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Incidente de resolução de demandas repetitivas: natureza e função

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Incidente de resolução de demandas repetitivas: natureza e função

COISA JULGADA

COMMON LAW

DEMANDAS REPETITIVAS

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

IRDR

ISONOMIA E SEGURANÇA JURÍDICA

PRECEDENTES

PROCESSO CIVIL

RESOLUÇÃO DE DEMANDAS

Humberto Theodoro Júnior

Humberto Theodoro Júnior

14/02/2020

1 – Introdução

A sociedade contemporânea sofreu profunda modificação no que toca aos conflitos jurídicos e aos meios de sua resolução em juízo. As crises de direito deixaram de se instalar apenas sobre as relações entre um e outro indivíduo e se expandiram para compreender outras numerosas relações plurilaterais, ensejadoras de conflitos que envolvam toda a coletividade ou um grande número de seus membros. Surgiram, assim, os conflitos coletivos, a par dos sempre existentes conflitos individuais.

É que o relacionamento social passou, cada vez mais, a girar em torno de interesses massificados, interesses homogêneos, cuja tutela não pode correr o risco de ser dispensada pela justiça de maneira individual e distinta, isto é, com a possibilidade de soluções não idênticas, caso a caso. Esse risco põe em xeque a garantia basilar da democracia, qual seja, a de que, perante a lei, todos são necessariamente iguais. Se assim é, no plano dos direitos materiais, também assim haverá de ser no plano do acesso à justiça e da tutela jurisdicional proporcionada a cada um e a todos que demandam. A igualdade em direitos seria quimérica, se na solução das crises fossem desiguais as sentenças e os provimentos judiciais.

Os tribunais modernos, portanto, têm de se aparelhar de instrumentos processuais capazes de enfrentar e solucionar, com adequação e efetividade, os novos litígios coletivos, ou de massa. Dessa constatação da realidade, nasceram diversos tipos de tutela judicial coletiva, ora como modalidade de ações coletivas (em que num só processo se define solução uniforme e geral para um grupo de titulares de direitos individuais, semelhantes), ora como incidente aglutinador de ações originariamente singulares (por meio do qual uma decisão se estende às diversas causas individuais de objeto igual). Exemplo típico de ação coletiva é a ação civil pública manejada por um só autor, mas em defesa de um grupo de titulares de direitos subjetivos iguais, qualificado como direitos individuais homogêneos. Exemplo típico de incidente de potencial efeito expansivo a mais de uma causa é o de uniformização de jurisprudência do CPC/1973, assim como o do sistema instituído pelo CPC/2015 de julgamento de recursos repetitivos, no âmbito do STF e do STJ, e o de assunção de competência.

O atual Código de Processo Civil deu, porém, um grande passo no terreno da coletivização da prestação jurisdicional instituindo um novo incidente processual, a que atribuiu o nome de incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 976 a 987), e cuja aplicação é ampla, já que pode acontecer perante qualquer tribunal, seja da Justiça dos Estados, seja da Justiça Federal.

Lembra PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO, um dos membros destacados da Comissão de Juristas encarregada da elaboração do anteprojeto de que originou o CPC de 2015, que este “prestigiou fortemente a uniformização da jurisprudência”, impondo aos tribunais o dever de mantê-la sempre “estável, íntegra e coerente (art. 926, caput)”[1]. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas faz parte, com realce, da política de valorização da jurisprudência, à qual o atual Código brasileiro atribuiu e reforçou a função criadora daquilo que a doutrina tem chamado de “direito judicial” ou “direito jurisprudencial”[2]. Trata-se, ainda na visão abalizada do Prof. PINHEIRO CARNEIRO, de “uma das mais importantes inovações do Código (…), que tem por escopo promover uma superior concretização dos princípios da isonomia e da segurança jurídica[3].

O mecanismo unificador ora implantado no ordenamento jurídico brasileiro encontra precedentes no direito comparado, como o Musterverfahrem alemão, a Group Litigation inglesa e o Pilot-Judgment Procedure da Corte Europeia de Direitos Humanos[4].

2 – Conceito

O incidente de resolução de demandas repetitivas é aquele que se instaura, perante um tribunal, quando em sua jurisdição registra-se repetição de processos em torno de uma igual questão de direito, ensejando risco de soluções conflitantes que possa ofender a isonomia e a segurança jurídica (CPC, art. 976), risco esse que se coíbe mediante fixação, pelo tribunal, de tese jurídica aplicável, dentro de sua área de jurisdição, a todos os processos pendentes e futuros que versem sobre a mesma questão de direito resolvida no IRDR (CPC, art. 985).

