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Os equívocos técnico, dogmático, sistemático e lógico da Súmula Vinculante nº 24 do STF
Douglas Fischer
22/01/2021
1. Introdução
O presente texto tem por base inúmeros outros sobre o mesmo tema (inclusive em nossos Comentários ao CPP e sua Jurisprudência, 2020, item 395.3.4.1. – Crimes tributários de natureza material e o problema do exaurimento da esfera administrativa, p. 1.013 e seguintes), mais especialmente um capítulo específico dedicado em obra de nossa autoria sobre súmulas vinculantes1, em que procuramos demonstrar – sempre com a dialética e respeito em face de pensamentos em sentido contrário – o manifesto equívoco técnico e dogmático da Súmula Vinculante n. 24 do STF, que dispõe que“não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.
No texto em voga, agora a ser publicado em nosso site, serão reproduzidos muitos dos argumentos para demonstrar que o que se afirma e mais, que o próprio STF sequer entendeu a extensão do que fixou na referida súmula (incompleta, aliás, para quem defende sua correção). Portanto, há muitas identificações e remissões a outros textos já apresentados para a comunidade jurídica.
Os equívocos decorrentes da “repetição irrefletida” dessa súmula vinculante diariamente, e, com todo respeito possível, muitos não estão se dando conta dos problemas que são criados (de todas as ordens, em prejuízo de todos os envolvidos, inclusive autores de fatos criminosos, como monstraremos no decorrer da explanação).
Esse comando foi aprovado na sessão do dia 2 de dezembro de 2009 (vencidos os Ministros Joaquim Barbosa, Ellen Gracie e Marco Aurélio). O precedente que originou a discussão e edição do comando sumulado teve origem histórica no julgamento do Habeas Corpus n. 81.611-SP, constando na primeira parte da ementa “I. Crime material contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º): lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo. Embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8.137/90 – que é material ou de resultado –, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo. […]”.
Anota-se desde já a inobservância, pelo STF, da advertência de ser “[…] preciso que exista, no momento da edição da súmula, controvérsia a respeito da validade, interpretação ou eficácia de norma constitucional, não podendo ser editada súmula para dispor acerca de matéria já pacificada[..]”2. A matéria de fundo era eminentemente legal, a interpretação de quando se consumaria o crime em tela. Nem se diga, como se pode extrair de alguns excertos dos debates, que a finalidade seria a garantia da segurança jurídica, de matriz constitucional. O desvio de rota é-nos evidente, pois o que é da essência – ao menos na nossa compreensão – é que o conteúdo da interpretação seja em relação a norma constitucional. Se o caminho for esse, então todo qualquer tema poderá ser objeto de súmula, pois a essência de um ordenamento é a presença da segurança jurídica.
Fácil ver de plano ainda que não existia a controvérsia assinalada, pois, correta ou não (adiante se verá), havia entendimento uníssono do STF a respeito da matéria, no sentido de que o crime se consumaria com o exaurimento da esfera administrativa.
Aliás, parece que antevendo os graves problemas que estavam sendo criados pela edição da súmula, com absoluta correção pontuou à época o Ministro Joaquim Barbosa que discordava da proposta porque, “em princípio, entendo que a matéria penal não é vocacionada à sumulação em caráter vinculante. Com o passar do tempo, e em razão da multifacetariedade intrínseca do fenômeno criminal, haverá, sem dúvida, uma tendência inevitável à obsolescência da súmula e à consequente necessidade, para esta Corte, de revogá-la ou de proceder às sucessivas clarificações”.
Não entraremos no debate aqui da ausência dos requisitos fundamentais para a aprovação da referida súmula, remetendo, a quem interessar, aos capítulos 2.4.1 e 2.4.2 da referida obra 3. Traremos um encadeamento de fundamentos a demonstrar a impossibilidade dogmática e técnica de manutenção do comando sumulado e da jurisprudência que amparou o original precedente do HC n. 81.611-SP.
A Súmula Vinculante n. 24 contraria frontalmente o disposto no art. 4º do CP, que adotou a denominada Teoria da Atividade, a qual considera “praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”. O crime deveria se consumar com a ação (no caso, necessariamente comissiva) de supressão ou redução (caput do art. 1º) de tributo mediante alguma conduta, fraudulenta ou não, prevista nos incisos do art. 1º da Lei n. 8.137/1990.
No principal precedente, o voto do e. Relator concluiu que o exaurimento seria uma condição objetiva de punibilidade, chegando inclusive a comparar a situação ao delito falimentar.
2. Primeiro fundamento. Violação da Teoria da Atividade (art. 4º, CP).
Contudo, jamais se poderia cogitar de reconhecer aí uma condição objetiva de punibilidade, porque essa pressupõe a existência prévia do crime, mas sua punição condicionada a fator ulterior.
Nelson Hungria, lembrado pelo Ministro Joaquim Barbosa no precedente, destacava que “o Direito Penal cogita de condições objetivas de punibilidade quando a punição da conduta penalmente ilícita fica condicionada a certas ‘circunstâncias extrínsecas ao crime, isto é, diversas da tipicidade, da injuridicidade e da culpabilidade’”. Hungria enfatiza, ainda, que são chamadas de condições objetivas “porque são alheias à culpabilidade do agente. Nada têm a ver com o crime em si mesmo, pois estão fora dele (não há confundir as condições em apreço com os chamados ‘pressupostos’ do crime, isto é, fatos ou situações preexistentes, a que a lei subordina o reconhecimento de determinado crime ou grupo de crimes”4.
De fato, dos ensinamentos de Bettiol5 colhe-se que há “casos determinados nos quais o legislador, embora considerando estruturalmente perfeito um crime, faz depender a punibilidade do fato delituoso da verificação de um ulterior evento, que Código e doutrina chamam de condições de punibilidade”.
Assim, o critério apresentado “isola a condição de punibilidade dos elementos do fato, e enquanto o fato é o complexo dos elementos materiais reconduzíveis à ação humana, a condição de punibilidade deve encontrar-se fora de qualquer repercussão que a ação humana possa ter sob o aspecto da causalidade física ou do da psicológica. Como afirmou Delitala com exatidão, a condição de punibilidade deve encontrar-se fora de qualquer relação causal com a ação humana”. Assim, encerra o doutrinador, se a condição se “encontra em relação de dependência causal com a ação[6], no sentido de que possa ser considerado como efeito embora remoto da ação, tal evento não poderá ser considerado condição de punibilidade, mas será elemento constitutivo do fato”.
Não por outro motivo que, com razão, porém desacolhido à época o fundamento, concluiu o Ministro Joaquim Barbosa que a conciliação realizada entre os conceitos de condição de punibilidade e de prescrição redundaria em situação dogmaticamente incoerente.
Se o ius puniendi nasce com o fato punível, em regra isso ocorre com a consumação do delito, pois a punibilidade normalmente não está subordinada a nenhum outro evento futuro.
Nos casos em que se faz presente a condição objetiva de punibilidade, embora consumado o delito, o fato ainda não será punível, de forma que não há como se falar em pretensão penal.
Esse pressuposto é fundamental para melhor compreender todo o embróglio criado pelo STF (voltaremos ao tema).
Em outras palavras: se houver o reconhecimento de que é com a decisão administrativa que há a definição da supressão ou redução de tributo (elementar objetiva do tipo), porque se trata de crime material (de resultado), impossível falar de hipótese que se amolde à condição objetiva de punibilidade. Uma exclui a outra.
O Ministro Cezar Peluso defendeu, em seu voto, que não se estaria diante de condição objetiva de punibilidade e muito menos de condição de procedibilidade, mas de elemento normativo do tipo (confira-se na ementa do julgado a referência expressa a tal conclusão, que é reflexo do que defendido em seu voto).
Em sendo mantida a premissa do entendimento, tecnicamente não se trata de elemento normativo do tipo, mas sim de elemento objetivo do tipo. Saber o que é tributo (art. 1º da Lei 8.137/1990) ou contribuição social previdenciária (art. 337-A do CP) suprimidos ou reduzidos não depende de qualquer valoração ou interpretação, mas de pura constatação à luz do que determina a legislação própria.
É dizer: para a existência do tributo (elemento do tipo, e não o “crédito tributário”) não há dependência do lançamento tributário a ser realizado pela autoridade competente e sua ulterior confirmação nas instâncias administrativas.
Como bem destaca Andreas Eisele, “o lançamento tributário somente tem como objeto da constatação da evasão, não afetando-a. Ou seja, operacionalmente, é similar ao inquérito policial, em que são apurados elementos que indiquem a materialidade delitiva” 7.
Na verdade, a legislação pátria adotou a denominada Teoria da Atividade, considerando-se “praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado” (art. 4º do CP) 8.
Portanto, o crime se consuma com a ação (no caso, necessariamente comissiva) de supressão ou redução (caput do art. 1º) de tributo mediante alguma conduta, fraudulenta ou não (porque nem todas as condutas-meio pressupõem a fraude9), prevista nos incisos do art. 1º da Lei 8.137/1990 ou do art. 337-A do CP.
Noutras palavras, nos moldes em que redigido o tipo legal (princípio da legalidade), a ocorrência da infração não pode ser condicionada a eventual lançamento tributário.
A lesão ao bem jurídico tutelado pelo delito material do art. 1º da Lei 8.137/1990 ou por aquele ora previsto no art. 337-A do CP dá-se com a conduta (ação) de supressão ou redução de tributo, que, insiste-se, estando ligada à obrigação tributária, existe independentemente do lançamento(ato administrativo para, em consequência, gerar o crédito tributário, que em nada se identifica com a exigência perfectibilizadora do tipo penal).
Mantida a interpretação de que o crime somente existe com o lançamento tributário, as consequências podem ser nefastas inclusive para o réu. Mesmo que praticada a ação ou a omissão em data cuja pena seja “X”, mas exaurida a esfera administrativa ulteriormente (momento da ocorrência do crime para o STF em face da Súmula Vinculante n. 24), em que a pena possa ser “X+1” (pena maior), deverá ser essa nova pena (mesmo que mais grave) a aplicável. É a incidência do postulado do tempus regit actum diante da interpretação que deu o STF a respeito de quando existe crime na situação analisada. Enfim, um desastre técnico já no “primeiro teste” dogmático.
3. Segundo fundamento: A vinculação do Poder Judiciário à decisão de cunho administrativo, contrariando-se o disposto no art. 5º, XXXV, da CF/88.
Consoante a exposição de motivos do CPP, “todas as provas são relativas: nenhuma terá, ex vis legis, valor decisivo, ou necessariamente maior prestígio que outra. Se é certo que o Juiz fica adstrito às provas constantes dos autos, não menos correto é que não ficará subordinado a nenhum critério apriorístico ao apurar, através delas, a verdade material […]”.
Com efeito, o ônus da prova no tocante à prática do crime doloso – inclusive a materialidade – incumbe sempre ao órgão ministerial. O devido processo legal assim impõe. Dessa maneira, quando a tese da defesa for plausível e respaldada no conjunto probatório, bem como forem insuficientes os elementos trazidos pelo Ministério Público, não há como autorizar a condenação do denunciado, ao qual é assegurado o benefício da dúvida (in dubio pro reo).
Porém os precedentes do Supremo Tribunal Federal que redundaram na Súmula Vinculante n. 24 são bastante enfáticos ao reconhecerem que a definição se há ou não tributo (embora na grande maioria das vezes se fale em crédito tributário, que é algo tecnicamente diverso de tributo) seria atribuição exclusiva da administração, e o Poder Judiciário ficaria vinculado àquela decisão, ou seja, definir se há ou não um elemento (objetivo) do crime é atribuição de um órgão fora do Poder Judiciário.
Tecnicamente, não pode haver uma relação de causa e efeito entre a decisão administrativa e a ação penal pelos fatos correlatos. No máximo, as provas produzidas na esfera administrativa podem servir como mais alguns elementos para a decisão por quem tem o poder de resolver a questão: o Poder Judiciário. Até porque as provas produzidas no âmbito administrativo são, muitas vezes, diversas daquelas apuradas em sede criminal.
Aqui, mais um paradoxo: enquanto a discussão administrativa barra a ação penal ou a investigação criminal, a discussão em sede judicial pode (dependendo do caso) apenas impedir o regular andamento da ação penal 10. Vale mais uma decisão administrativa que uma decisão judicial.
Não se pode considerar que as provas sobre a existência de crime tributário material sejam apenas aquelas relacionadas com o procedimento de constituição do crédito tributário.
A imposição do comando inserto na súmula que se quer revisar implica o malferimento ao disposto no art. 5º, XXXV, da CF/88.
Nem se diga, como em alguns julgados, que no sistema francês há vinculação do que decidido em sede administrativa. É que não se pode olvidar que lá, diferentemente daqui, o sistema é uno (e não dual), em que as decisões “administrativas” são tomadas no âmbito do Poder Judiciário. Aqui no Brasil a situação é absolutamente diversa, tanto que, reiteradamente, o próprio Supremo Tribunal Federal vem dizendo – para todas as demais situações – que não há vinculação das instâncias: ”Independência entre as esferas penal e administrativa, salvo quando, na instância penal, se decida pela inexistência material do fato ou pela negativa de autoria, casos em que essas conclusões repercutem na seara administrativa. […] (Terceiro AG.Reg. em Mandado de Segurança 26.988-DF, STF, Plenário, unânime, Relator Ministro Dias Toffoli, julgado em 18.12.2013, publicado no DJ em 24 fev. 2014). Ou que “a circunstância de o Tribunal de Contas aprovar contas a ele submetidas não obsta a persecução penal promovida pelo Ministério Público e a responsabilização penal dos agentes envolvidos em delitos de malversação de dinheiro público. Admitir-se o contrário, importaria em subtrair à jurisdição do Poder Judiciário o julgamento de crimes, ficando essa atribuição afeta a órgãos que apenas detêm competência político-administrativa”(Ação Penal n. 565-RO, STF, Plenário, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 8.8.2014, publicado no DJ em 23.5.2014).
De fato, não pode haver a subordinação da instância judicial ao que apurado na esfera administrativa, muito menos diante de eventual inação da autoridade própria se houver elementos suficientes para demonstrar a materialidade da supressão ou redução tributárias por outros meios que não apenas procedimento de lançamento tributário.
Não há sentido lógico e sobretudo sistêmico com os precedentes do STF o que dito na Súmula Vinculante n. 24, especialmente se visto que o Plenário do STF reafirmou que “decisão do Tribunal de Contas da União não constitui condição de procedibilidade de crimes de fraude à licitação e quadrilha. Pelo princípio da independência das instâncias, é possível que a existência do fato alegadamente delituoso e a identificação da respectiva autoria se definam na esfera penal sem vinculação com a instância de controle exercida pelos Tribunais de Contas”, destacando-se, ainda, a premissa de que “a circunstância de o Tribunal de Contas aprovar contas a ele submetidas não obsta a persecução penal promovida pelo Ministério Público e a responsabilização penal dos agentes envolvidos em delitos de malversação de dinheiro público”. De relevo, a conclusão, assentando que se admitir “o contrário importaria em subtrair à jurisdição do Poder Judiciário o julgamento de crimes, ficando essa atribuição afeta a órgãos que apenas detêm competência político-administrativa” (Ação Penal n. 565-RO, Plenário, Relatora Ministra Cármen Lúcia, julgado em 8.8.2013, publicado no DJ em 23.5.2014).
