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O Direito e desejo; ética e moral, uma distinção necessária
Rodrigo da Cunha Pereira
11/12/2020
A organização jurídica da família sempre foi, e sempre será, contaminada, e até determinada, por uma moral em cuja essência está a sexualidade. Daí a necessidade de falar e entender um pouco sobre isto. A primeira Lei, fundante do sujeito e da cultura é essa lei de Direito de Família, que é de origem sexual. A sexualidade interessa ao Direito de Família na medida em que ela passou a ser compreendida na ordem do desejo. E o desejo é a força motriz do Direito de Família. Embora o Direito Penal tipifique os crimes sexuais, focalizando-os na ordem da genitalidade (arts. 213 e segs.), a sexualidade se expressa no Direito de várias outras formas.
Sexo, casamento e reprodução são o tripé e esteio do Direito de Família, e é a partir daí que todo o sistema jurídico para a família se estrutura e se organiza. Infidelidade, investigações de paternidade, divórcio, violência doméstica, abuso sexual, novas conjugalidades etc. são os ingredientes do Direito de Família e têm conteúdo sexual, ou melhor, são de ordem da sexualidade.
Desde que Freud revelou ao mundo a existência do inconsciente, passou-se a compreender a sexualidade na ordem do desejo. Assim, a sexualidade humana foi ressignificada. E é nesta dimensão do desejo que se instalou uma moral-sexual e se organizou juridicamente, misturando-se a preceitos religiosos, à família patriarcal, relações de poder e a dominação de um gênero sobre o outro. O Direito, uma sofisticada técnica de controle das pulsões, legitimou ou ilegitimou determinadas categorias de pessoas, inclusive e, principalmente, pelo controle da sexualidade feminina. É assim que o sexo legítimo só era possível dentro do casamento.
Filhos ilegítimos, adulterinos, incestuosos, famílias ilegítimas etc. são expressões que traduzem a moral sexual de uma determinada sociedade e ganham registros nos textos jurídicos. Esta moral sexual condutora da organização jurídica sobre a família é tão forte e imperativa que nem mesmo era possível refletir sobre suas contradições históricas. Por exemplo: o homem sempre foi instigado e estimulado ao sexo, enquanto a mulher era instigada ao pudor. Ora, como poderia o homem praticar o sexo, como era instigado desde a infância, se à mulher eram proibidos o prazer e o sexo fora do casamento? Com quem haveria o homem de se deitar? Só restaria ser com prostituta ou com outros homens. Contudo, tanto a prostituição quanto a homossexualidade sempre foram condenados pela ordem jurídica.
Devemos entender a sexualidade em seu sentido mais amplo e profundo para não reduzi-la apenas à genitalidade, que seria um empobrecimento da compreensão das relações humanas. Sexualidade, que vai muito além do sexo, como tão bem já nos revelou Freud, é uma dimensão presente na totalidade da existência humana. É todo um sistema de relações, afetos e fracassos. A energia libidinal, é o que dá vida à vida. Faz-nos trabalhar, produzir, criar e descansar, amar e sofrer, ter alegria, prazer e dor. É o desejo. Este começa com a vida, termina com a morte e sustenta-nos por toda vida. Começou a vida, instalou-se o desejo. Acabou o desejo, acabou-se a vida. É ele que mantém vivo o “arco da promessa”.
Se a sexualidade é da ordem do desejo, não se pode desconsiderar a existência de um sujeito desejante. Este sujeito desejante é quem pratica atos jurídicos, faz e desfaz negócios, casa, separa, tem filhos, sofre, tem alegria, enfim, emprega sua energia libidinal nas mais variadas formas do viver, e tece os traumas e os dramas familiares.
Associado a essa tentativa de organização jurídica das relações de afeto está o elemento ideológico, que vem, por meio de uma moral sexual, determinando relações de poder e revelando as posições subjetivas dos operadores do Direito. A moral sexual civilizatória adotou o paradigma da moral masculina, na qual as restrições eram feitas, principalmente, às mulheres.