Não se trata da criação de uma nova ação coletiva, mas de incidente de um processo em curso em primeiro grau de jurisdição ou perante tribunal. Provocado com base em processo pendente em juízo de primeiro grau, este ficará suspenso, para aguardar a fixação da tese de direito a ser posteriormente observada na solução da causa (art. 982, I). O processo, portanto, não sobe ao tribunal, se ainda não se submeteu ao julgamento do juiz da causa. A admissão do incidente no tribunal não elimina a competência do juiz natural, apenas paralisa temporariamente a marcha processual na instância de origem[5].

Se a instauração ocorre com base em processo em andamento no tribunal, “o órgão colegiado incumbido de julgar o incidente e de fixar a tese jurídica julgará igualmente o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária de onde se originou o incidente” (CPC, art. 978, parágrafo único).

A sistemática do incidente, por outro lado, não tem como objetivo o julgamento da causa originária. O provimento visado, e que não pode faltar, é a fixação da tese de direito, cuja incerteza põe em risco a isonomia e a segurança jurídica. Tanto é assim que a eventual desistência ou o abandono do processo originário não impede o exame de mérito do incidente, como dispõe o art. 976, § 1º do CPC.

O incidente processual, de tal sorte, envolve questão de interesse público, a ser perseguido e tutelado por meio de estabelecimento de tese de eficácia normativa erga omnes. Esse caráter eminente do IRDR se manifesta, entre outros detalhes, pela autorização da intervenção obrigatória do Ministério Público (CPC, art. 976, §2º) e da participação de amicus curiae, com poderes ampliados para recorrer da decisão que julgar o incidente (art. 138, §3º). Lembra PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO que enquanto em regra se veda ao amicus curiae, nos processos em geral, a possibilidade de interpor recursos, no IRDR, ao contrário, o poder de recorrer é expressamente reconhecido[6].

3 – Natureza jurídica

A própria nomenclatura adotada pelo Código para nomear o novo instituto (o IRDR) revela sua natureza jurídico processual, que é a de incidente processual, concebido como instrumento voltado para a missão de buscar a consolidação de teses de direito e de promover a uniformização da jurisprudência dos tribunais[7].

O que vem a ser um incidente processual? Explica DINAMARCO: o incidente processual não tem a natureza de ação, devendo ser entendido como o “conjunto de atos formalmente coordenados a serem realizados no curso do processo”, apresentando-se como “um pequeno procedimento inserido no contexto do procedimento maior”[8]. O remédio destina-se a resolver incidentalmente, questão relevante para o bom e profícuo andamento do processo em que se insere e para a correta e adequada solução da demanda. É o que, por exemplo, ocorre com o conflito de competência, com o atentado à dignidade da justiça, com a concessão ou cassação da assistência judiciária gratuita, com a arguição de suspeição ou impedimento do juiz, com a arguição de inconstitucionalidade, com a remoção do inventariante, com a exibição de documento ou a produção antecipada de prova, e tantos outros procedimentos incidentais similares.

Nesse enfoque, o IRDR ainda não pode ser qualificado como ação, uma vez que nem sempre é promovido pelo litigante e, quando o é, não é em proveito próprio e exclusivo de quem age, mas sob o pressuposto de haver diversas demandas, acerca da mesma questão de direito, em risco de serem solucionadas da maneira contraditória.

Além de tudo, não se pode pensar em ação, quando se sabe que a função principal do IRDR, aquela que justifica sua instituição no processo civil pátrio, é a de fixar uma tese apenas de direito. Ora, provimento de tal natureza, estranho ao objetivo de resolver um conflito subjetivo in concreto, não pode gerar coisa julgada, e sem essa aptidão não há condição para atribuir a qualidade de ação a qualquer remédio processual[9].

Por outro lado, não pode o IRDR ser considerado um recurso, entre outros motivos, por não se enquadrar na taxatividade desses expedientes impugnativos prevista no CPC (art. 994). Na verdade, não se pode entrever sucumbência a justificar sua instauração (art. 996), e tampouco pretensão de reforma ou invalidação de julgamento já ocorrido (art. 1.002). Não se pode, outrossim, atribuir-lhe a qualidade de recurso, porquanto entre os legitimados a promovê-lo não figuram apenas as partes, o Ministério Público e os terceiros interessados[10] (art. 996). Em suma, não se pode, evidentemente, ver no IRDR, um “meio de impugnação às decisões judiciais”[11] (arts. 1010; 1016; 1.029).