Respeitosamente, não se consegue compreender, jurídica e sistemicamente, como se conclui haver independência das instâncias pelo fundamento retromencionado, e, num caso idêntico, no entanto tratando de competência (igualmente administrativa, porém na seara tributária) da Receita Federal, não haver o mesmo silogismo.
Uma inarredável – e para nós inaceitável – consequência é que a definição do que (conduta) se “transformará” em crime fica ao alvedrio da seleção (discricionária) da administração, bem assim ao momento em que isso ocorrerá. E nem estamos falando das gravíssimas situações mais recentemente noticiadas em que o CARF se transformou, em alguns casos, em verdadeiro balcão de negócios para proferir decisões favoráveis a “contribuintes” (criminosos) mediante o pagamento de propinas a alguns julgadores, fatos ora sob apreciação do Poder Judiciário. Inclusive já vivenciamos uma situação de um caso concreto ainda antes da SV n. 24 (sem imputar aqui qualquer conduta, apenas narrando o fato) em que, na esfera administrativa, houve decisão no sentido de que “não haveriam provas inequívocas das fraudes”, enquanto perícia produzida nos autos da ação penal (com a participação do titular da ação penal, o Ministério Público), demonstrou, cabalmente, a total ilogicidade das escriturações, presente a fraude ideológica, que ensejou a sonegação de muitos milhões de reais.
4. Terceiro fundamento: Violação do art. 5º, XXXIX, da CF/88.
Como já referido, ao editar a SV 24, o STF considerou que o “crédito tributário” seria elemento do tipo (ou ainda, para alguns, condição objetiva de punibilidade).
Houve nítida violação do disposto no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal, que dispõe que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação”.
Segundo referido dispositivo, somente a lei pode definir (de forma limitada e objetiva) o que é um delito.
Efetivamente, a súmula alterou o conteúdo e a estrutura típica do delito, pois, em nenhum momento, a lei fala em “crédito tributário”, mas em “tributo”. Vale dizer, o Supremo Tribunal Federal acabou por utilizar de poder legiferante do qual não tem competência ou incumbência, seja em razão da matéria, seja em razão da sua função precípua que está longe de criar normas, senão aplicá-las!
Como bem pondera novamente Andreas Eisele, a premissa de que crédito tributário é elemento do tipo “é falsa, pois uma leitura do texto de tal preceito legal evidencia que em nenhum momento o texto alude ao crédito tributário, restringindo-se à descrição da evasão, a qual não se confunde com o crédito” 11. Ademais, prossegue com correção novamente, “o que o lançamento constitui é a exigibilidade do crédito, e não o crédito em si, de modo que sequer o objeto da Súmula seria tecnicamente determinado”.
5. Quarto fundamento: Alteração do prazo prescricional, que se tornou variável para o mesmo tipo penal.
Nos debates do PSV 29, que ensejou a edição da Súmula Vinculante n. 24, com sua percuciência e conhecimentos técnicos, a Ministra Ellen Gracie alertou que a redação era omissa a respeito do prazo prescricional. Essa, aliás, foi uma das razões para o Ministro Joaquim Barbosa manifestar seu posicionamento contrário à aprovação da súmula vinculante (antes já declinado), ponderando que
a presente proposta de súmula vinculante é incompleta, pois ela omite um aspecto crucial que foi amplamente discutido, aqui, durante o julgamento do leading case, e que consta de inúmeros outros julgados proferidos pelas duas Turmas deste Tribunal sobre a matéria. Leio os seguintes trechos do acórdão do HC nº 81.611 e de vários outros, inclusive de minha relatoria, em que há a seguinte complementação “suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo”.
Foi mais enfático, adiante, ao assentar que “estão sumulando pela metade” (e sumularam mesmo!).
Assentou ainda, antevendo problemas que ora são apresentados de forma mais clara, já o dissemos também, que “com o passar do tempo, e em razão da multifacetariedade intrínseca do fenômeno criminal, haverá, sem dúvida, uma tendência inevitável à obsolescência da súmula e à consequente necessidade, para esta Corte, de revogá-la ou de proceder às sucessivas clarificações” (anteviu “problemas gravíssimos”, ora aqui tratados, que hoje ocorrem de forma reiterada!).
De modo absolutamente percuciente, relembrou a Ministra Ellen Gracie que o leading case (sobre o qual estava se debruçando a pretensão sumulatória – o HC 81.611-SP) se deu em caso em que se tratava “de um cidadão que havia construído e comercializado cerca de trinta e seis edifícios de apartamentos, e não havia recolhido um único centavo de imposto de renda na sua empresa, nem na pessoa física”.
Com efeito, após dar ênfase a dados históricos (muitas vezes perdidos na repetição de ementas – as quais, nem sempre, refletem o que efetivamente decidido) concluiu destacando que sempre fazia “referência expressa a essa questão da prescrição que é esclarecimento devido, é esclarecimento necessário não apenas às instâncias inferiores, mas a toda a população brasileira, aquela população brasileira que paga impostos, aquela população brasileira que não sonega impostos. Eu vejo que, com estas restrições todas, baseada em dúvidas, não pode construir-se uma súmula vinculante”.
Mas a questão central está em que a delegação para a aferição da existência ou não do crime ao setor da administração fazendária gerou outro grave problema dogmático e técnico: de um lado, passados cinco anos para a constituição do crédito tributário, não se pode mais apurar o crime, que, de acordo com a legislação em vigor, prescreve em doze anos. De outro lado, se houver a constituição do crédito tributário (que não é elemento do tipo, e sim o tributo) no prazo de até cinco anos, o prazo prescricional poderá atingir até 22 anos (5 anos para a constituição do crédito, 5 anos para discussões administrativas e mais 12 anos, que é o prazo regular previsto no Código Penal).
Andreas Eisele destaca com percuciência esse paradoxo 12, ao dizer que “como o crime contra a ordem tributária somente se consumaria com a conclusão do procedimento administrativo, na prática poderia ocorrer a seguinte situação: se um sujeito praticasse uma evasão tributária mediante fraude (tipificada no art. 1º, caput, da Lei nº 8.137/90) em 10/01/1991, como o Fisco tem o prazo de 5 anos para iniciar o procedimento de lançamento do crédito correspondente, este poderia ser iniciado, por exemplo, em 09/01/1996 e, caso as discussões administrativas ocorridas durante o procedimento respectivo durassem mais aproximadamente 5 anos, o lançamento poderia ser concluído, hipoteticamente, em 08/01/2001. Neste contexto, a partir dessa data iniciar-se-ia o prazo prescricional no âmbito penal, em decorrência do que a denúncia poderia ser recebida até 07/01/2005 (isso se o prazo prescricional fosse calculado somente com base na pena mínima cominada, nos termos do disposto no art. 109, V, do Código Penal). Ou seja, quase 14 anos após, em uma época na qual a punibilidade estaria extinta pela prescrição penal se o crime fosse considerado como consumado no momento da evasão (considerando-se, neste caso, não somente a pena mínima cominada, que apenas será o referencial de cálculo após a fixação concreta da sanção no limite quantitativo correspondente, mas a pena máxima abstratamente prevista em lei, nos termos do art. 109, III, do Código Penal). Além disso, seria juridicamente possível a imposição de uma condenação até quase 22 anos após a evasão, pois mesmo considerando-se o prazo prescricional penal calculado pela quantidade mínima de pena abstratamente cominada, como o recebimento da denúncia e a sentença condenatória interrompem a fluência de tal prazo (nos termos da regra veiculada pelo art. 117, I e IV, do Código Penal), no exemplo acima indicado o processo poderia ser julgado em primeiro grau de jurisdição até 06/01/2009 e, se houvesse condenação e recurso, a confirmação da decisão poderia ser implementada pelo Tribunal até 05/01/2003 (isto considerando-se o cálculo do prazo prescricional nos termos da quantidade mínima de pena abstratamente cominada para tal crime) […]”.
Além disso, há ainda situações concretas em que a conduta (ação) foi praticada quando o réu tinha menos de 21 anos, porém o exaurimento (“tipificação ou existência do crime”, segundo a SV 24) se deu somente após esse marco. Neste caso, não se pode contar a prescrição pela metade, conforme previsto no art. 115 do CP (São reduzidos de metade os prazos de prescrição quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 anos […]), pois, quando da existência do crime (exaurimento da esfera administrativa), o réu já tinha mais de 21 anos.
Esta situação paradoxal revela, por outro viés, consequências nefastas que impõem esse pronunciamento em face do disposto no comando sumulado, que reclama a aplicação integral do seu conteúdo. Muito antes do julgado abaixo, já havíamos alertado para a hipótese, que efetivamente aconteceu posteriormente, em que o STF reafirmou que “[…] conforme a jurisprudência consolidada por este Superior Tribunal de Justiça, em consonância com o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, os crimes previstos no art. 1º da Lei nº 8.137/90 se consumam com a constituição definitiva do crédito tributário. Portanto, é nesse momento que deve ser aferida a idade do Acusado para o fim de aplicação do disposto no art. 115 do Código Penal. No caso, o lançamento definitivo do débito ocorreu em 16/03/2007, data em que a Acusada, nascida em 18/07/1984, possuía 22 (vinte e dois) anos. Dessa forma, não se aplica a redução do prazo prescricional e, por conseguinte, não se verifica a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva em nenhuma de suas modalidades”(Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Recurso Especial 1.275.760-RS, 5ª Turma, julgado em 26.11.2013, publicado no DJ em 9.12.2013).
Em síntese, por interpretação judicial que gerou a edição da súmula vinculante alterou-se o prazo prescricional 13, que varia de acordo com a eventual atuação apenas da autoridade administrativa, porém jamais (em hipótese alguma em face da súmula) se identifica com o prazo estipulado no Código Penal.
Também houve modificação substancial das hipóteses em que a prescrição pode ser contabilizada nos moldes do art. 115 do CP, gerando situações mais gravosas aos réus.
6. Quinto fundamento: Relativização da Súmula Vinculante n. 24 e o problema da exclusão do inciso V do art. 1º da Lei n. 8.137/1990 da redação do comando sumulado.
Talvez um dos mais graves equívocos está aqui !
Vejam o “problema” criado pela ausência de técnicas (para não dizer conhecimento mesmo) da SV 24 e a ausência de compreensão de que lhe aplica.
Importante destacar que, no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal, há posicionamentos que, sem distinguish ou com distinguish inconsistente (para não dizer “inventado” diante do paradoxo da súmula), geram incompatibilidade com o conteúdo da Súmula Vinculante n. 24. (situação que, só por isso, nos termos expostos na introdução, demonstram a necessidade de haver o cancelamento do referido comando).
No leading case, o HC n. 81.611-SP, trazia-se impugnação a denúncia que continha fatos em que o paciente estava sendo processado por violação ao artigo 1º, I (omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias) e II (fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal), ambos da Lei n. 8.137/1990, porque teria omitido do fisco receitas decorrentes da prestação de serviços.
Já no julgamento do HC n. 90.795-PE (4.12.2007, DJ de 29.2.2008), por exemplo, constou resumo do entendimento consolidado em excerto da ementa que referiu que “Crime tributário – Processo administrativo – Dispensa. Uma vez versada situação concreta em que, mediante o exercício do poder de polícia, deu-se a apreensão de mercadoria acompanhada de notas fiscais e guias falsas, possível é a propositura da ação penal, independentemente da responsabilidade administrativo fiscal”.
Ao julgado foram opostos embargos de declaração, mas da leitura pura e simples da ementa do aresto, embora não refira de qual crime se está tratando, deflui que se deixou bem claro, ao contrário do acórdão-paradigma citado, que seria desnecessário o exaurimento do processo administrativo fiscal quando existentes outras provas cabais da ocorrência do crime tributário.
Os fatos objeto da denúncia são hialinos no sentido de que houve uma fiscalização conjunta de órgãos estaduais visando a verificação da ocorrência de simulação de venda de combustíveis, com circulação fictícia de mercadoria entre Estados da Federação. Tais suspeitas foram levantadas a partir de uma representação criminal apresentada por […], em razão de esta ter emitido notas fiscais frias contra a primeira empresa, simulando uma operação de venda de combustível. Montadas as barreiras, houve a fiscalização de veículos mediante a qual se constatou que os condutores utilizavam notas fiscais e guias de acompanhamento de combustíveis e lubrificantes forjadas, delas constando declarações de destino falsas. Aludiu-se o conluio dos administradores das empresas para se suprimir o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços referente aos combustíveis transportados.
Veja-se o paradoxo com a SV 24 o que corretamente disse na época o saudoso Ministro Menezes Direito: “A questão posta, no que concerne ao procedimento administrativo para a constituição de crédito tributário, pelo que pude deduzir, significa o eixo da sustentação feita nesta impetração, e parece-me superada pela jurisprudência. Porque […] aguardar-se o exaurimento da instância administrativa, impedindo a ação do Ministério Público para a apuração do crime tributário, significaria, pelo menos na minha compreensão, dar um bill de idenidade, condicionado a procedimento criminal diante do procedimento administrativo a ser instaurado pelo Ministério Público”. O Ministro Marco Aurélio complementou: ”Tenho votado quanto à necessidade de esgotar-se o meio administrativo, de formalizar-se o processo administrativo-fiscal, mas, no caso, existe situação peculiar: houve a apreensão de notas fiscais frias. Não se trata de insuficiência de recolhimento de tributo, quando essa insuficiência deve estar demonstrada no campo administrativo”. Ainda excerto do voto do Ministro Ricardo Lewandowski: “[…] Também me filio à tese de que, em se tratando de crimes contra a ordem tributária, especialmente sonegação fiscal, há de se aguardar, realmente, o término do processo administrativo. Data venia, acompanho essa posição, que me parece ainda majoritária nesta Corte. No entanto, os fatos imputados aos réus, nesse processo, são diversos. Há uma série de delitos imputados na inicial, na exordial acusatória; são fatos dos quais eles se defenderão, certamente, no momento processual adequado”.
Eis a demonstração cabal de que o próprio STF sequer compreende o tipo penal em voga: se fosse mera ausência de recolhimento de tributos não haveria crime 14, o que é basilar na dogmática dos crimes desse jaez. Na espécie, indubitavelmente, tratava, dentre outras, de apreensão de notas fiscais falsas, que gerou denúncia pelo crime (material/fraudulento) do artigo 1º da Lei n. 8.137/1990 (incisos I, II, III e IV). Delito material, sem dúvidas.
