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O diálogo entre a Lei de Improbidade Administrativa e a Lei Anticorrupção Empresarial
Landolfo Andrade
10/06/2020
A Lei n. 8.429/1992, denominada Lei de Improbidade Administrativa (LIA), vem regulamentar o art. 37, § 4º, da Constituição Federal. Trata-se de diploma que define e classifica os atos de improbidade administrativa em três modalidades distintas (enriquecimento ilícito, lesão ao erário e atentado contra os princípios da Administração Pública), cominando-lhes sanções políticas, civis e administrativas.
Perseguindo o mesmo intuito moralizante, a Lei 12.846/2013 – conhecida pelo epípeto Lei Anticorrupção Empresarial (LAE) – combate os atos lesivos à Administração Pública, nacional ou estrangeira, praticados em benefício ou no interesse de pessoa jurídica de direito privado, cominando-lhes sanções administrativas e civis.
Sabe-se que os bens jurídicos tutelados por ambos os diplomas são muito semelhantes, com destaque para a defesa do patrimônio público e dos princípios da Administração Pública. Por outro lado, muitas das condutas consideradas ilícitas para os fins da LIA, também o são para os fins da LAE (ex.: fraude à licitação). Tem-se, assim, uma zona de coincidência entre os objetos tutelados pela Lei de Improbidade Administrativa e pela Lei Anticorrupção Empresarial.
Nesse cenário, é natural que surjam dúvidas sobre a escorreita aplicação dessas normas.
Wallace Paiva Martins Júnior, por exemplo, ao cotejar as Leis 8.429/1992 e 12.846/2013, descarta a possibilidade de aplicação simultânea dos dois diplomas. Para o autor, as diferentes instâncias de responsabilização se excluem: ou há improbidade administrativa decorrente de conduta ilícita de agente público, hipótese em que só incide a LIA, por força do princípio da especialidade, ou há prática de ato lesivo à Administração Pública resultante de comportamento ilícito de pessoa jurídica de direito privado, hipótese só alcançada pela LAE. Essa solução, conclui Wallace, resolve o problema da semelhança entre algumas sanções previstas nos dois diplomas, caso da multa, do perdimento de bens e da proibição de receber incentivos, fiscais ou creditícios do Poder Público, cuja incidência cumulativa importaria em bis in idem.[i]
Não nos parece ter sido essa a intenção do legislador. Afinal, adotado esse entendimento, no sentido de que os sistemas de responsabilização são excludentes, chegaríamos à seguinte incoerência: se uma empresa fraudar um processo licitatório, sem contar com o auxílio de um agente público, ficará sujeita às severas sanções da LAE, entre as quais merecem destaque a dissolução compulsória, que equivale à pena de morte da pessoa jurídica, e a pena de multa, que pode comprometer até 20% do seu faturamento bruto. Agora, se essa mesma empresa contar com o auxílio de um agente público para fraudar o processo licitatório, o que revela maior reprovabilidade em sua conduta, não será alcançada pelas severas sanções da LAE, a ela se aplicando as sanções da LIA, claramente mais brandas, até mesmo porque concebidas com foco na punição dos agentes públicos.
Definitivamente, a tese da exclusão dos sistemas não é a melhor solução para a superação das aparentes incompatibilidades entre a LIA e a LAE. Muito ao contrário, considerando o escopo da LAE, que busca completar o microssistema de defesa do patrimônio público, entendemos que sua aplicação pode ser concomitante à aplicação da LIA.
Em reforço a essa linha interpretativa, a LAE estabelece que sua aplicação não impede a imposição de cominações decorrentes de atos de improbidade administrativa (art. 30, I). Da mesma forma, A LIA dispõe em seu artigo 12 que a aplicação das sanções nele previstas não exclui a aplicação de outras sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica[ii].
Os dois diplomas em análise, portanto, reconhecem expressamente que as instâncias de responsabilização são autônomas. Assim, mostra-se perfeitamente possível a aplicação concomitante dos dois diplomas, com a consequente cumulação das sanções previstas na LIA e na LAE, sem que isso importe em ofensa ao princípio do non bis in idem. Esse é o entendimento, inclusive, esposado pela doutrina majoritária[iii].
A rigor, quando a LAE estabelece a possibilidade de responsabilização objetiva da pessoa jurídica de direito privado nas esferas cível e administrativa e ressalva a independência dessas instâncias em relação aos atos de improbidade administrativa (art. 30, I), deixa clara sua intenção de exasperar as consequências sancionadoras dos atos lesivos à Administração Pública.
Suprimir esferas de responsabilização, sobretudo aquelas de natureza constitucional jurisdicional, quando a realidade histórica claramente exigiu seu incremento, caracterizaria andar na contramão da necessidade de resguardar a moralidade e o patrimônio públicos, impingindo uma proteção deficiente vedada pela própria Constituição.
Em conclusão, entendemos que a superação das aparentes incompatibilidades entre a LIA e a LAE deva ser feita por meio do emprego da moderna técnica do “diálogo das fontes”, que possibilita a aplicação simultânea, coerente e coordenada das duas fontes legislativas, com campos de aplicação convergentes, mas não iguais.
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[i] MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Comentários ao art. 15. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago. Lei Anticorrupção comentada. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 339-348.
[ii]Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: (…)
[iii] GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 794-797; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro. Responsabilização judicial da pessoa jurídica na lei anticorrupção. In: MUNHÓS, Jorge; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro (coord.). Lei Anticorrupção e temas de compliance. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 581-584; MARQUES, Silvio Antonio. Harmonização entre a lei de improbidade administrativa e a lei anticorrupção empresarial. Apontamentos à Lei Anticorrupção Empresarial: Lei 12.846/2013. São Paulo: MPSP, 2015, p. 45-48; e PETRELLUZZI, Marco Vinicio; RIZEK JUNIOR, Rubens Naman. Lei Anticorrupção: origens, comentários e análise da legislação correlata. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 105.
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