4 – Nosso entendimento doutrinário sobre a natureza do IRDR

Meu pensamento acerca da natureza jurídica do incidente de resolução de demandas repetitivas, já foi enunciado em sede de doutrina, nos termos que se seguem[12].

O incidente autorizado pelo art. 976 do CPC é um instrumento processual destinado a produzir eficácia pacificadora de múltiplos litígios mediante estabelecimento de tese aplicável a todas as causas em que se debata a mesma questão de direito. Com tal mecanismo se intenta implantar uniformidade de tratamento judicial a todos os possíveis litigantes colocados em situação igual àquela disputada no caso padrão. Cumpre-se por seu intermédio duplo objetivo: a par de racionalizar o tratamento judicial das causas repetitivas (arts. 976; 980 a 984), o incidente visa formar precedente de observância obrigatória (art. 985)[13].

Trata-se, portanto, de remédio processual de inconteste caráter coletivo. Não se confunde, entretanto, com as conhecidas ações coletivas, que reúnem num mesmo processo várias ações propostas por um único substituto processual em busca de um provimento de mérito único que tutele os direitos subjetivos individuais homogêneos de todos os interessados substituídos. O incidente de resolução de demandas repetitivas não reúne ações singulares já propostas ou por propor. Seu objetivo é apenas estabelecer a tese de direito a ser aplicada em outros processos, cuja existência não desaparece, visto que apenas se suspendem temporariamente e, após haverão de sujeitar-se a sentença, caso a caso, pelos diferentes juízes que detêm a competência para pronunciá-las. O que, momentaneamente, aproxima as diferentes ações é apenas a necessidade de aguardar o estabelecimento da tese de direito de aplicação comum e obrigatória a todas elas. A resolução individual de cada uma das demandas, porém continuará ocorrendo em sentenças próprias, que poderão ser de sentido final diverso, por imposição de quadro fático distinto. De forma alguma, entretanto, poderá ignorar a tese de direito uniformizada pelo tribunal do incidente, se o litígio de alguma forma, se situar na área de incidência da referida tese.

A distinção básica entre a ação coletiva e o incidente de resolução de demandas repetitivas consiste em que naquela os litígios cumulados são solucionados simultaneamente, enquanto no incidente apenas se delibera, em Tribunal, sobre idêntica questão do direito presente em várias ações, as quais continuam a se desenvolver com independência entre si.

Nesse sentido, é lícito afirmar que “o teor da decisão do Tribunal é [apenas] ponto de partida para que os juízos singulares decidam seus processos”[14]. Trata-se, por isso – na lição de DINAMARCO –, não de uma ação, mas realmente de um incidente processual, entendido este como o “conjunto de atos formalmente coordenados a serem realizados no curso do processo”, apresentando-se como “um pequeno procedimento inserido no contexto do procedimento maior”[15].

5 – IRDR, coisa julgada e força vinculante

Ocorre a coisa julgada material quando a decisão de mérito se torna imutável e indiscutível por não se achar mais sujeita a recurso (CPC, art. 502).

O julgamento do IRDR não resolve o mérito da causa donde se originou, razão pela qual não se pode atribuir-lhe a autoridade da coisa julgada, nos moldes do CPC. O julgamento de mérito, às vezes se dará em sequência à fixação da tese de direito objetivada pelo incidente. Mas, isto somente acontecerá quando o processo de que se originou o IRDR já se encontrar no Tribunal (art. 978, parág. único). In casu, porém, haverá dois julgamentos distintos: o do IRDR e o do processo originário. A coisa julgada, então, formar-se-á apenas sobre o julgamento do processo contencioso (recurso ou processo de competência originária do tribunal) e não sobre a tese de direito fixada no incidente.

É bom lembrar, mais uma vez, que o julgamento do incidente pode acontecer, autonomamente, até depois que o demandante tenha desistido da demanda ou abandonado o processo (art. 976, parág. único). Sendo indiferente ao IRDR o destino do processo que lhe deu causa, não se pode ver coisa julgada numa simples definição de tese de direito, que por si só, não consistiu em solução da questão configuradora do mérito da causa. Terá o julgado, porém, força vinculativa erga omnes, fazendo com que a tese de direito assentada através do IRDR seja uniformemente aplicada a todo aquele que se envolver em litígio similar ao retratado no caso padrão.

