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A fragilidade de uma federação: como se reconhece
José dos Santos Carvalho Filho
13/08/2021
Na feliz síntese de DALMO DE ABREU DALLARI, os Estados “são federais quando conjugam vários centros de poder político autônomo”. (1) A forma de federação é a adotada no Brasil desde a República e está mencionada no art. 1º – hoje com a expressão “República Federativa do Brasil”.
O federalismo traduz um regime de extrema habilidade política, e não à toa foi instituído pelos Estados Unidos em sua Constituição de 1787, após notáveis estudos de Madison, Jay e Hamilton. O ponto prevalente da federação descansa no regime de distribuição de competências legislativas e administrativas, entre as unidades que a compõem, como registrou ALEXANDRE DE MORAES. (2)
Muito embora as federações se componham, em regra, de dois níveis de centros políticos – a União e as entidades federadas (Estados, Províncias etc) -, a nossa especificamente se compõe de três, incluindo-se no regime os Municípios. PINTO FERREIRA, a propósito, anotou que, por isso, se fala de um “federalismo trivalente, em três graus”. (3) O citado art. 1º da CF, ao aludir à “união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”, confirma a nossa federação tripartite.
No aspecto etimológico, federação vem do latim “foedus”, cujo sentido é o de aliança, pacto, associação. A base do regime é a Constituição, que define como será efetivada a descentralização do poder político entre as unidades componentes. Cada unidade tem autonomia, mas a soberania é apenas do ente federal. Essas as linhas da federação.
Entretanto, uma federação pode existir apenas pela denominação. É o que ocorre, por exemplo, quando o poder central absorve de tal modo o poder das unidades federadas que lhes retira a prerrogativa da autonomia. O estado, na prática, passa a ter regime unitário. De outro lado, a federação pode ter configuração adequada, mas se mostrar enfraquecida pela inobservância de seus elementos de sustentação.
Os estudos de ciência política registram argumentos favoráveis e desfavoráveis ao federalismo. Entre os primeiros está a maior garantia quanto à observância da democracia, pois que a difusão de entes federativos permite maior aproximação entre governantes e governados.
Os que se opõem ao regime objetam com o fato de que algumas decisões sensíveis e que se irradiam sobre toda a nação reclamam um governo mais forte e centralizado. Além disso, o regime enseja toda sorte de conflitos entre as unidades, habitualmente solucionados pelo sistema de controle de constitucionalidade.
Independentemente dos argumentos a favor e contra o regime federativo, é imperioso, em primeiro lugar, que alguns de seus pilares devem ser observados para que se possa dizer que há uma federação e, além disso, uma federação sólida. O certo é que alguns desses pilares exigem que a sociedade tenha maior grau de compreensão e discernimento, consagrando-se o efetivo delineamento da cidadania – não aquela individualista e egoística, mas a que é forjada no respeito aos direitos coletivos.
Entre outros fatores, é possível afirmar a indispensabilidade de três deles para sugerir que ali não estará uma federação fragilizada: 1º) a planificação do regime; 2º) a cooperação interfederativa; 3º) a noção de organização das funções constitucionais.
A planificação consiste na elaboração de um projeto dotado de metas a serem alcançadas por todos os entes federativos, destinando-se ao “aproveitamento mais adequado e eficiente dos recursos sociais, econômicos e financeiros disponíveis”. (4) Sem a planificação, há uma grande dispersão de recursos, sendo estes necessários à criação de pesadas estruturas burocráticas das entidades.
Em virtude da integração múltipla de unidades, a planificação será praticamente impossível de ser concretizada quando os governos central e locais não forem unívocos nem estiverem imbuídos no propósito único de atender ao bem estar da coletividade. A consequência acaba sendo a formação de visível desigualdade, decorrente do “cada um por si”, sem que tenha havido uma visão global sobre o futuro.