Derradeiramente, nova manifestação do Ministro Menezes Direito, talvez a mais relevante do julgado em nossa avaliação: ”da leitura do meu voto, será possível constatar, especificamente, que, conforme eu disse, essa questão estava superada no voto de Vossa Excelência. Mesmo porque há um precedente da Suprema Corte, Habeas Corpus nº 81.611, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, em que se acolheu, como posição majoritária quanto a esse aspecto, o entendimento assinalado por Vossa Excelência, embora haja na Corte pronunciamentos divergentes. Neste caso, efetivamente, se tolhêssemos a ação do Ministério Público, diante das circunstâncias postas nos autos, condicionaríamos a iniciativa do procedimento administrativo ao Código Penal. Em uma palavra: não haveria mais flagrante quando se constatasse negligência relativamente ao dispositivo legal permitido […]
Do que se vê, os casos (HC 81.611-SP e HC 90.795-PE) são absolutamente idênticos: tratam, ambos, de impugnações a denúncias criminais por delitos materiais previstos no artigo 1º da Lei 8.137/1990. A única diferença está que, no primeiro, as condutas-meio narradas estão enquadradas nos incisos I e II, enquanto, nesse último, nos incisos I, II, III e IV.
Mas não há diferença quanto ao tipo penal. Em ambos, na lítera do HC n. 81.611-SP (e também agora da súmula vinculante), enquanto não exaurida a esfera administrativa, não poderia o Ministério Público iniciar a ação penal. Contudo, não foi o que restou decidido nesse último julgado. Fundamentos racionais e sistêmicos, respeitosamente, não existem.
Compreende-se que, no confronto dos julgados, distinguiu-se onde o tipo penal (e agora a súmula) não distinguem: o crime fiscal previsto no art. 1º da Lei n. 8.137/1990 tem natureza eminentemente fraudulenta (pelas condutas-meio) com a necessária supressão ou redução de tributos (os verbos nucleares são “suprimir” ou “reduzir”). A conduta-meio prevista no inciso III do art. 1º exige exatamente que haja falsificação (material ou ideológica) de documentos.
Significa que pouco importa por intermédio de qual conduta-meio foi alcançada a “supressão” ou a “redução” do tributo, pois, é preciso enfatizar, o crime tributário de que se trata não está na conduta-meio, e sim na cabeça do artigo. A circunstância de não estarem presentes eventualmente esquemas fraudulentos e falsificação de notas fiscais não altera em absolutamente nada a ocorrência do crime tributário.
Eis aí uma confusão enorme, assentada, respeitosamente, sem o devido conhecimento do tema.
Daí deflui, ainda, que a redação da Súmula Vinculante 24 reflete a incompreensão integral – pelo próprio órgão que a editou – de como se configura o delito, pois, expressamente, excluiu-se o inciso V. Dispõe a regra em comento que: “Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato; V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V”.
Verifica-se que não se encontra inserta na redação da Súmula Vinculante 24 a previsão do inciso V exatamente por se considerar que o crime estaria na “conduta-meio”.
De fato, a hipótese do inciso V é a única que, isoladamente vista, efetivamente não é um crime autônomo, mas mera infração administrativa. Porém, como mencionado, o crime está no caput, não nas condutas-meio.
A propósito, veja-se o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal, em que disse, com manifesto equívoco pelo erro dogmático originário, que “o crime previsto no inciso V do artigo 1º da Lei nº 8.137/90 – […] – prescinde do processo administrativo-fiscal e a instauração deste não afasta a possibilidade de imediata persecução criminal (HC n. 96.200-PR, STF, 1ª Turma, julgado em 4.5.2010). E no voto-condutor há expressa remissão ao HC n. 90.975-PE, com o seguinte acréscimo: “Está-se diante de prática delituosa cuja imputação, no campo jurisdicional, dispensa a conclusão do processo administrativo-fiscal. A jurisprudência do Supremo é reiterada no sentido de exigir-se o respectivo término quando em jogo sonegação fiscal. No caso, conforme ressaltou o Superior Tribunal de Justiça, trata-se de crime omissivo no que não apresentados livros e documentos. Repito à exaustão: não se aplica ao crime do inciso V do artigo 1º da Lei nº 8.137/90 a exigência de aguardar-se, para a propositura da ação penal, o exaurimento da fase administrativo-fiscal. […] Em síntese, o tipo do inciso V do artigo 1º da Lei nº 8.137/90, de 27 de dezembro de 1990, prescinde, sob o ângulo da persecução criminal, do término de possível processo administrativo, não ficando jungido a este último”.
Fica muito claro que a Suprema Corte ainda parte da premissa que o crime estaria na conduta-meio, quando não está.
Este erro dogmático originário também contamina outras decisões e em outras esferas, como se vê de julgados do STJ a referência de que – pasmem ! – o delito seria formal: “Os crimes contra a ordem tributária previstos no art. 1º, incisos I a IV da Lei 8.137/90 não se tipificam antes do lançamento definitivo do tributo, nos termos da Súmula Vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal. Contudo, o delito do art. 1º, inciso V, da Lei nº 8.137/90 é formal, não estando incluído na exigência da referida Súmula Vinculante. Assim, a prescrição para o referido crime ocorre na forma prevista no art. 111, inciso I, do Código Penal” (HC n. 195.824/DF, julgado em 28.5.2013, publicado no DJ em 6.6.2013). Noutro, já referido anteriormente, reafirma-se que “nos termos da jurisprudência desta Corte, o crime descrito no art. 1°, V, da Lei n. 8.137/1990 ostenta natureza formal, ao contrário das condutas elencadas nos incisos I e IV do referido dispositivo, e a sua consumação prescinde da constituição definitiva do crédito tributário. Por consectário, o prévio exaurimento da via administrativa não configura condição objetiva de punibilidade” (RHC n. 31.062–DF, STJ, 5ª Turma, unânime, julgado em 2.8.2016, publicado no DJ em 12.8.2016)
Em outro caso também do STF (HC. n. 96.324-SP), colhe-se do julgado (fundamentos) a referência expressa (para a denegação da ordem) que “se paciente, supostamente, se utilizou de esquema fraudulento, tal como a constituição de empresa fantasma ou a utilização de laranjas para reduzir ou suprimir tributo não há falar em necessidade de lançamento definitivo do crédito – com relação ao qual a Receita sequer teria condições de aferir a existência – como condição para a instauração da ação penal, que é a sede própria para averiguar a existência ou não de organização criminosa constituída para a prática de diversos crimes, entre eles o de sonegação fiscal”.
Na mesma linha também andou (muito mal) o STJ, ao reconhecer que “considerando as peculiaridades concretas do caso, verifica-se que a hipótese sob exame em muito se diferencia daquelas outras que inspiraram os referidos precedentes. De fato, uma coisa é desconstituir o tipo penal quando há discussão administrativa acerca da própria existência do débito fiscal ou do quantum devido; outra bem diferente é a configuração, em tese que seja, de crime contra ordem tributária em que é imputada ao agente a utilização de esquema fraudulento, como, por exemplo, a falsificação de documentos, utilização de empresas “fantasmas” ou de “laranjas” em operações espúrias, tudo com o claro e primordial intento de lesar o Fisco. Nesses casos, evidentemente, não haverá processo administrativo-tributário, pelo singelo motivo de que foram utilizadas fraudes para suprimir ou reduzir o recolhimento de tributos, ficando a autoridade administrativa completamente alheia à ação delituosa e sem saber sequer que houve valores sonegados. Apurar a existência desses crimes contra a ordem tributária, cometidos mediante fraudes, é tarefa que incumbe ao Juízo Criminal; saber o montante exato de tributos que deixaram de ser pagos em decorrência de tais subterfúgios para viabilizar futura cobrança é tarefa precípua da autoridade administrativo-fiscal. Dizer que os delitos tributários, perpetrados nessas circunstâncias, não estão constituídos e que dependem de a Administração buscar saber como, onde, quando e quanto foi usurpado dos cofres públicos para, só então, estar o Poder Judiciário autorizado a instaurar a persecução penal equivale, na prática, a erigir obstáculos para desbaratar esquemas engendrados com alta complexidade e requintes de malícia, permitindo a seus agentes, inclusive, agirem livremente no sentido de esvaziar todo tipo de elemento indiciário que possa comprometê-los, mormente porque a autoridade administrativa não possui os mesmos instrumentos coercitivos de que dispõe o Juiz Criminal” (HC n. 50.933-RJ, 5ª Turma, unânime, julgado em 17.8.2006, publicado no DJ em 2.10.2006).
Mais julgados na mesma linha:
PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA (ART. 1º, V, DA LEI N. 8.137/1990). SÚMULA VINCULANTE N. 24. INAPLICABILIDADE. CRIME FORMAL. DESNECESSIDADE DE EXAURIMENTO DA ESFERA ADMINISTRATIVA. PRESCRIÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, o crime descrito no art. 1°, inciso V, da Lei n. 8.137/1990 ostenta natureza formal, ao contrário das condutas elencadas nos incisos I e IV do referido dispositivo, e a sua consumação prescinde da constituição definitiva do crédito tributário. Por consectário, o prévio exaurimento da via administrativa não configura condição objetiva de punibilidade (RHC n. 31.062/DF, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, Quinta Turma, julgado em 2/8/2016, Dje 12/8/2016). Agravo regimental não provido. (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 1.61.971-MG, STJ, 5ª Turma, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 3.3.2020, publicado no DJ 10.3.2020)
…] FRAUDE À FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA. NEGAR OU DEIXAR DE FORNECER NOTA FISCAL. COMERCIALIZAÇÃO DE CAMARÃO. SUPRESSÃO DE ICMS. AUSÊNCIA DE EMISSÃO DE CUPOM FISCAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA.[…] PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. RECONHECIMENTO DE OFÍCIO. LAPSO PRESCRICIONAL SUPERADO. CRIME REFERENTE A NEGAR OU DEIXAR DE FORNECER NOTA FISCAL. DELITO FORMAL. TERMO INICIAL. DATA DOS FATOS DELITUOSOS. CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. DESNECESSIDADE. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. AGRAVO IMPROVIDO. RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO DE OFÍCIO, EM RELAÇÃO AO CRIME PREVISTO NO ART. 1º, V, DA LEI 8.137/90. […] 4. O crime de negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal, previsto no art. 1º, V, da Lei 8.137/90, é formal e prescinde de prévio exaurimento de processo fiscal, consumando-se no exato instante em que o agente deixa de emitir a respectiva nota fiscal, motivo pelo qual, nesses casos, o início da contagem do prazo prescricional ocorre a partir dos fatos delituosos e não da constituição definitiva do débito tributário. Precedentes. 5. Ocorridos os ilícitos penais nas operações realizadas nos meses de janeiro, maio e setembro de 2004 e setembro, outubro e dezembro de 2005, conforme descrito na exordial acusatória, e recebida esta em 3/8/2018, deve ser declarada a a prescrição da pretensão punitiva em relação ao crime tipificado no inciso V do art. 1º da Lei 8.137/90, pois, desde dezembro de 2005, transcorreu período superior a 12 anos. 6. Agravo regimental improvido, com o reconhecimento, de ofício, da extinção da punibilidade do agravante, apenas no tocante ao delito tipificado no inciso V do art. 1º da Lei 8.137/90, em decorrência da prescrição da pretensão punitiva, nos termos do art. 109, III, c/c 111, I, ambos do Código Penal. (Agravo Regimental no Habeas Corpus n. 509.346/RN, STJ, 6ª Turma, unânime, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 12.5.2020, publicado no DJ em 18.5.2020)
Respeitosamente, criaram-se cortes para diferir onde, tecnicamente, não há diferença (trata-se daquela previsão feita pelo Ministro Joaquim Barbosa …).
A circunstância presente nos casos concretos não afastam em absolutamente nada a necessidade da aplicação da SV nº 24 para a aferição do crime tributário perpetrados. O tipo penal é o mesmo. Se usam empresas fantasmas ou não, se cometem condutas-meio do inciso V, todos os crimes são, tecnicamente, de natureza material, insculpidos no “caput” do art. 1º.
Com todo respeito, o tratamento diverso é, tecnicamente, insustentável, não sendo hipótese de eventual arguição de distinguish 15.
É absolutamente irrelevante sob o aspecto jurídico que a empresa pratique, com exclusividade, os crimes tributários e para isso tenha sido criada. Segundo se compreende, tecnicamente não pode haver o tratamento diferenciado, na medida em que, insiste-se, o crime é a “supressão” ou a “redução” de tributo, conduta que está prevista no caput do art. 1º, e não nas condutas dos incisos, que podem, isoladamente vistas, ser ou não condutas criminosas autônomas, mas são absorvidas pela conduta criminosa.
Mas para encerrar este tópico, há vários precedentes que realmente revelam o absurdo de situações também paradoxais, estas em prejuízo manifesto aos investigados/réus. Vejamos a ementa de um:
Agravo regimental em reclamação. 2. Crime contra a ordem tributária. Súmula Vinculante n. 24. 3. A denúncia foi recebida antes da constituição definitiva do crédito tributário. Peculiaridade do caso. A ação penal ficou suspensa até a finalização do procedimento administrativo em virtude de concessão de ordem em habeas corpus impetrado pelo reclamante. Sentença penal condenatória proferida após a constituição definitiva do crédito tributário. Condição objetiva de punibilidade atendida. Ausência de violação à autoridade de decisão desta Corte. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (Ag. Reg. na Reclamação n. 10.131-SP, STF, Plenário, unânime, julgado em 22.5.2014, publicado no DJ em 4.7.2014)
Veja-se: a) a ação penal foi instaurada antes da própria tipificação ou existência do crime (hipótese que ensejaria sua total inaptidão); b) a ação penal (ou seja, com denúncia recebida por fato que ainda não tinha materialidade, se considerado que o exaurimento da esfera administrativa se traduz em elemento do tipo) foi suspensa até a finalização do procedimento administrativo por conta de ordem judicial; c) o processo administrativo foi concluído; d) a ação penal pode ser retomada, sendo válida a sentença.
Em outro precedente perante o STF (HC n. 108.037, DJ 1º.2.2012), a situação foi idêntica. Queria-se o trancamento da ação penal em que o recebimento da denúncia ocorrera em 2003, mas o exaurimento da esfera administrativa somente em 2004, quando “em curso a instrução criminal e, portanto, antes da sentença, somente proferida em 4 de agosto de 2005 […] Embora tenha sido recebida a denúncia em momento anterior à constituição do crédito tributário, a superveniente constituição do crédito tributário, a superveniente inscrição do débito em dívida ativa afastaria a alegação de falta de justa causa para a ação penal, razão pela qual se impunha o aproveitamento dos atos processuais praticados, ante o princípio da economia processual”. Segundo o relator do caso, “a ausência de lei exigindo o processo administrativo para a apuração do débito, não bastasse a existência do auto de infração – , a ordem natural das coisas não está a direcionar à insuficiência de dados capaz de levar à necessidade de formalização do processo administrativo. Descabe potencializar a construção jurisprudencial a ponto de chegar-se, uma vez prolatada a sentença condenatória, confirmada em âmbito recursal, transitada em julgada, ao alijamento respectivo, assentando a falta de justa causa”. Em voto que acompanhou a posição majoritária, invocou-se o disposto no art. 462 do CPC: “Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença”.
