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A formação da proteção de dados pessoais no Brasil
Ingo Wolfgang Sarlet
09/12/2020
É muito recente a incorporação do termo “proteção de dados pessoais” ao glossário jurídico brasileiro, o que se deu principalmente na esteira do debate que antecedeu a promulgação da Lei Geral de Proteção de Dados. No entanto, questões que hoje associamos diretamente à proteção de dados não eram, de forma alguma, estranhas à práxis jurídica no País.
Esses fenômenos foram, por muito tempo, associados a questões referentes seja à privacidade, ao direito do consumidor, a outras liberdades individuais, entre outras vinculações – o fato é que é muito recente no Brasil o elemento indutor que, finalmente, organizou em torno da proteção de dados toda uma verdadeira “fenomenologia” jurídica comportada por situações jurídicas nas quais o elemento principal ou determinante diz respeito a um tratamento de dados pessoais.
Entre esses diversos institutos e matérias entre os quais, por muito tempo, a proteção de dados no Brasil foi associada, a mais relevante é o direito à privacidade – como também pela forte ressonância entre os dois institutos. A bem da verdade, até hoje se observa, coloquialmente ou mesmo em literatura especializada, uma certa ambivalência na utilização dos conceitos de privacidade e proteção de dados. Para o que nos interessa, essa ambivalência faz inclusive as vezes de elemento de continuidade entre uma tradição jurídica que reconheceu, regulou e atualizou o direito à privacidade até chegar às portas de um marco regulatório específico para a proteção de dados pessoais.
Dessa forma, uma parte dominante dos temas de proteção de dados no Brasil pode ser lida à luz dessa evolução do direito à privacidade e sua aplicação em situações específicas.
A assimilação da proteção à privacidade pelo direito brasileiro é, de modo geral, linear com a sua progressiva consolidação como um dos direitos da personalidade pela doutrina e jurisprudência, até a sua previsão constitucional30 e sua menção específica no Código Civil de 2002, no art. 21. O efetivo desenvolvimento e aplicação desse direito, no entanto, não chegaram a formular um arcabouço capaz de fazer frente às novas situações e questões que surgiriam com a introdução de novas tecnologias.
Pode-se observar que, no Brasil, o direito à privacidade, mais do que proporcionar uma resposta efetiva aos problemas das novas tecnologias, de certa maneira restou entrincheirado em seu caráter individualista e subjetivo.
Apesar de o direito à privacidade ter introduzido no ordenamento uma série de valores que estão fortemente presentes também na proteção de dados, a dinâmica do desenvolvimento desta última acaba dialogando relativamente pouco com o direito à privacidade e, quase sempre, de forma retórica.
Há alguns aspectos que confirmam a hipótese dessa “estraneidade”. Um deles é o fato de que a dinâmica que inspirou, nos Estados Unidos e em vários países europeus, os debates que levaram às primeiras formulações regulatórias e normativas sobre proteção de dados também repercutiu no Brasil, sem que, de fato, tivesse influenciado doutrinária ou jurisprudencialmente o direito à privacidade. Outro é que essas mesmas dinâmicas acabaram por encontrar ressonância em corpos normativos específicos, como o caso do direito do consumidor, o que, de certa forma, diminuiu a demanda pelo seu tratamento autônomo.
No Brasil, alguns elementos que funcionaram como centelha para a criação de uma sistemática própria para a proteção de dados, apesar de serem igualmente perceptíveis, não tiveram igual desenrolar. De fato, as discussões acerca de dados pessoais sobre cadastros únicos para os cidadãos como o National Data Center, na década de 1970, também se observaram no Brasil,31 embora seu desdobramento não tenha levado ao desenvolvimento de um marco regulatório específico, como foi o caso, principalmente, de alguns países europeus.
No início da década de 1970, em continuidade a discussões sobre um sistema integrado de identificação civil que remonta à década de 1930, foi concebido no Brasil o projeto do Registro Nacional de Pessoas Naturais (RENAPE), que previa a criação de um órgão de abrangência nacional que integraria o Registro Civil de Pessoas Naturais e a Identificação Civil, além da criação de uma base de dados.[32]
O projeto acabou arquivado em 1978, depois de ter suscitado um debate que deixou registros na imprensa[33] e também de certa forma inspirando um projeto de lei, de autoria do Deputado Faria Lima, que “Cria o Registro Nacional de Banco de Dados e estabelece normas de proteção da intimidade contra o uso indevido de dados arquivados em dispositivos eletrônicos de processamento de dados”[34].
O primeiro movimento legislativo no Brasil que fez referência direta às legislações sobre proteção de dados, que, na década de 1970, foram sendo implementadas na Europa e nos Estados Unidos, foi o Projeto de Lei 2.796 de 1980, de autoria da Deputada Cristina Tavares, que “assegura aos cidadãos acesso às suas informações constantes de bancos de dados e dá outras providências”.
O projeto foi arquivado ao final da legislatura, porém a demanda de que fosse dada maior concretude a alguns direitos relacionados à proteção de dados, em especial os direitos de acesso e retificação, foi se intensificando e ressoava com o movimento de redemocratização da década de 1980, vindo a resultar, entre outros, na presença da ação de habeas data na Constituição de 1988.
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[32] VIANNA, Marcelo. Um novo “1984”? O projeto RENAPE e as discussões tecnopolíticas no campo da informática brasileira durante os governos militares na década de 1970. Oficina do Historiador, Porto Alegre, Suplemento especial, eISSN 21783748, I EPHIS/PUCRS, 27 a 29 maio 2014, p. 1148-11171. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/oficinadohistoriador/article/view/18998/12057.
[33] Entre outros, v. ABRANCHES, Carlos A. Dunshee de. Renape e proteção da intimidade. Jornal do Brasil, 19 jan. 1977, p. 11
[34[ Projeto de Lei 4.365 de 1977, de autoria do Deputado Faria Lima. Diário do Congresso Nacional, ano XXXII, n. 137, p. 79, 8 nov. 1977.