A cooperação interfederativa representa a colaboração mútua entre as unidades do sistema, colocando-se o interesse geral acima de pleitos e ambições individuais ou partidárias. No ensinamento de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “o ideal de colaboração entre os entes federativos é da índole do federalismo cooperativo”. (5)
O federalismo cooperativo implica atuações paralelas das unidades do regime, e não atuações adversas, frequentemente neutralizadora de ações positivas. Por isso mesmo, há até entendimento de que “as estratégias de integração e cooperação entre os entes federativos devem ser complementadas pela reciprocidade e eventual compensação em caso de violação do pacto federativo”, como sugere MARCO AURÉLIO MARRAFON. (6) A falta de integração, assim, refletiria ilícito constitucional.
A organização, por sua vez, retrata os métodos empregados por um sistema para alcançar os resultados propostos. Para tanto, impõe-se a formação de duas ou mais pessoas ou órgãos, cujas funções devem ser exercidas de modo controlado e coordenado, não se podendo perder de vista que a missão fundamental reside em atingir metas comuns com maior eficácia.
Numa federação, a organização revela-se necessária para ordenar as diversas competências das pessoas da federação. Sendo calcadas em paradigmas diversos, as competências reclamam que os entes titulares se sentem à mesa para ajustar e adequar as funções de cada um deles a fim de ser obtida a desejável eficiência na execução de seus misteres.
Em tempos de normalidade, é possível disfarçar, nesses aspectos, a fragilidade de uma federação. Em tempos de crise, contudo, não há como dissimular, e a ineficácia do regime sobressai visivelmente.
A pandemia da Covid-19 exemplifica esse fato, no que toca à nossa federação. Depois de constatada a alta contaminação, o número brutal de contaminações e internações hospitalares e a devastadora quantidade de mortos, o que se viu, desde o início, foi um desastre e um total descompasso entre os governos federal, estadual e municipal.
A planificação ficou longe de aparecer. Os entes federativos não se associaram, como era de sua obrigação, para o enfrentamento da doença e para a criação das medidas restritivas uniformes. O mesmo ocorreu com a cooperação interfederativa: as unidades preferiram agir politicamente e, desse modo, abandonaram o dever de colaboração mútua. A organização, que já era precária anteriormente, ficou ainda mais descarada, com cada entidade fazendo o que lhe deu na veneta.
Ou seja: um caos, à vista de toda a população, com mais de 500.000 mortos. Uma confusão geral e uma terrível insegurança.
Em resumo, há pouco um periódico estampou, em um de seus artigos editoriais: “Desorganização e disputa entre governos prejudicam vacinação”. (7) Consignou-se que “a disputa política para ver quem vacina mais rápido suas populações, aliada à falta de coordenação entre Ministério da Saúde, estados e municípios, está fazendo mal ao Programa Nacional de Imunizações (PNI)”, o que causou várias interrupções. Conclui-se afirmando que tal confusão demonstra que “o país continua padecendo da falta de coordenação e de uma estratégia consistente”.
Ou seja: fracasso na planificação, na cooperação interfederativa e na organização das funções. Fiel indicação da fragilidade da nossa federação quanto aos pilares básicos sobre os quais deve repousar. Nem é preciso dizer quem sofre os efeitos dessa deficiência.
Não obstante, há sempre aqueles falsos otimistas que têm o cinismo de afirmar o contrário, apesar de toda essa evidência. Chamo aqui a ironia de MILLÔR FERNANDES: “Um otimista é uma pessoa que não tem certezasobre o futuro deste país”. (8)
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NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
(1)DALMO DE ABREU DALLARI, Elementos de Teoria Geral do Estado, Saraiva, 30ª ed., 2011, pág. 251.
(2)ALEXANDRE DE MORAES, in Constituição Federal Comentada, obra colet., Gen/Forense, 2018, pág. 10.
(3)PINTO FERREIRA, Comentários à Constituição Brasileira, Saraiva, 1º vol., 1989, pág. 30.
(4)DALMO DE ABREU DALLARI, ob. cit., pág. 257.
(5)MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Saraiva, vol. 1990, pág. 188.
(6)MARCO AURÉLIO MARRAFON, “Federalismo cooperativo exige reciprocidade entre entes federativos”, site Consultor Jurídico (CONJUR), publ. em 9.7.2018 (acesso em 6.8.2021).
(7)O Globo, de 27.7.2021, pág. 2.
(8)MILLÔR FERNANDES, A Bíblia do Caos, L & PM Pocket, 2011, pág. 411.