Por sua vez, o STJ também já reconheceu que o entendimento quanto ao exaurimento da esfera administrativa “deve ser afastado nas hipóteses em que o processo administrativo é concluído durante o curso do processo-crime, antes da prolação da sentença” (HC n. 79.880-MG, 6ª Turma, DJ de 10.8.2009).
Traduzindo: a) não há fato típico antes do exaurimento da esfera administrativa; b) mas se a denúncia mesmo assim for recebida (sem o preenchimento dos requisitos essenciais) e restar comprovada a materialidade do fato antes da sentença, válida a condenação. Ou seja, devidamente adaptada, seria possível uma denúncia por homicídio (art. 121, CP), sem qualquer indicativo da prova da sua existência, desde que a materialidade restasse demonstrada até a sentença. Verdadeiro non sense, com a devida vênia.
Não há distinguish que padeça do vício decorrente da ausência de critérios dogmáticos, técnicos e lógicos e salve o erro originário da referida súmula vinculante.
Se houver alguma dúvida a respeito do tema, dolosamente no final desse tópico vamos aqui abrir uma digressão rápidapara fazer um paralelo.
Parece não haver dúvidas de que o delito de furto (art. 155, CP) é material (depende do resultado para sua existência, consumado ou tentado).
No denominado “furto qualificado”, dispõe-se no art. 155, § 4º, CP que subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel a pena é de reclusão de 2 a 8 anos se o crime é cometido:
I – com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa;
II – com abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza;
III – com emprego de chave falsa;
IV – mediante concurso de duas ou mais pessoas.
As condutas previstas nos incisos são os “meios” para a prática do furto que é punido no § 4º a título de “forma qualificada” (tipo penal autônomo).
Imagine-se a “criação” de uma súmula dizendo que o furto cometido nas formas (condutas-meio) dos incisos I a III sejam materiais (portanto precisam resultado), mas o do inciso IV seja formal (logo não precisa resultado).
Teríamos três hipóteses de delitos de furto qualificado “materiais” e uma hipótese de furto qualificado “formal”.
É um absurdo técnico a afirmação acima em relação ao furto, não ?
Pois foi exatamente isso que se faz em relação ao crime de sonegação fiscal: ao ser excluído o inciso V do art. 1º da SV nº 24, diz-se (e repete-se, repete-se, repete-se – sem pensar um segundo sequer racional e juridicamente) que o delito do inciso V então é formal e os demais são materiais.
7. Sexto fundamento: Impossibilidade de utilização de medidas cautelares para a apuração dos crimes tributários de natureza material.
Em razão do entendimento consolidado na Súmula Vinculante n. 24, encontram-se vários precedentes (na verdade, “ementas repetidas” 16 intensamente) no sentido de que seria inviável a utilização (mesmo em situações excepcionais) de medidas cautelares para a produção de provas de crimes tributários, tais como buscas e apreensões ou interceptações telefônicas.
O argumento utilizado para a conclusão nesse sentido é que como o crime material de sonegação fiscal só existe com o exaurimento da esfera administrativa, seria absolutamente ilegal e inconstitucional lançar mão (mesmo que demonstrados os indícios da prática de crime e os demais requisitos abstratos das medidas) de buscas e apreensões, interceptações telefônicas ou outros meios cautelares de produção probatória.
As medidas cautelares são essenciais – quando demonstradas suas imprescindibilidades – para demonstrar exata e notadamente a materialidade e autoria dos crimes.
Em razão da adoção do silogismo retromencionado, há inúmeros precedentes jurisprudenciais – derivados da compreensão do comando da Súmula Vinculante n. 24 – no sentido de que se não há materialidade do crime (que é o que exatamente quer se apurar por meio também das cautelares), pois ele só existiria com o exaurimento da esfera administrativa, ilícitas seriam as medidas anteriores de investigação. Confira-se:
[…] A jurisprudência desta Corte e do STF tem orientação firme no sentido da necessidade da constituição do crédito tributário, para que se possa instaurar persecução penal pela prática de crimes contra a ordem tributária, previstos no art. 1º, incisos I e II, da Lei n. 8.137/1990, configurando aquela uma condição objetiva de punibilidade. Não existindo o lançamento definitivo do crédito tributário, revela-se ilegal a concessão de medida de busca e apreensão e de quebra de sigilo fiscal, em procedimento investigatório, visando apurar os crimes em apreço. […] Ordem concedida de ofício, para reconhecer a ilicitude da prova obtida mediante a aludida cautelar, bem como determinar a devolução dos objetos apreendidos na empresa e na residência do ora paciente e levantar a quebra do sigilo bancário, que restou igualmente deferido (HC n. 211.393/RS, STJ, 5ª Turma, julgado em 13.8.2013, publicado no DJ em 19.8.2013).
[…] Conforme entendimento consolidado nesta Corte, tratando-se de crime de sonegação fiscal, enquanto ausente a condição objetiva de punibilidade, consistente no lançamento definitivo do crédito tributário tido por sonegado, inviável o deferimento de qualquer procedimento investigatório prévio. […] Ordem concedida para declarar a nulidade do despacho que atendeu a representação feita pela autoridade policial, determinando-se a inutilização do material colhido, nos termos do artigo 9º da Lei n. 9.296/96, devendo as instâncias ordinárias absterem-se de fazer qualquer referência às informações obtidas pelo meio invalidado (HC n. 128.087/SP, STJ, 5ª Turma, unânime, julgado em 27.10.2009, publicado no DJ em 14.12.2009).
[…] Nos crimes contra a ordem tributária, a propositura da ação penal, bem como o procedimento prévio investigatório, pressupõe haja decisão final sobre o crédito tributário, o qual se torna exigível somente após o lançamento definitivo. […] É necessário, antes, que o procedimento seja unicamente administrativo-fiscal, evitando-se, com isso, que expedientes próprios da investigação criminal sejam indevidamente usados para a definição de créditos tributários.No caso, se não se podia, e, de fato, ainda não se pode, instaurar ação penal, então não foram lícitas a busca e a apreensão. Recurso ordinário provido a fim de se determinar sejam devolvidas as coisas de natureza tributária apreendidas em virtude da busca e apreensão (RHC n. 16.414-SP, STJ, 6ª Turma, julgado em 12.9.2006, publicado no DJ em 4.6.2007).
[…] A existência do crédito tributário é condição absolutamente indispensável para que se possa dar início à persecução penal pela prática de delito dessa natureza. O lançamento definitivo do tributo é condição objetiva de punibilidade dos crimes definidos no artigo 1º da Lei 8.137/90. A autorização judicial para quebra do sigilo das comunicações telefônicas e telemáticas, para o efeito de investigação de crime de sonegação de tributo, é ilegal se deferida antes de configurada a condição objetiva de punibilidade de delito. Constrangimento ilegal verificado. Não se pode entender “na esfera da oportunidade e da conveniência” da Polícia ou do Ministério Público a investigação de conduta não punível – ou não punível enquanto não se cumprir a condição legal para o aperfeiçoamento da punibilidade, sob pena de ferir de morte a segurança jurídica, signo do Estado Democrático de Direito. O emprego de qualquer meio para a prática da sonegação somente adquire relevo, do ponto de vista da tipicidade das condutas descritas no artigo 1º da Lei 8.137/90, se houver imposto a ser pago. A própria tentativa – realização incompleta da conduta típica – está irremediavelmente adstrita à condição de existência do tributo em concreto. Ordem concedida para anular todas as decisões autorizativas da interceptação das comunicações telefônicas e de dados, aí incluídas as decisões de prorrogação do prazo fixado originalmente e, consequentemente, determinar o desentranhamento, dos autos da ação penal já instaurada, de todo e qualquer elemento originado das decisões que ora se anulam (HC n. 57.624-RJ, STJ, 6ª Turma, julgado em 12.9.2006, publicado em 12.3.2007).
O precedente criado leva a mais uma questão paradoxal sem solução possível, racional, lógica, dogmática e técnica: a produção de elementos de prova sólidas (necessárias para eventual condenação) por intermédio de buscas e apreensões, interceptações telefônicas para compreensão melhor das práticas criminosas ou outras medidas cautelares (sempre excepcionais, repise-se) não podem ser utilizadas porque, pela “criação jurisprudencial”, o crime (embora os fatos já cometidos) só existiria a partir do fim do procedimento administrativo. E quem continua “decidindo” se há vai apurar ou investigar e se há ou não o crime é “a esfera administrativa”. O paradoxo é insuperável, respeitosamente 1718.
8. Sétimo fundamento: Impossibilidade de apuração de fato criminoso previsto no art. 1º da Lei n. 8.137/90 mediante inquérito ou outro meio legal de investigação.
Pelas mesmas razões elencadas no item anterior, tem-se reconhecido ser impossível a instauração de inquérito policial ou qualquer outro meio de apuração de fato criminoso enquanto não exaurida a esfera administrativa.
A situação implica verdadeira restrição à apuração dos fatos criminosos em prol de uma única autoridade – Receita Federal – que, muitas vezes não realiza as apurações, mesmo que por solicitação expressa de outros órgãos, ao fundamento de ausência de conveniência por razões tributário-econômicas ou então em face de dificuldades estruturais.
Confiram-se alguns precedentes que afirmam a impossibilidade de apuração em inquérito policial ou outro meio de investigação:
[…]A instauração de persecução penal, desse modo, nos crimes contra a ordem tributária definidos no art. 1º da Lei nº 8.137/90 somente se legitimará, mesmo em sede de investigação policial, após a definitiva constituição do crédito tributário, pois, antes que tal ocorra, o comportamento do agente será penalmente irrelevante, porque manifestamente atípico. Súmula Vinculante nº 24/STF (HC n. 101.900-SP, STF, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 21.9.2010, publicado no DJ em 11.3.2014) 19.
[…] A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que a ausência de constituição definitiva do crédito tributário impede a persecução penal dos crimes materiais contra a ordem tributária. Precedentes. Habeas corpus deferido para trancar o inquérito policial (HC n. 93.209-SP, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 18.3.2008, publicado no DJ em 18.4.2008).
Ora, qualquer procedimento investigatório tem a finalidade exatamente de apurar conduta criminosa (sonegação, mediante a supressão ou redução de tributos), que não pode ser condicionada a uma questão a ser dirimida na seara administrativa, que, na linha da SV 24, tem o poder único de dizer sobre a ocorrência dos crimes (tipicidade).
Novamente há restrições ao modo de apuração do fato criminoso, centralizado em autoridade administrativa, excluindo-se o titular da ação penal de trazer eventuais outros meios de prova acerca da prática delitiva.
9. Oitavo fundamento: A total desproteção do bem jurídico tutelado e a diminuição da arrecadação tributária esperada.
Em matéria de crimes tributários, seguidamente são declinados argumentos de que a finalidade de se exaurir a esfera administrativa ou então a existência de regras despenalizantes (v.g, art. 34 da Lei 9.249/1995; art. 15 da Lei 9.964/2000; art. 9º, §§ 1º e 2º, da Lei 10.684; arts. 67 a 69 da Lei 11.941/2009) estaria em se saber o montante sonegado e, assim, permitir a arrecadação tributária mediante o pagamento dos tributos devidos.
Tanto no julgamento do Habeas Corpus n. 81.611-SP são encontradas tais premissas, como também na própria discussão da Súmula Vinculante n. 24. Eis excerto do que dito nesse último julgado:
“[…] quis o legislador nacional estabelecer uma política de arrecadação sem abrir mão do tipo penal. Nós temos, para a sonegação e os crimes relativos à arrecadação tributária, os tipos previstos na legislação, mas o cidadão que eventualmente tenha praticado um ato de sonegação tem o direito dado pela lei federal de pagar e quitar esse tributo até o lançamento tributário; evitando, com esse pagamento, que venha a ser processado e punido. É uma política tributária que foi estabelecida pelo Estado brasileiro. Podemos divergir dessa política, mas, como julgadores, nós não podemos refazê-la. Dessa forma, o entendimento […] no sentido de ser necessário o lançamento fazendário, o lançamento fiscal para a finalidade da tipificação do delito previsto na legislação tributária – é consentâneo com uma política tributária em que, inclusive, há várias leis de parcelamento, cito aqui a Lei nº 10.684, de 30 de maio de 2003 […] É uma política tributária, sem abrir mão do tipo penal. O tipo penal incidirá no momento em que o cidadão contribuinte olvidar do seu pagamento. […] acho que o Tribunal, também, não pode perder de vista o caráter – vamos dizer –, de certo modo, extravagante do recurso que o ordenamento jurídico brasileiro faz ao Direito criminal para efeito de lograr arrecadação. O Direito Penal é o último recurso de que as ordens jurídicas se valem para defender valores que não podem ser eficazmente defendidos de outro modo. Não é este o caso de arrecadação de tributos”.
Respeitosamente, eis acima grande falácia argumentativa, sem qualquer noção com a realidade das coisas. Compreende-se que, jurídica e faticamente, essas regras não servem como forma de incrementar eventualmente a arrecadação tributária espontânea. O efeito é contrário: estimulam o aumento das práticas criminosas, ocorrendo o chamado efeito espiral.
A genérica afirmativa de um suposto interesse arrecadatório não procede. Compreende-se que a aplicação dessas regras implica, em verdade, uma desproteção aos bens jurídicos fundamentais estampados na Constituição, gerando, em verdade, impunidade (culminando em injustiça)20e21.
Aliás, colhe-se dos debates da súmula vinculante afirmação no sentido de que a existência de regras que permitam a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo é uma hipótese de “política tributária, sem abrir mão do tipo penal. O tipo penal incidirá no momento em que o cidadão contribuinte olvidar do seu pagamento. Podemos concordar ou discordar, mas isto é o que está na lei”.
Fazendo-se um corte na sequência da análise do tema, mas com todo respeito ao argumento acima, de cunho eminentemente iluminista, recordamos o que já defendido outrora 22.
Indagamos, com base na doutrina de Perelman, “que fazer se o próprio Poder Legislativo legisla de modo iníquo? Seria razoável continuar, apesar de tudo, a sustentar a doutrina do positivismo jurídico segundo a qual ´a lei é a lei´, seja qual for seu conteúdo?” 23.
Em sua linha de raciocínio, a resposta é negativa. O desarrazoado se constitui em limite para qualquer formalismo em matéria de direito, devendo-se apelar para princípios mais justos, pois “casos há em que o respeito estrito da letra redunda não numa solução [apenas] iníqua, mas em consequências ridículas“. Assim, propugna o autor, “nas sociedades democráticas contemporâneas, por juízes que compreendem [deveriam compreender] seu papel, que é o de conciliar o respeito pelo direito com o respeito pela equidade e pela justiça, de eliminar-lhes as consequências desarrazoadas, portanto inaceitáveis”.
Encerra dizendo que o juiz, contribuindo, com seu concurso, para o funcionamento de uma ordem iníqua, não pode esperar isentar-se de sua responsabilidade.
