do correlato procedimento judicial, principalmente em razão dos honorários advocatícios devidos no procedimento administrativo serem calculados sobre duas únicas etapas: na elaboração dos termos da partilha (normalmente feita pelo tabelião) e na lavratura do ato notarial. No processo judicial, por outro lado, esses honorários normalmente são calculados com base no monte a ser partilhado.

Quanto à separação e ao divórcio, também poderão ser ajustados mediante escritura pública lavrada nas Serventias Notariais, desde que haja consenso entre as partes e que não se envolvam interesses indisponíveis ou relativos a incapazes. O procedimento, que, no Judiciário pode levar meses, pode ser realizado no mesmo dia no cartório.[47]

Demais disso, a Lei nº 10.931/2004 possibilitou a retificação administrativa de metragens e outras incorreções no registro de imóveis, enquanto a Lei nº 12.100/2009 oportunizou a retificação extrajudicial de assento de registro civil. Antes dos referidos diplomas, o rigor formal e a morosidade para tais retificações eram tão demasiados que, diante da imensa burocracia, o indivíduo que desejasse corrigir algum erro em seu assento civil ou no registro de imóveis optava por simplesmente manter seu registro inalterado, ainda que o conteúdo permanecesse em desacordo com a realidade fática.[48]

Nesse sentido, percebe-se importante e constante caminhar do legislador rumo à crescente desjudicialização procedimental.

No CPC de 2015, a propósito, foram inseridos diversos dispositivos que apontam no sentido da desjudicialização, criando, por exemplo, o importante procedimento da usucapião extrajudicial, na Lei de Registros Públicos. A experiência mostrou que esse reconhecimento de aquisição originária da propriedade pela via judicial é extremamente moroso, em razão do assoberbamento de processos, que implica lentidão dos atos de comunicação, como intimações e expedição de editais. No tabelionato, em menos de um mês, a propriedade é reconhecida e são superadas décadas de ocupação informal, garantindo, com o direito à moradia, dignidade ao possuidor.[49]

Também a jurisprudência tem dado valiosa contribuição no fortalecimento da solução de conflitos pela via extrajudicial, ultrapassando dicções legais à primeira vista restritivas. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, admitiu a abertura de inventário em cartório, quando houver testamento, desde que os herdeiros sejam capazes e estejam de acordo,[50]interpretando ampliativamente o CPC.

O mote, portanto, deve ser o seguinte: em sendo possível a solução cartorária, sem comprometimento de garantias e direitos, sobretudo de sujeitos vulneráveis, há que ser estimulada. Enxerga-se, mesmo diante do leque de serviços extrajudiciais que tem sido progressivamente aberto, ampla margem para avanços. Uma frente relevante é o alargamento da contribuição probatória: os cartórios reúnem os atributos necessários para colaborar com o Judiciário na produção de provas, como estimulado pelo CPC, ao positivar a ata notarial como meio típico de prova.

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Desjudicialização de conflitos


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[44]De acordo com a publicação Cartório em Números (2020, p. 6-7), eram 13.440 serventias, distribuídas pelos 5.570 municípios, que obrigatoriamente devem ter uma unidade registral, nos termos da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/1973), garantindo ampla empregabilidade (são 125.786 empregados, dos quais 80.383 diretos e 45.403 indiretos).

[45]Segundo a mesma publicação, apenas em 2020, foram 784.067 comunicações.

[46]Associação dos Notários e registradores do Brasil. Confiança dos brasileiros nos cartórios é destaque em pesquisa do Datafolha. 2016. Disponível em: http://www.anoreg.org.br/index.php?option=com_content&view=&Itemid=180. article&id=26641:confianca-dos-brasileiros-nos-cartorios-e-destaque-em-pesquisa-do-datafolha&catid=19

[47]Aliás, vale registrar que, após três anos da entrada em vigor da Lei nº 11.441/2007, uma pesquisa intitulada “Estatísticas do Registro Civil”, produzida anualmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicou um crescimento de 24,9% nos atos de separações e 33,9% nos atos de divórcios consensuais realizados em 2008 nos Tabelionatos de Notas de todo o país, em comparação com os números de 2007, apontando também que, naquele ano, 14,5% das dissoluções de casamentos no Brasil ocorreram em cartórios extrajudiciais.

[48]Colégio Notarial do Brasil. Separações e divórcios em cartórios chegam a 14,5% das dissoluções de casamentos no Brasil. 2010. Disponível em: http://www.cnbsp.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=MjMyMw==&filtro=&Data=.

[49]Apenas no Estado de São Paulo, 3.500 processos de usucapião foram iniciados entre os anos de 2019 e 2020 (Cartório em Números, 2020, p. 106).

[50]REsp 1808767/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 15.10.2019.

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