O sistema patriarcal estabeleceu, e estabelece ainda, uma relação de poder entre os gêneros, a partir da divisão sexual do trabalho. Esta dominação de um sexo sobre o outro deixou marcas em nossa cultura que, até hoje, espalham seus significados e significantes (para usar uma expressão da linguística de Saussure e Lacan). Assim, as palavras vieram significando comportamentos, condutas, e o Direito, absorvendo isto, passou a expressá-las em seus textos legislativos.
A história já nos ensinou que quem quer exercer o poder busca um sistema de legitimação. O Professor de filosofia espanhol, José Antônio Marina, em seu livro é assertivo ao fazer essa conexão da sexualidade, poder e dominação:
“as morais sexuais foram usadas com frequência para impor interesses particulares. São morais que emergem de sociedades patriarcais, nas quais o homem quer fazer constar o seu domínio e assegurá-lo, ou sociedades teocráticas em que as igrejas tentam regular esse tempestuoso universo”.
Até o advento da Constituição de 1988, os filhos havidos de uma relação extraconjugal não podiam ser registrados com o nome do pai. Para o Direito estes filhos “não existiam”. Esta hipocrisia era sustentada em nome de uma moralidade pública, e dizia-se que tinha a finalidade de evitar a desestruturação ou a destruição da família. Fazia-se então a investigação da paternidade apenas para fins de alimentos. Aliás, esta e qualquer outra ação de investigação de paternidade girava sempre em torno da conduta sexual da mulher. Interessava saber, nesses processos judiciais, com quem ou com quantos homens ela teve relação à época da concepção do filho (investigante). Do suposto pai, pouco ou quase nada interessa de sua vida sexual. Apenas com o surgimento dos exames em DNA, que o eixo moral se deslocou para um eixo mais científico.
A história do Direito, e em particular do Direito de Família, é recheada e marcada por uma história de exclusões: mulheres assujeitadas aos homens, famílias ilegítimas, filhos ilegítimos etc. Estas exclusões foram sustentadas por um discurso moralizante e de uma moral sexual civilizatória, como diz Freud. Os juízos particularizados e inseridos em uma ideologia para sustentação do poder acabaram por construir um Direito de Família marcado por injustiças.
Foi em nome dessa moral (sexual) e dos bons costumes que muita injustiça já se fez e ainda se faz. Por exemplo, a filha “desonesta”, isto é, que não tinha sua sexualidade controlada pelo pai ou pelo marido, podia ser excluída da herança; discutia-se ainda, até recentemente (2010) quem era o culpado pelo fim da conjugalidade; se pessoas do mesmo sexo podiam constituir famílias (2011) etc. Para não continuarmos repetindo as injustiças históricas de ilegitimação de pessoas e categorias, em razão de uma moral sexual e religiosa, é necessário distinguir ética de moral.
Somente um juízo ético universal, despido das particularidades do juízo moral, é que pode nos aproximar do ideal de justiça. Foi o imperativo ético, em detrimento de uma moral sexual que legitimou, a partir da Constituição de 1988, todos os filhos, instalou o princípio do melhor interesse da criança acima dos valores morais, fazendo-nos compreender que as funções maternas e paternas estão desatreladas do comportamento moral-sexual dos parceiros conjugais.
É na ética do cotidiano que o outro é visto, considerado e respeitado em sua integridade e integralidade de sujeito, que se deve assentar a hermenêutica. Distinguir ética de moral é “suspender o juízo” para que se possa ver os sujeitos envolvidos como sujeitos amorais. Para que isto seja possível e para ajudar a viabilizar julgamentos e considerações éticas, acima de valores morais, muitas vezes estigmatizantes e excludentes, é necessário que se recorra à várias fontes do Direito, especialmente aos princípios.
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