De fato, sobre o culto culto à lei (formal) remete-se às considerações de Dallari 24: “No direito brasileiro, tanto na produção teórica quanto na jurisprudência, verifica-se que foi estabelecido e se tornou predominante, apesar de brilhantes manifestações em contrário de alguns teóricos e magistrados, o que se poderia denominar culto à legislação, reduzindo-se o direito à lei escrita e resistindo-se a todas as tentativas de atualização. É uma atitude de acomodação, conservadora ou mesmo reacionária, motivo de conflitos entre direito inscrito na lei e a realidade social. De um lado, essa atitude dispensa o esforço de atualização dos conhecimentos teóricos, permitindo o uso de teorias e autores há longo tempo consagrados, habitualmente muito citados e transcritos para dar a impressão de que as afirmações e conclusões têm sólido embasamento científico”.
Reafirmamos compreensão que não é qualquer norma editada pelo legislador que se afigura legítima e consoante a Constituição, pois, para tanto, deve haver um liame axiológico de seu conteúdo com os valores sociais e democráticos. Da outorga de seu mandato, não tem o parlamentar a autorização para, de forma arbitrária e desarrazoada, legislar contra a própria sociedade.
Não podemos mais admitir no avançado estágio do constitucionalismo brasileiro a ausência de controle material das leis, pois, do contrário, se estaria chancelando a máxima de Montesquieu de que o Poder Judiciário estaria ainda hoje limitado a ser “la bouche de la loi”, calhando, vez mais, a advertência de Otto Bachof25: “uma jurisdição que se queira livre da sua responsabilidade pelo conteúdo jurídico da lei degrada-se necessariamente, pelo menos de maneira potencial, num auxiliar do mero poder”.
Esse também o pensamento complementar de Dallari, ao ponderar que, ao se apegarem ao formalismo, os tribunais “se reduzem a tribunais de mera legalidade formal, os magistrados passam a aplicadores automáticos de regras que sancionam privilégios, discriminações e violências de várias espécies. Os magistrados que adotam essa atitude renunciaram à sua independência” 26.
Assim, compreendemos necessário haver uma eticização também do Direito Penal Fiscal, calcada nas premissas de que o sistema não visa apenas à arrecadação, mas sobremaneira à realização – na sequência do processo – da justiça distributiva.
Como pondera Anabela Miranda Rodrigues “é hoje um dado adquirido a eticização do direito penal fiscal, uma vez que o sistema fiscal não visa apenas arrecadar receitas, mas também a realização de objectivos de justiça distributiva, tendo em conta as necessidades de financiamento das atividades sociais do Estado. […] É através da cobrança de impostos que o Estado realiza em grande parte os objectivos de justiça social que a sua dimensão democrática lhe impõe”27.
Consoante doutrina Martin Borowski, as medidas com esses conteúdos são inadequadas, porque não contribuem em nada para que seja fomentada a realização dos objetivos traçados na Constituição Federal. Ou, ao menos, não há nenhuma demonstração de que tais regras tenham como consequências a redução da sonegação fiscal (lato sensu). Streck resume que “não há qualquer justificativa de cunho empírico que aponte para a desnecessidade da utilização do direito penal para a proteção dos bens jurídicos que estão abarcados pelo recolhimento de tributos, mormente quando examinamos o grau de sonegação no Brasil”. Encerra afirmando que, “para abrir mão – mesmo que de forma indireta – da proteção penal do bem jurídico ínsito à ideia de Estado Social, o legislador deveria demonstrar, antes, que os meios alternativos à sanção, como o pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia, tenha, nos últimos anos – mormente a partir da Lei nº 9.249/95 – proporcionado resultados que apontem, de forma efetiva, para a diminuição da sonegação de tributos”28.
A questão central a ser enfocada é que não se pode deixar de visualizar que o bem jurídico tutelado nos crimes contra a ordem tributária é a regularidade fiscal mediante o pagamento (dever fundamental) dos tributos no momento esperado pelo Estado. Como dizem também Figueiredo Dias e Costa Andrade, o bem jurídico, em delitos desse jaez, constitui-se no “interesse público no recebimento completo e tempestivo dos singulares impostos”29.
Igualmente, Silva Sánchez, reportando-se à STF de 19 de maio de 2005, destaca que o Tribunal Supremo Espanhol reconhece como necessária a repressão de qualquer conduta que implique uma diminuição da arrecadação esperada pela Fazenda Pública30.
Na verdade, é natural que a arrecadação espontânea diminua diante de tais regras, pois elas acabam gerando o que se denomina de efeito espiral, que, consoante bem pontua Righi, “se conoce como efecto de resaca o espiral al que se produce normalmente en mercados competitivos, donde la ausencia de eficacia preventiva del Estado genera deslealdad, de modo que el delincuente presiona sobre los demás para que sigan su ejemplo, y así sucesivamente, llegándose a consecuencias de “contagio” generalizado” 31.
A consequência desse efeito espiral é que há um verdadeiro incentivo à prática delitiva por outros agentes em idêntica situação, especialmente pela concorrência desleal que é gerada em face das vantagens aos que sonegam e pela certeza de que poderão ser beneficiados com o afastamento do crime pela simples devolução do bem objeto da prática criminosa. Calham novamente as ponderações de Roemer ao dizer que “en general, es costoso que un delincuente no sea castigado conforme a la ley, porque dada su impunidad podría reincidir o bien otros individuos tendrán incentivos a delinquir porque la probabilidad de que sean atrapados se presume pequeña”32.
Segundo defendemos em obra de nossa autoria33, de relevo a referência de Silva Sánchez34 “ao aludir que o Direito Penal, para ser eficaz em sua pretensão de lograr a eficiência social, deve configurar suas normas partindo do princípio de que os destinatários das leis vão realizar um cálculo de eficiência. Especificamente, no caso, vendo não haver qualquer possibilidade de punição, no máximo a devolução do objeto do crime – a qualquer tempo –, o criminoso (inclusive aquele em potencial) será até estimulado a praticar fatos similares, porque ausente qualquer circunstância que garanta a prevenção sistêmica”.
A respeito do tema da concorrência desleal (que é princípio constitucional em relação ao qual o Estado tem a obrigação de agir positivamente – vide art. 170, IV, da CF/88), são absolutamente percucientes as ponderações do (então) presidente do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial, que, em artigo intitulado “Existe uma ética de mercado?”, pontuou com absoluto acerto: “O lucro da empresa não pode, portanto, ser gerado por sonegação ou falcatruas, nem à custa dos concorrentes. A concorrência desleal, além do dano ao erário público, desfigura o mais eficaz instrumento de mercado – a competição empresarial”35.
De estudo intitulado “O parcelamento tributário e seus efeitos sobre o comportamento dos contribuintes”, apresentado por Nelson Leitão Paes no XXXVIII Encontro Nacional de Economia (em que estudou com base em estatística e dados técnicos as Leis 9.964/2000, 10.684/2003, MP 303, de 2006, e Lei 11.941/2009 36), destacam-se algumas conclusões :
a) “desde 2000 foram concedidos nada menos do que quatro parcelamentos tributários (Refis, Paes, Paex, Refis-Crise) […] Segundo dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), no período de janeiro a novembro de 2008 foram recuperados apenas 2,16% do estoque total dos débitos inscritos em dívida ativa” (observação nossa: aí estão incluídas as dívidas propriamente ditas e as dívidas resultantes de práticas criminosas, o que revela que o incremento da arrecadação de valores decorrentes dos crimes é menor ainda que o percentual retromencionado);
b) “de forma recorrente, logo após a criação do parcelamento, a adesão dos contribuintes é muito grande, o que permite um relativo aumento na arrecadação. Entretanto, tal aumento não se sustenta, e de maneira geral, após pouco tempo, o número de inscritos e a arrecadação cai substancialmente” ? fl. 03 – vide também tabela ali constante com valores;
c) “percebe-se uma queda acentuada tanto no número de inscritos quanto na arrecadação média mensal do Refis […] aqui se apresenta um primeiro indicativo de que a regularidade na concessão dos parcelamentos tem comprometido a disposição dos contribuintes em pagar seus tributos pontualmente”?fl. 03;
d) “quando consideramos os efeitos do parcelamento, os números encontrados se aproximam ainda mais das estimativas de informalidade do Brasil na última década (em torno de 40% do PIB). De fato, a oferta de parcelamento fez despencar o percentual ótimo de pagamento de tributos para algo em torno de 62% […]”–fl. 08;
e) “percebe-se o enfraquecimento na disposição de pagar tributos das firmas, mesmo aquelas não envolvidas nos parcelamentos, reduzindo o percentual ótimo para apenas 62%”–fl. 09;
f) “O que este exercício simples demonstra é que a mera expectativa da criação de parcelamentos tributários já tende a enfraquecer a arrecadação atual e que quanto mais favoráveis forem as condições oferecidas menor tende a ser as receitas presentes […] a boa cultura tributária, demarcada pelo correto recolhimento espontâneo dos contribuintes, se enfraquece e pode ser afetada de forma permanente, reduzindo a arrecadação”– fl. 13;
g) “O que este trabalho procura apresentar é que […] existem perdas não só do ponto de vista da arrecadação, mas como também da fragilização das instituições, em particular a maior evasão fiscal”– fl.14.
Portanto, prova-se aqui (tanto sob a ótica de argumentos jurídicos, como em face de dados técnicos) que a utilização de regras suposta e aparentemente despenalizantes como forma de interpretar a configuração do crime implica malferimento à arrecadação tributária, notadamente a de natureza espontânea.
A arrecadação tributária não aumenta, ela diminui.
Não é dado ao legislador gerar tamanha desproteção, violando-se a proporcionalidade da regra.
A propósito de um sistema com regras desprotetivas (hipótese também violadora do Princípio da Proporcionalidade), já bem destacou o Ministro Gilmar Mendes que “os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção […], expressando também um postulado de proteção […]. Haveria, assim, para utilizar uma expressão de Canaris, não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbot), mas também uma proibição de omissão (Untermassverbot). Nos termos da doutrina e com base na jurisprudência da Corte Constitucional alemã, pode-se estabelecer a seguinte classificação do dever de proteção: […] (b) Dever de segurança […], que impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante adoção de medidas diversas; […] Discutiu-se intensamente se haveria um direito subjetivo à observância do dever de proteção ou, em outros termos, se haveria um direito fundamental à proteção. A Corte Constitucional acabou por reconhecer esse direito, enfatizando que a não observância de um dever proteção corresponde a uma lesão do direito fundamental previsto no art. 2º, II, da Lei Fundamental. […]37.
Nessa mesma linha são as percucientes observações de Bernal Pulido, autor provavelmente de uma das melhores obras mundiais sobre o tema, quando destaca que “la cláusula del Estado social de derecho modifica el contenido que los derechos fundamentales tenían en el Estado liberal. […] De este modo, junto a la tradicional dimensión de derechos de defensa, que impone al Estado el deber de no lesionar la esfera de libertad constitucionalmente protegida, se genera un nuevo tipo de vinculación, la vinculación positiva. En esta segunda dimensión, los derechos fundamentales imponen al Estado un conjunto de “deberes de protección” [dizemos nós: de proteção ótima] que encarnan en conjunto el deber de contribuir a la efectividad de tales derechos y de los valores que representan”38.
Na sequência de sua doutrina, destacando que “el efecto disuasorio o preventivo de la pena es una de las estrategias más efectivas para proteger los derechos fundamentales de ataques provenientes de terceros”, enfatiza que “
[…] La segunda variante del principio de proporcionalidad, que también se aplica para controlar la constitucionalidad de la legislación penal, pero desde el punto de vista de la satisfacción e las exigencias impuestas por los derechos de protección, es la prohibición de protección deficiente. En esta variante, el principio de proporcionalidad supone también interpretar los derechos fundamentales de protección como principios y aceptar que de ellos se deriva la pretensión prima facie de que el legislador los garantice en la mayor medida posible, habida cuenta de las posibilidades jurídicas y fácticas. Esto quiere decir que estos derechos imponen prima facie al legislador el desarrollo de todas las acciones (no redundantes) que favorezcan la protección de su objeto normativo, y que no impliquen la vulneración de otros derechos e principios que juegen en sentido contrario. El carácter prima facie de estos derechos implica que las intervenciones del legislador de las que sean objeto sólo puedan ser constitucionalmente admisibles y válidas de manera definitiva se observan las exigencias del principio de proporcionalidad. La versión del principio de proporcionalidad que se aplica frente a los derechos de protección se llama prohibición de protección deficiente (el untermassverbot) de la doctrina alemana. Este principio se aplica para determinar si las omisiones legislativas, que no ofrecen un máximo nivel de aseguramiento de los derechos de protección, constituyen violaciones de estos derechos. Cuando se interpretan como principios, los derechos de protección implican que el legislador les otorgue prima facie la máxima protección. Si éste no es el caso, y, por el contrario, el legislador protege un derecho sólo de manera parcial o elude brindarle toda protección, la falta de protección óptima debe enjuiciarse entonces desde el punto de vista constitucional mediante la prohibición de protección deficiente. Esta prohibición se compone de los siguientes subprincipios. Una abstención legislativa o una norma legal que no proteja un derecho fundamental de manera óptima vulnera las exigencias de principio de idoneidad cuando no favorece la realización de un fin legislativo que sea constitucionalmente legitimo. […] Una abstención legislativa o una norma legal que no proteja un derecho fundamental de manera óptima, vulnera las exigencias del principio de necesidad cuando existe otra abstención y otra medida legal alternativa que favorezca la realización del fin del Congreso por lo menos con la misma intensidad, y a la vez favorezca más la realización del derecho fundamental de protección. […] Una abstención legislativa o una norma legal que no proteja un derecho fundamental de manera óptima, vulnera las exigencias del principio de proporcionalidad en sentido estricto cuando el grado de favorecimiento del fin legislativo (la no-intervención de la libertad) es inferior al grado en que no se realiza el derecho fundamental de protección. Si se adopta la escala triádica expuesta con ocasión de la interdicción del exceso, se concluirá entonces que, según la prohibición de protección deficiente, está prohibido que la intensidad en que no se garantiza un derecho de protección sea intensa y que la magnitud de la no-intervención en la libertad o en otro derecho de defensa sea leve o media, o que la intensidad de la no-protección sea media y la no-intervención sea leve.[…]”39.
Tecendo importantes considerações acerca do denominado Princípio da Proibição de Proteção Deficiente, o Ministro Gilmar Mendes, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 418.376-MS, assentou, de modo correto e complementar à discussão ora posta que
“ quanto à proibição de proteção deficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção deficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito fundamental. […] No mesmo sentido, o Professor Ingo Sarlet: “A noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da proibição de excesso, já que abrange, […], um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante de dimensões que reclamam maior densificação, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibição de insuficiência no campo jurídico-penal e, por conseguinte, na esfera da política criminal, onde encontramos um elenco significativo de exemplos a serem explorados” (Sarlet, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista da Ajuris, ano XXXII, nº 98, p. 107, jun. 2005).
E continua o Professor Ingo Sarlet: “A violação da proibição de insuficiência, portanto, encontra-se habitualmente representada por uma omissão (ainda que parcial) do poder público, no que diz com o cumprimento de um imperativo constitucional, no caso, um imperativo de tutela ou dever de proteção, mas não se esgota nesta dimensão (o que bem demonstra o exemplo da descriminalização de condutas já tipificadas pela legislação penal e onde não se trata, propriamente, duma omissão no sentido pelo menos habitual do termo)” (Sarlet, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista da Ajuris, ano XXXII, nº 98, p. 132, jun. 2005)”.
Embora a doutrina brasileira aborde muito incipientemente o tema (ao contrário do que se vê no direito comparado), o tema vem sendo enfrentado seguidamente pelo STF.
Em decisão de mais tempo assentou que
“a Constituição de 1988 contém significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas é possível identificar um mandado de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandados constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente”, bem como que o “o Tribunal deve sempre levar em conta que a Constituição confere ao legislador amplas margens de ação para eleger os bens jurídicos penais e avaliar as medidas adequadas e necessárias para a efetiva proteção desses bens. Porém, uma vez que se ateste que as medidas legislativas adotadas transbordam os limites impostos pela Constituição – o que poderá ser verificado com base no princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot) e como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) –, deverá o Tribunal exercer um rígido controle sobre a atividade legislativa, declarando a inconstitucionalidade de leis penais transgressoras de princípios constitucionais” (HC n. 102.826, Rel. Para o acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 28.2.2012, publicado no DJ em 20.8.2013).
Também nessa decisão Plenária do STF:
DIREITO CONSTITUCIONAL, PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR CONTRA MENOR.
1. Não podem prevalecer decisões contraditórias do Poder Judiciário cuja consequência seja a negativa de acesso à Justiça e o esvaziamento da proteção integral da criança, prevista constitucionalmente (art. 227).
2. O art. 225 do Código Penal, na sua redação original, previa que em crimes como o dos presentes autos somente se procedia mediante queixa, salvo se a vítima fosse pobre ou tivesse ocorrido abuso do pátrio-poder. O dispositivo vigeu por décadas sem que fosse pronunciada a sua inconstitucionalidade ou não recepção.
3. A Lei nº 12.015, de 07.08.2009, modificou o tratamento da matéria, passando a prever ação pública incondicionada no caso de violência sexual contra menor.
4. Na situação concreta aqui versada, o Poder Judiciário considerou, por decisão transitada em julgado, descabido o oferecimento de queixa-crime pelo pai da vítima, entendendo tratar-se de crime de açãopenal pública. Se o STF vier a considerar, no presente habeas corpus, que não é admissível a açãopenal pública, a consequência seria a total desproteção da menor e a impunidade do crime.
5. À vista da excepcionalidade do caso concreto, o art. 227 da CF/88 paralisa a incidência do art. 225 do Código Penal, na redação originária, e legitima a propositura da açãopenal pública. Aplicação do princípio da proibição de proteção deficiente. Precedente. 6. Ordem denegada. (HC nº 123.971, Plenário, Redator do acórdão Ministro Roberto Barroso, julgado em 25.2.2016, publicado no DJ em 15.6.2016)
Mais recentemente (2020), imprescindível julgado do Plenário do STF a respeito do tema de haver um garantismo positivo:
CRIME DE FUGA DO LOCAL DO ACIDENTE. ARTIGO 305 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DO TIPO PENAL À LUZ DO ART. 5º, LXIII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. TEMA Nº 907. NATUREZA PRINCIPIOLÓGICA DA GARANTIA DO NEMO TENETUR SE DETEGERE. POSSIBILIDADE DE RESTRIÇÃO. PRESERVAÇÃO DO NÚCLEO ESSENCIAL DA GARANTIA. HARMONIZAÇÃO COM OUTROS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS PREVISTOS CONSTITUCIONALMENTE. POSSIBILIDADE. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO PARA AFASTAR A DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO TIPO PENAL ANALISADO.
1. O princípio da vedação à autoincriminação, conquanto direito fundamental assegurado na Constituição Federal, pode ser restringido, desde que (a) não seja afetado o núcleo essencial da garantia por meio da exigência de uma postura ativa do agente na assunção da responsabilidade que lhe é imputada; e que (b) a restrição decorra de um exercício de ponderação que viabilize a efetivação de outros direitos também assegurados constitucionalmente, respeitado o cânone da dignidade humana do agente.
2. 2. O direito de não produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere – nada a temer por se deter), do qual se desdobram as variações do direito ao silêncio e da autodefesa negativa, consiste em um dos marcos históricos de superação da tradição inquisitorial de valorar o investigado e/ou o réu como um objeto de provas, do qual deveria ser extraída a “verdade real”.
3. O direito de não produzir prova contra si mesmo, ao relativizar o dogma da verdade real, garante ao investigado os direitos de nada aduzir quanto ao mérito da pretensão acusatória e de não ser compelido a produzir ou contribuir com a formação de prova contrária ao seu interesse, ambos pilares das garantias fundamentais do direito ao silêncio e do direito à não autoincriminação . A vedação à autoincriminação só encontrou ressonância no Brasil em sua devida plenitude com a Constituição Federal de 1988, cujo art. 5º, LXIII, é inspirado pela 5ª Emenda da Constituição Norte-Americana, que assim dispões: “o preso sera informado de seus direitos, dentre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”.
[…] 10. A garantia do nemo tenetur se detegere no contexto da teoria geral dos direitos fundamentais implica a valoração do princípio da proporcionalidade e seus desdobramentos como critério balizador do juízo de ponderação, inclusive no que condiz aos postulados da proibição de excesso e de vedação à proteção insuficiente.
18. A fuga do local do acidente é tipificada como crime porque é do interesse da Administração da Justiça que, conforme o caso, ou o particular ou o Ministério Público disponham dos instrumentos necessários para promover a responsabilização cível e/ou penal de quem, eventualmente, provoca dolosa ou culposamente um acidente de trânsito.
19. A relativização da máxima nemo tenetur se detegere verificada in casu é admissível, uma vez que atende às duas premissas fundamentais acima estabelecidas. (a) A uma porque não afeta o núcleo irredutível da garantia enquanto direito fundamental, qual seja, jamais obrigar o investigado ou réu a agir ativamente na produção de prova contra si próprio. É que o tipo penal do art. 305 do CTB visa a obrigar que o agente permaneça no local do acidente de trânsito até a chegada da autoridade competente que, depois de identificar os envolvidos no sinistro, irá proceder ao devido registro da ocorrência. Ocorre que a exigência de permanência no local do acidente e de identificação perante a autoridade de trânsito não obriga o condutor a assumir expressamente eventual responsabilidade cível ou penal pelo sinistro e nem, tampouco, ensejará que contra ele seja aplicada qualquer penalidade caso não o faça;
24. O princípio da proporcionalidade, implicitamente consagrado pelo texto constitucional, propugna pela proteção dos direitos fundamentais não apenas contra os excessos estatais, mas igualmente contra a proteção jurídica insuficiente, conforme a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Propõe-se a fixação da seguinte tese: “A regra que prevê o crime do art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei no 9.503/97) e constitucional, posto não infirmar o princípio da não incriminação, garantido o direito ao silêncio e ressalvadas as hipóteses de exclusão da tipicidade e da antijuridicidade.” (Recurso Extraordinário nº 971.959/RS, STF, Plenário, maioria, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 29.7.2020, publicado no DJ em 31.7.2020)
AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E PENAL. CRIME PREVISTO NO ART. 305 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO NACIONAL. SOLUÇÃO DA CONTROVÉRSIA EM ÂMBITO NACIONAL QUANDO DO JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO EM REPERCUSSÃO GERAL. MANUTENÇÃO DO ENTENDIMENTO. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. 1. A regra que prevê o crime do art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97) é constitucional, posto não infirmar o princípio da não incriminação, garantido o direito ao silêncio e ressalvadas as hipóteses de exclusão da tipicidade e da antijuridicidade. Precedente. 2. Ação direta julgada procedente. (Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 35/DF, STF, Plenário, por maioria, Rel. Min. Marco Aurélio, Redator do Acórdão Min. Edson Fachin, julgado em sessão virtual de 2.10.2020 a 9.10.2020, publicado no DJ em 16.11.2020)
Convém ainda destacar, por absolutamente pertinentes, as ponderações de José Paulo Baltazar Júnior, quando declina ser “perfeitamente possível fazer derivar do dever de proteção o recurso também ao direito penal ou processual penal, caso outro meio mais eficiente não possa ser adotado, uma vez que a intervenção penal também estará submetida à prova da proibição de excesso. Desse modo, o dever de proteção poderá levar tanto à criação de tipos penais quanto à introdução de normas processuais que permitam, de forma efetiva, sua aplicação” 40.
Na senda da doutrina renomada de Carlos Bernal Pulido, a prevalência dessas regras supostamente penalizantes (elas não são, reafirmamos!) a ensejar conclusões abstratas de que haveria incremento na arrecadação tributária em verdade esbarra na violação do cânone máximo da proporcionalidade sob a perspectiva da Proibição de Proteção Deficiente (em seus três subprincípios) porque as normas em comento:
a) não protegem de maneira ótima o sistema essencial para a arrecadação tempestiva e esperada dos recursos e manutenção do Estado ante suas obrigações de atendimento aos direitos fundamentais dos cidadãos, notadamente da Previdência Social. Desse modo, fere-se a idoneidade porque não se favorece a realização de um fim legislativo legítimo (constitucionalmente previsto);
b) violam o subprincípio da necessidade, porque, racionalmente, dentro do sistema vigente (tal como existente no artigo 16 do Código Penal), não se favorece a realização do direito à proteção dos bens jurídicos fundamentais que são ínsitos às normas penais incriminadoras nos tipos ora tratados;
c) violam a proporcionalidade em sentido estrito, pois o grau de favorecimento do fim do legislador (simplesmente afastar a penalização criminal) é absolutamente inferior e desproporcional ao grau em que não se realiza o direito fundamental de proteção dos bens jurídicos tratados pelo tipo penal em voga.
Portanto, segundo a proibição de proteção deficiente, é vedado não garantir o direito de proteção com a devida intensidade (o que ocorre, pois o sistema fica totalmente desprotegido frente ao seu bem jurídico protegido pelas normas penais de que se trata), bem como permitir que a magnitude da não-intervenção na liberdade seja leve ou média (é absolutamente leve, pois afasta qualquer possibilidade de punição por quem já infringiu a norma penal).
10. Nono fundamento. Os delitos tributários como antecedentes da lavagem de dinheiro nos moldes da Lei n. 12.683/2012.
Nos termos da redação (originária) da Lei n. 9.613/98, poderiam ser crimes antecedentes somente aqueles elencados nos incisos I a VIII do seu art. 1º (lei de segunda geração). Após a edição da Lei n. 12.683/2012, a redação do tipo penal foi alterada para considerar crime “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.
As modificações nessa parte foram substanciais, na medida em que, avançando-se para o que se chama de lei de lavagem de dinheiro de terceira geração, não há mais o rol exaustivo das hipóteses que podem ser os antecedentes, passando-se à possibilidade de punição de fatos que se caracterizem não apenas como crimes, mas abarcados pela expressão “infração penal”, com mais largo alcance.
No § 1º do art. 2º da Lei n. 12.683/2012 tem-se que “a denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração antecedente”.
Em nossa compreensão, mantida a Súmula Vinculante n. 24, a dúvida sempre poderá ser arguida no sentido de que sem o exaurimento da esfera administrativa não existiria crime de sonegação fiscal, de modo que seria inviável inclusive o processamento criminal pela lavagem, porque, diz-se, não se poderia cogitar da existência de indícios do crime.
Vê-se que o raciocínio que se pode empregar para gerar o empeço é o mesmo para aquele em que – anteriormente analisado – temos visto o reconhecimento da impossibilidade de utilização de medidas cautelares prévias para a apuração dos próprios delitos fiscais de natureza material.
Eis aqui mais um (dentre tantos) paradoxo que decorre dos efeitos da aplicabilidade da Súmula Vinculante n. 24 em conjunto com a Lei n. 12.683/2012. Não se pode esquecer que, como grande (e importante) inovação, há previsão de punição pelo delito de lavagem de capitais “ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração antecedente”.
Embora o STF ainda não tenha apreciado até o presente momento a ADI n. 4.273 41, o fato é que a legislação pátria (em verdadeiro incentivo às práticas criminosas desse jaez, segundo nossa compreensão 42) admite a extinção da punibilidade dos crimes tributários se houver o pagamento do tributo sonegado e consectários, inclusive a qualquer tempo (com total desproteção do bem jurídico tutelado) 43.
Ora, é preciso pontuar, como já dito antes, que, muitas vezes, não há apuração dos fatos criminosos por exclusiva discricionariedade da administração tributária, em razão de critérios de conveniência.
Noutras situações, são utilizados argumentos meramente formais para a desconstituição do que apurado na seara administrativa ou ainda não é realizada a apuração para constituição do “crédito tributário” no prazo de 5 anos, restando, pela interpretação que se pode conferir, a impossibilidade de punição de alguém pela sonegação fiscal, tudo em razão de critérios que escapam totalmente ao crivo do Judiciário por entendimento exclusivamente da seara administrativa.
Importante ver que, em havendo a “constituição do crédito tributário”, mesmo que utilizado o expediente do pagamento como forma de extinção da punibilidade, não ocorre nenhum empecilho para a punição pela lavagem.
É dizer, nas primeiras situações, em que se poderia ter a demonstração da existência do crime por outras formas que não a exclusiva atuação da entidade responsável pela arrecadação ao tempo esperado em seu procedimento de “constituição de crédito tributário”, não há como se cogitar da punição pela lavagem de dinheiro, ao passo em que, na última, mesmo com a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, se poderá cogitar da lavagem de capitais.
Veja-se também o descompasso sistêmico existente em se mantendo a necessidade do exaurimento da esfera administrativa em relação aos crimes antecedentes de sonegação fiscal (lato sensu) praticados em território brasileiro. É que, nos termos do art. 2º, II, da Lei n. 12.683/2012, “independem de processo e julgamento das infrações penais antecedentes, ainda que praticados em outro país, cabendo ao juiz competente para os crimes previstos nesta lei a unidade de processo e julgamento”.
Significa que se alguém praticar delito de sonegação fiscal no exterior (realizando a lavagem dos valores ulteriormente no Brasil) não será necessário nem o julgamento do processo pelo crime antecedente no exterior, muito menos a “exigência” de que se comprove o exaurimento da esfera administrativa (como condição de “existência” ou presença de “indícios de sua existência”) para que se possa processar o responsável pelo ulterior delito de lavagem de capitais em território pátrio.
No âmbito internacional, nunca é demais ressaltar a importância dos compromissos assumidos pelo Brasil, especialmente no que se refere à repressão – eficaz e eficiente – de determinados delitos. Como bem ressalta Baltazar Júnior, essa visão de hipertrofia de direitos de defesa “anula qualquer possibilidade de persecução penal efetiva” 44.
A propósito, cumpre rememorar que, em 2012, ao revisar suas recomendações, o GAFI incluiu os delitos fiscais na categoria de crimes designados como antecedentes da lavagem, o que denota a gravidade e importância para os organismos internacionais de tais condutas por estarem diretamente relacionadas com a lavagem de capitais 4546.
Tal como no caso dos paradoxos abordados em relação à impossibilidade de utilização de determinadas medidas cautelares para a apuração dos delitos fiscais, compreendemos que, também aqui, não há o óbice para o processamento criminal pela lavagem de dinheiro, pois o que se exige não é a demonstração da existência do crime (que, segundo o STF, só se daria com o exaurimento da esfera administrativa), mas sim, na lítera da lei, de indícios da existência do crime antecedente, o que não demanda a certeza do crime, mas a demonstração de elementos de que houve a prática delitiva antecedente.
De qualquer modo, a manutenção dos termos do comando sumulado gera – e com certeza gerará com maior intensidade em breve – muitas discussões, acarretando a grande probabilidade de impunidade especialmente no que tange à lavagem de dinheiro, o que importará em violação, pelo Brasil, de relevantes compromissos internacionais assumidos na repressão de tão graves condutas criminosas.
Sob a ótica do direito comparado, reportamos a Enrique Bacigalupo47:“aunque se considerara que los hechos imputados a un mismo autor pueden ser formalmente subsumidos bajo los tipos del delito fiscal y del blanqueo de dinero, ambos tipos concurren em la forma de un concurso (aparente) de normas que excluye el delito del blanqueo por ser un hecho posterior copenado de acuerdo com el art. 8.3, CP”.
Entretanto, todas as premissas utilizadas pelo doutrinador espanhol estão calcadas na circunstância elementar (e diversa do sistema brasileiro e da grande maioria dos demais países que adotam o sistema de leis de terceira geração) de que, por expressa disposição legal não se admite na Espanha o delito de autolavagem (selflaudering).
De fato, como ainda refere Enrique Bacigalupo48 “no es imposible que concurran el delito fiscal (art. 305, CP) y el de blanqueo de dinero (art. 301, CP). Pero, lo que non es posible es condenar a una persona por ambos delitos cuando ella es quien, a la vez, realiza alguna de las acciones del art. 301 CP sobre el dinero correspondiente a la cuota de un impuesto que omitió declarar a la Hacienda Pública”.
Na Itália, o Código Penal faz a reserva da autolavagem (art. 648, bis). Também em Portugal (art. 368-A) faz-se referência direta à punição da autolavagem como concurso de crimes.
Não tardará porém para vermos posicionamentos de doutrinadores brasileiros (quando não ocultando essa circunstância fundamental) defendendo a necessidade de não punição da lavagem nestes casos por questão de conveniência ou até de “justiça”.
Nada obstante, espera-se que a Corte Suprema brasileira mantenha coerência com o que já assentou no julgamento da Ação Penal n. 470, ao reconhecer expressamente a possibilidade de autolavagem. Relembre-se, por exemplo, o que dito pelo Ministro Cezar Peluso: “se, por exemplo, alguém que recebe um dinheiro ilicitamente, ao invés de usá-lo por si, incumbe outrem de, em nome deste, adquirir-lhe bem ou bens, caso em que pratica duas ações típicas distintas, a do primeiro crime, consistente em receber ilicitamente, e a do segundo, que é a ocultação do produto do primeiro crime. Isso é autolavagem” (fl. 2.173 do acórdão). Na mesma linha, as ponderações do Ministro Ayres Britto, ao dizer que a legislação brasileira “não proíbe a incriminação do agente responsável pelo delito antecedente, muito menos exige que o suposto ‘lavador’ do dinheiro espúrio haja sido denunciado por formação de quadrilha (artigo 288 do CP). É dizer: a lei não vedou expressamente a chamada ‘autolavagem’, sendo possível, portanto, imputar à mesma pessoa a responsabilidade tanto pela lavagem de dinheiro quanto pela infração antecedente, caso haja concorrido para ambos os crimes. Noutros termos: sempre que o autor do delito antecedente se utilizar de manobras (operações financeiras e comerciais, por exemplo) para conferir aos valores obtidos com o crime anterior a aparência de licitude, incorrerá no delito do art. 1º da Lei 9.613/98” (fl. 4.506 do acórdão).
11. Conclusões: da necessidade de revogação da Súmula Vinculante n. 24 e a modulação dos efeitos decorrentes desta (futura) alteração jurisprudencial.
Como destacado, a interpretação consolidada na Súmula Vinculante n. 24 impõe que, com o reconhecimento da existência do crime somente a partir do exaurimento da esfera administrativa, é desse momento que se conta o marco prescricional, presente o disposto no art. 111, I, do CP (A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: I – do dia em que o crime se consumou).
Nessa linha, reiterando, o entendimento dos tribunais: […] Se o delito sequer havia se consumado antes do esgotamento da via administrativa, impossível se cogitar do início do curso do prazo prescricional, como pretendido na inicial do mandamus. Entre a data da constituição definitiva do crédito tributário e o dia em que foi recebida a segunda denúncia ofertada nos autos, não transcorreu período suficiente para o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva estatal. […] (HC n. 233.856–SP, STJ, 5ª Turma, julgado em 15.10.2013, publicado no DJ em 23.10.2013); […] Enquanto não se constituir, definitivamente, em sede administrativa, o crédito tributário, não se terá por caracterizado, no plano da tipicidade penal, o crime contra a ordem tributária, tal como previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/90. Em consequência, e por ainda não se achar configurada a própria criminalidade da conduta do agente, sequer é lícito cogitar-se da fluência da prescrição penal, que somente se iniciará com a consumação do delito (CP, art. 111, I). Precedentes (HC n. 86.032-RS, 2ª Turma, STF, julgado em 4.9.2007, publicado no DJ em 12.6.2008).
Parece que já visualizando todos os problemas que decorreriam, calha uma vez mais transcrever o que disse o Ministro Joaquim Barbosa ao discordar da edição da referida súmula vinculante: em princípio, entendo que a matéria penal não é vocacionada à sumulação em caráter vinculante. Com o passar do tempo, e em razão da multifacetariedade intrínseca do fenômeno criminal, haverá, sem dúvida, uma tendência inevitável à obsolescência da súmula e à consequente necessidade, para esta Corte, de revogá-la ou de proceder às sucessivas clarificações”.
O cancelamento da Súmula Vinculante n. 24, em sendo acolhido, tal como ora defendido, terá como efeito o reconhecimento, para o futuro, de que os crimes ocorrem com a ação ou omissão (ainda que outro seja o momento do resultado), presente a Teoria da Atividade (art. 4º do CP).
Como consequência, a prescrição, nos moldes do art. 111, I, do CP, será (como sempre foi até a edição do comando sumulado) contada a partir desse momento, da ação ou omissão.
A circunstância demanda que, em sendo cancelada a súmula, como ora se defende, é fundamental que se confira modulação dos efeitos de modo a evitar a aplicação retroativa de tal entendimento, pois, do contrário, certamente seriam fulminadas todas as ações penais em andamento pela prescrição retroativa, já que o marco prescricional seria em momento bem anterior ao exaurimento da discussão na esfera administrativa.
A segurança jurídica (agora sim há se falar em segurança jurídica) impõe que não se confira efeito retroativo à modificação da compreensão do momento consumativo do crime, fixado unicamente por interpretação jurisprudencial, com reflexos fundamentais na questão da prescrição.
Não é nova a situação ora arguida, já tendo o Supremo Tribunal Federal enfrentando situações em que foi efetuada a modulação dos efeitos. Colhem-se algumas situações de relevo já enfrentadas:
[…] 1. A Suprema Corte, ao julgar os embargos de declaração opostos na ADI nº 2.797/DF, modulou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade do § 1º do art. 84 do Código de Processo Penal, com a redação conferida pela Lei nº 10.628/02, assentando sua eficácia somente a partir de 15/9/2005 (data do julgamento da ADI), preservando-se, assim, a validade dos atos processuais praticados em ações de improbidade, inquéritos ou ações penais ainda em curso contra ex-ocupantes de cargos com foro específico. 2. Não há, por consequência, como reconhecer-se a ilegalidade da modulação empreendida, a pretexto de que a convalidação dos atos praticados perante o Tribunal estadual importaria em violação dos direitos individuais do paciente, situação essa devidamente considerada e repelida diante na decisão modulatória transversamente impugnada. 3. Recurso não provido (RHC n. 117.809-SC, STF, 1ª Turma, julgado em 17.12.2013, publicado no DJ em 28.2.2014).
[…] Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada parcialmente procedente. Modulação dos efeitos temporais da decisão.
[…] Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada parcialmente procedente pelo Plenário para declarar a nulidade, com redução de texto, dos seguintes dispositivos e termos da Lei estadual de Alagoas nº 6.806 de 2007: […] Ação Direta de Inconstitucionalidade parcialmente procedente, ainda, para o fim de conferir interpretação conforme à Constituição: […] Modulação dos efeitos temporais da decisão, na forma do art. 27 da Lei 9.868/99, para que os dispositivos objurgados não produzam efeitos sobre os processos com sentenças já proferidas e sobre os atos processuais já praticados, ressalvados os recursos e habeas corpus pendentes que tenham como fundamento a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei Estadual ora em exame, ressaltando-se, ainda, que os processos pendentes sem prolação de sentença devem ser assumidos por juízes designados com a observância dos critérios constitucionais, nos termos do presente aresto, fixado o prazo de noventa dias para o provimento dos cargos de juízes da 17ª Vara Criminal da Capital. (ADI n. 4.414-AL, STF, Plenário, julgado em 31.5.2012, publicado no DJ em 14.6.2013).
[…] O art. 27 da Lei nº 9.868/99 tem fundamento na própria Carta Magna e em princípios constitucionais, de modo que sua efetiva aplicação, quando presentes os seus requisitos, garante a supremacia da Lei Maior. Presentes as condições necessárias à modulação dos efeitos da decisão que proclama a inconstitucionalidade de determinado ato normativo, esta Suprema Corte tem o dever constitucional de, independentemente de pedido das partes, aplicar o art. 27 da Lei nº 9.868/99. […] Embargos declaratórios conhecidos e providos para esclarecer que a decisão de declaração de inconstitucionalidade da Lei distrital nº 3.642/05 tem eficácia a partir da data da publicação do acórdão embargado (Embargos de Declaração na ADI 3.601-DF, STF, Plenário, julgado em 9.9.2010, publicado no DJ em 14.10.2010).
Recurso extraordinário. Municípios. Câmara de Vereadores. Composição. Autonomia municipal. Limites constitucionais. Número de vereadores proporcional à população. CF, artigo 29, IV. Aplicação de critério aritmético rígido. Invocação dos princípios da isonomia e da razoabilidade. Incompatibilidade entre a população e o número de vereadores. Inconstitucionalidade, incidenter tantum, da norma municipal. Efeitos para o futuro. Situação excepcional.
[…] Inconstitucionalidade, incidenter tantum, da lei local que fixou em 11 (onze) o número de Vereadores, dado que sua população de pouco mais de 2.600 habitantes somente comporta 09 representantes. Efeitos. Princípio da segurança jurídica. Situação excepcional em que a declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria grave ameaça a todo o sistema legislativo vigente. Prevalência do interesse público para assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionalidade. Recurso extraordinário conhecido e em parte provido (RE n. 197.917-SP, STF, Plenário, julgado em 6.6.2002, publicado no DJ. Em 7.5.2004).
Como se vê, em inúmeras situações, inclusive tratando dos postulados relacionados ao Juiz Natural, a Suprema Corte acabou modulando os efeitos do que decidido, tudo como forma de evitar a insegurança jurídica, circunstância que pode ser invocada ao caso em tela.
De fato, no que se refere ao marco inicial da produção dos efeitos da súmula vinculante, a Lei n. 11.417/2006 aplicou a mesma técnica de modulação temporal dos efeitos: “Art. 4º No procedimento para edição de súmula, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir de data certa”.
Assim, a Lei n. 11.417/2006 autoriza a modulação da eficácia da súmula vinculante para o futuro, de acordo com a Constituição.
Não se olvide que o legislador conferiu à Súmula Vinculante o mesmo tratamento dado à Ação Direta de Inconstitucionalidade, à Ação Direta de Constitucionalidade (art. 102, § 2º, da CF/88) e à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (§ 1º).
Nas declarações de inconstitucionalidade, o art. 27 da Lei n. 9.868/1999 e o art. 11 da Lei n. 9.882/1999 autorizam a modulação dos efeitos para fixar a data do trânsito em julgado do acórdão ou outro momento para início de sua eficácia. É assim porque a declaração de inconstitucionalidade implica a nulidade da lei e gera efeitos ex tunc, que é a regra. Apenas a modulação dos efeitos poderá implicar a alteração desse parâmetro pelo STF, para fixar a eficácia ex nunc.
Em síntese, no sistema jurídico brasileiro tem-se desenvolvido técnicas de interpretação constitucional que permitem a suspensão dos efeitos da lei em caráter excepcional, até que a decisão definitiva seja prolatada, além de possibilitar que o STF module os efeitos de suas decisões, por meio de técnicas de declarações parciais ou totais de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, efeitos ex tunc, ex nunc, pro futuro e interpretação conforme a constituição.
A súmula vinculante, por sua vez, tem eficácia ex nunc, em regra, podendo, o STF, modular os efeitos dessa declaração para fixar o início da eficácia do enunciado após determinado período de tempo. Daí a razão pela qual o cancelamento da súmula também terá o mesmo efeito ex nunc.
A referida lei não autoriza a conclusão de que o efeito ex tunc seria regra em decorrência da edição da súmula vinculante, ainda que ela trate de aparente declaração de inconstitucionalidade.
Assim, o cancelamento de súmula vinculante gera efeitos ex nunc, podendo ser modulados os efeitos conforme a existência de razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.
No caso em testilha, uma vez acolhido a tese (urgente, para nós) de cancelamento da Súmula Vinculante 24, os efeitos serão ex nunc. Vale dizer, a partir do cancelamento não vigorará mais o entendimento de que o crime de sonegação fiscal necessita da constituição definitiva do crédito tributário na esfera administrativa para que se consume o fato típico.
Consequência imediata, de outra parte, será que a prescrição dos crimes contra a ordem tributária contar-se-á a partir da data do fato da sonegação fiscal (ação ou omissão), e não mais da data da constituição definitiva do crédito tributário (Teoria da Atividade, primeiro fundamento antes desenvolvido). Entrementes, os fatos anteriores ao cancelamento da aludida súmula terão a prescrição a partir do esgotamento da esfera administrativa.
Do contrário, se conferido efeito retroativo ao cancelamento, aí sim haverá insegurança jurídica, notadamente a prescrição de inúmeros feitos criminais pela alteração da compreensão (equivocada na origem, diga-se) de como ocorre o crime e do marco inicial de sua fluência (art. 111, I, do CP). E para tanto essencial não se esquecer que nunca a legislação previu como necessário para a existência do crime o prévio exaurimento da esfera administrativa. Tudo decorreu, como já demonstrado, por indevida e insustentável criação jurisprudencial. O retorno ao status quo ante precisa preservar a validade do que produzido nesse interregno sob as (embora tortas) linhas da súmula sob exame.
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1 FISCHER, Douglas. SÚMULAS VINCULANTES –requisitos, análise crítica e (re)cautelas indispensáveis à edição em matéria penal e processual penal. 2014. Porto Alegre: Verbo Jurídico.
2 NOGUEIRA, Gustavo Santana. Das súmulas vinculantes. In Reforma do Judiciário – primeiras reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: RT, 2005. p. 274.
3FISCHER, Douglas. SÚMULAS VINCULANTES –requisitos, análise crítica e (re)cautelas indispensáveis à edição em matéria penal e processual penal. 2014. Porto Alegre: Verbo Jurídico, p. 53-5.
4Hungria, Nelson. Comentários ao Código Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, v. 1, t. 22, p. 28-29.
5Bettiol, Giuseppe. Direito Penal, v. 1, p. 240, 243-244.
6É o caso: a sonegação do tributo encontra-se em relação de dependência causal com a ação do agente criminoso, de modo que não pode ser condição objetiva de punibilidade.
7 EISELE, Andreas. A Súmula Vinculante nº 24 do STF. Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, v. 8, n. 18, jan./jun. 2011, p. 16.
8 […] Na sistemática do Código Penal, o tempo do crime é o momento da ação ou omissão, ainda que seja outro o do resultado. […] (RHC n. 29.499/RS, 6ª Turma, unânime, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 21.3.2013, publicado no DJ em 2.4.2013)
9Neste ponto pode-se constatar que a jurisprudência e a doutrina realmente ainda não entenderam o que estão falando: há quem diga que o crime do art. 1º, V – por não estar elencado na súmula – seria formal. Veja-se exemplificativamente: “[…] Nos termos da jurisprudência desta Corte, o crime descrito no art. 1°, V, da Lei n. 8.137/1990 ostenta natureza formal, ao contrário das condutas elencadas nos incisos I e IV do referido dispositivo, e a sua consumação prescinde da constituição definitiva do crédito tributário. Por consectário, o prévio exaurimento da via administrativa não configura condição objetiva de punibilidade”. […] (RHC n. 31.062 – DF, STJ, 5ª Turma, unânime, julgado em 2.8.2016, publicado no DJ em 12.8.2016)
10I – “A existência de ação cível anulatória do crédito tributário não impede a persecução penal dos agentes em juízo, em respeito à independência das esferas cível e criminal. Precedentes. Ainda que obtido êxito no pedido de antecipação de tutela na seara cível, a fim de impedir a inscrição dos agentes em dívida ativa, condição de procedibilidade da execução fiscal, inadmissível o trancamento da ação penal, notadamente quando a decisão a eles favorável não afetou diretamente o lançamento do tributo devido, que, até decisão definitiva em contrário, não pode ser considerado nulo ou por qualquer outro modo maculado” (RHC n. 21.929/PR, Quinta Turma, Rel. Min. Jane Silva – Desembargadora Convocada do TJ/MG -, DJU de 10/12/2007). II – Não se pode, na hipótese, tomar o fato de existir ação anulatória de débito fiscal, ainda que como questão prejudicial heterogênea facultativa (art. 93 do Código de Processo Penal) da questão penal, porquanto, até aqui, o lançamento do tributo não foi atingido. III – A prejudicial heterogênea não obriga a suspensão da ação penal. Vale dizer, não obsta automaticamente a persecutio criminis, ex vi do art. 93 do CPP. Recurso ordinário desprovido. (RHC n. 57.238 – RS, STJ, 5ª Turma, unânime, julgado em 2.8.2016, publicado no DJ em 10.8.2016)
11EISELE, Andreas. A Súmula Vinculante nº 24 do STF. Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, v. 8, n. 18, jan./jun. 2011, p. 25.
12Eisele, Andreas. Crítica ao direito penal tributário brasileiro. Blumenau: Acadêmica, 2007.
13[…] Segundo o entendimento da Corte, “a consumação do crime tipificado no art. 1º da Lei 8.137/90 somente se verifica com a constituição do crédito fiscal, começando a correr, a partir daí, a prescrição” (HC nº 85.051/MG, Segunda Turma, Relator o Ministro Carlos Velloso, DJ de 1º/7/05). Esse entendimento encontra-se cristalizado no enunciado Súmula Vinculante nº 24 da Corte. […] (Agrago Regimental no Habeas Corpus n. 126.072-RS, Rel. Min. Dias Tóffoli, julgado em 2.2.2016, publicado no DJ em 9.3.2016)
[…] 1. Segundo a jurisprudência desta Corte Superior, o delito de sonegação de contribuição previdenciária, por ser material, consuma-se somente com a constituição definitiva do crédito tributário na instância administrativa, razão pela qual o termo inicial para contagem do prazo prescricional é a data da constituição definitiva do referido crédito no âmbito administrativo. […](AgRg nos EDcl no Ag em REsp n. 1.265.734 – RS, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 6.12.2018, publicado no DJ em 14.12.2018)
[…] 4. Não há falar em prescrição da pretensão punitiva, uma vez que, nos termos da Súmula Vinculante n. 24, “O termo inicial da prescrição dos crimes materiais tributários é a data do lançamento definitivo, após o encerramento do procedimento administrativo-fiscal, visto que, somente a partir daí, consoante entendimento do Supremo Tribunal Federal, está caracterizado o elemento normativo do tipo penal e preenchida a condição objetiva de punibilidade” […] (Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.874.851/SC, STJ, 6ª Turma, unânime, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 20.10.2020, publicado no DJ em 26.10.2020)
14 Salvo se descontado ou cobrado de terceiros: art. 2º, II, Lei 8.137/90, mas que não era a hipótese discutida no caso invocado.
15 “Finalmente, cumpre tratar do distinguishing, um trabalho permanente de advogados e juízes norte-americanos. A corte, ainda que inferior, pode argumentar que as diferenças fáticas existentes entre os casos examinados e comparados não são meramente acessórias, mas que supõem uma mutação do suporte fático do precedente invocado. Deste modo, a corte pode elidir a vinculação do precedente argumentando que ‘a decisão invocada não é um precedente para o caso novo’. Nesta operação, a corte utiliza todos os matizes e todas as circunstâncias que permitam estabelecer a distinção e assentar a conclusão de que se trata de um suporte fático ou de uma tese jurídica diversos dos que serviram de base para o precedente invocado. Sem dúvida, com a valorização da jurisprudência no Brasil e com a vivência prática das súmulas vinculantes, algumas dessas técnicas de interpretação e aplicação de julgados terão de ser utilizadas, com as necessárias adaptações. […] É certo, por outro lado, que a súmula vinculante é sempre referida às decisões reiteradas do Supremo Tribunal Federal, o que reduz sobremaneira as possibilidades de múltiplas interpretações. O comum é que a súmula tenda a comportar apenas uma interpretação. No entanto, não se pode afastar completamente que possam surgir múltiplas interpretações. Nesses casos, será importante considerar alguns mecanismos conhecidos nos sistemas jurídicos da common law, como o distinguishing. Haverá casos em que o juiz dirá, não que não está aplicando a súmula, mas que ela não tem aplicação naquele caso, que seria, de alguma forma, diverso dos paradigmas que deram lugar à edição da súmula vinculante”. JANSEN, Rodrigo. A súmula vinculante como norma jurídica. Revista dos Tribunais, v. 838, p. 42, Ago/2005.
16A propósito, vide anotações sobre o que denominamos de “hermenêutica das ementas” em excelente obra Teoria e prática da pesquisa em Jurisprudência, de Lucivaldo Vasconcelos Barros, Editora Forum, 2016, p. 139.
17 FISCHER, Douglas. A impunidade: sonegação fiscal e exaurimento da esfera administrativa – Ainda sobre os problemas derivados dos precedentes do STF no HC nº 81.611-SP e seu confronto com o que decidido no HC nº 90.795-PE”. Revista Direito e Democracia. Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, vol. 9, n. 1, jan./jun.2008, p. 184.
18 FISCHER, Douglas. Como a jurisdição pode propiciar maior impunidade em crimes tributário-fiscais. Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, v. 19, p. 52-73, 2011.
19Em sentido contrário (e admitindo investigação sem indício do crime, que só existiria após o exaurimento da esfera administrativa, embora o equívoco de chamar novamente de “condição objetiva de punibilidade”), recente precedente do STJ: “Não prospera a afirmação de nulidade da ação penal em razão da instauração de inquérito policial antes da constituição definitiva do crédito tributário, quando evidenciado que antes da ação penal o procedimento administrativo fiscal foi encerrado com o lançamento definitivo do tributo. Tal mácula não é capaz de contaminar a ação penal, uma vez que a condição objetiva de punibilidade se encontra cumprida” (RHC n. 28.621-CE, STJ, 6ª Turma, julgado em 18.2.2016, publicado no DJ em 8.3.2016).
20 Roemer destaca que, quando um indivíduo incorre numa falta e infringe determinado regulamento e não é castigado, se perde o objetivo social do Estado, e a população recebe um sinal de que é possível “passar por cima da lei” (Roemer, Andrés. Economía del crimen. Ciudad de México: Limusa, 2001, p. 257).
21 Fischer, Douglas. Artigo 34 da Lei n° 9.249/95 – Parcelamento não é causa de extinção da punibilidade. RT, n. 809, p. 438, mar. 2003. Fischer, Douglas. Delinquência econômica e Estado Social e Democrático de Direito. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006.
22 FISCHER, Douglas. Delinquência Econômica e Estado Social e Democrático de Direito. 2006. Porto Alegre: Verbo Jurídico. p. 217-219.
23 PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 433, 435-6, 457 e 490.
24 DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. 2 ed. São Paulo: Saraiva,2002, p.98-9.
25 BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais ? ‘Reimp. Coimbra: Almedina, 1994, p. 77.
26 DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 85.
27 RODRIGUES, Anabela Miranda. Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria fiscal. Direito Penal econômico e europeu: textos doutrinários. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 481.
28STRECK, Lênio. Da proibição de excesso (übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (untermassverbot):de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, n. 2, p. 243-284, 2004.
29 Figueiredo Dias, Jorge de; Costa Andrade, Manuel da. O crime de fraude fiscal no novo direito penal tributário português. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 4, n. 13, p. 62, jan./mar. 1996.
30Silva Sánchez, Jesús-Maria. El nuevo escenario del delito fiscal en España. Barcelona: Atelier, 2005, p. 49.
31Righi, Esteban. Derecho penal economico comparado. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, 1991, p. 280.
32Roemer, Andrés. Economía del crimen. Ciudad de México: Limusa, 2001, p. 257.
33Fischer, Douglas. Delinquencia econômica e Estado Social e Democrático de Direito. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006.
34Silva Sánchez, Jesús-Maria. Eficiência e direito penal. São Paulo: Manole, 2004, p. 26. (Coleção Estudos de Direito Penal, 11).
35Revista do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial,ano 5, n. 10, ago. 2008.
36 Impende referir que, em 18.6.2014, foi editada a Lei nº 12.966 (que alterou as Leis nos 12.715, de 17 de setembro de 2012, que institui o Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores – INOVAR-AUTO, 12.873, de 24 de outubro de 2013, e 10.233, de 5 de junho de 2001; e dá outras providências) repristinando a possibilidade de pagamento parcelado dos débitos tributários, inclusive aqueles decorrentes de práticas criminosas (art. 2º e § 1º) e a consequente extinção da punibilidade pelo pagamento dos tributos (art. 69, Lei 11.941).
37Mendes, Gilmar Ferreira. Os direitos fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional. Revista Jurídica Virtual, Brasília, v. 2, n. 13, jun. 1999. Também em Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional, n. 8, p. 131-142, 2004.
38Bernal Pulido, Carlos. El derecho de los derechos. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2005, p. 126.
39Bernal Pulido, Carlos. El derecho de los derechos. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2005, p. 139-142.
40BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crime Organizado e Proibição de Insuficiência. 2010. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 214.
41 Em que se sustenta a inconstitucionalidade dos arts. 67, 68 e 69 da Lei 11.941 por violação de vários cânones constitucionais, raciocínio também desenvolvido quase na mesma extensão em relação ao art. 9º, §§ 1º e 2º, Lei 10.684, pendente de julgamento no RE nº 462.790-RS.
42FISCHER, Douglas. Como a jurisdição pode propiciar maior impunidade em crimes tributário-fiscais. Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, v. 19, p. 52-73, 2011.
43Há tipo penal que prevê um dos maiores absurdos: a extinção da punibilidade pela mera confissão (art. 337-A, § 1º, CPP), algo, smj, inexistente em legislações comparadas.
44BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crime Organizado e Proibição de Insuficiência. 2010. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 240.
45 “Crimes Fiscais – a lista de crimes acessórios da lavagem de dinheiro foi expandida para incluir os crimes fiscais. Isso fará com que os frutos de crimes fiscais estejam dentro do escopo dos poderes e autoridades usados para combater a lavagem de dinheiro, o que contribuirá para uma melhor coordenação entre PLD e autoridades fiscais, além de remover potenciais obstáculos à cooperação internacional em se tratando de crimes fiscais. In http://www.coaf.fazenda.gov.br/pld-ft/novos-padroes-internacionais-de-prevencao-e-combate-a-lavagem-de-dinheiro-e-ao-financiamento-do-terrorismo-e-da-proliferacao-as-recomendacoes-do-gafi-1 Acesso em 22.ago.2016.
46 Inclusion of Tax Crimes as a Predicate Offence for Money Laundering(New) 9.The responses received from the private sector on the inclusion of tax crimes as predicate offences were mixed, with a number of financial representative bodies supporting the proposal in general, while many representative bodies, including DNFBPs’ representative bodies, indicating concerns or rejecting the proposal. The concerns relate in particular to: (i) the scope of tax crimes, with a strong preference indicated that only serious tax crimes should be included; (ii) the lack in expertise and the inherent difficulty for the private sector in detecting tax crimes; and (iii) the need for a level playing field. 10. The FATF had considered these concerns and the need to address the growing threat over the laundering of tax crimes. The change is thus calibrated to focus on the inclusion of serious tax crimes, and is similar to the approach that the FATF has taken consistently in defining the minimum range of predicate offences for money laundering as being serious offences. Countries would, therefore, have some flexibility with respect to the precise
offences to be included in relation to its own circumstances.
Acesso em 22.ago.2016.
47 BACIGALUPO, Enrique. Sobre el concurso del delito fiscal y blanqueo de dinero, Civitas, 2012, p. 13.
48BACIGALUPO, Enrique. Sobre el concurso del delito fiscal y blanqueo de dinero, Civitas, 2012, p. 51.