De tal sorte, a tese de direito, sem embargo de observância obrigatória nos diversos processos individuais ou coletivos em torno de igual questão de direito, não se apresenta dotada de força executiva. É que no provimento judicial pronunciado no incidente não se procedeu à certificação da existência do direito ou da obrigação de ninguém. No incidente em causa, enfim, “o que vincula é o próprio precedente que dali se origina. A projeção erga omnes não é dos efeitos da coisa julgada, mas da ratio decidendi[16].

6 – Requisitos do IRDR

Na sistemática do CPC (art. 976), cabe a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando, cumulativamente, se verificarem os seguintes requisitos:

  1. ocorrer “efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito[17];
  2. configurar-se “risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica[18]; e
  3. inexistir afetação da mesma questão em recursos especial e extraordinário repetitivos.

A questão de direito, na realidade, nunca se desliga de um pressuposto fático, de sorte que a lei quando cogita, para efeito do incidente em exame, de “questão unicamente de direito”, quer que a controvérsia existente em juízo gire tão somente sobre norma, uma vez que os fatos sobre os quais deva incidir não são objeto de questionamento algum[19]. Nesse sentido, deve-se considerar questão de direito aquela que diga respeito à qualificação jurídica de fato[20], desde que este não seja objeto de controvérsia.

Por outro lado, a mera discussão teórica sobre o sentido e alcance da norma não justifica a abertura do incidente. Tampouco é suficiente a perspectiva de multiplicidade futura de processos a respeito de sua aplicação. Exige o CPC que seja atual a efetiva pluralidade de processos, com decisões díspares acerca da interpretação da mesma norma jurídica. O incidente, em outros termos, não foi concebido para exercer uma função preventiva, mas repressiva de controvérsias jurisprudenciais preexistentes.

Correta a advertência de que a lei não exige o estabelecimento do caos interpretativo entre milhares de causas[21]. Basta que haja “repetição de processos” em número razoável para, diante da disparidade de entendimentos, ficar autorizado o juízo de “risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica”. Naturalmente, para que semelhante juízo ocorra é mister a existência de vários processos e de decisões conflitantes, quanto à aplicação da mesma norma.

Pela própria natureza unificadora da medida, não haverá possibilidade da concomitância de vários incidentes de demandas repetitivas sobre a mesma tese de direito, num só tribunal[22]. Igual impedimento prevalecerá quando outro expediente procedimental já tiver sido acionado com o fito de gerar precedente unificador de jurisprudência, como o incidente de assunção de competência. Prevalece aqui o mesmo princípio que veda o bis in idem, nas hipóteses de litispendência.

Tampouco se admitirá a promoção do incidente de resolução de demandas repetitivas na esfera do tribunal local, quando um tribunal superior (STF ou STJ) já houver afetado recurso para definição da mesma tese, sob regime de recursos extraordinário e especial repetitivos (CPC, art. 976, § 4º). É que já estará em curso remédio processual de função geradora de precedentes, a cuja eficácia todos os tribunais inferiores restarão vinculados (art. 927). Tem-se, portanto, in casu, um feito prejudicial externo[23].

O fato, porém, de ter sido denegada a formação do incidente por falta de seus pressupostos de admissibilidade, não impede seja ele novamente suscitado, desde que satisfeito o requisito inatendido na propositura anterior (CPC, art. 976, § 3º).

Por outro lado, não é preciso que a repetição se dê entre processos em curso no tribunal. Essa exigência chegou a ser cogitada durante a tramitação parlamentar do Projeto, mas foi excluída do texto que afinal se tornou o CPC. Assim é que o próprio juiz de uma das causas repetitivas está autorizado a provocar o incidente oficiando ao presidente do tribunal de segundo grau. Terá, contudo, de demonstrar a divergência de entendimento sobre a questão comum, divergência essa estabelecida não doutrinariamente, mas entre decisões judiciais já pronunciadas, as quais poderão ter acontecido na primeira ou na segunda instância. A lei, pois, não exige que o dissídio interpretativo se dê obrigatoriamente nos tribunais[24].

7 – O velho problema da distinção entre questão de fato e questão de direito

O art. 976 admite o IRDR a partir da comprovação da existência da repetição de processos envolvendo a mesma questão “unicamente de direito”. Desse modo, o objetivo do incidente não é resolver o objeto litigioso do processo causador do IRDR, mas apenas fixar a tese de direito que possa ser aplicada a todos os processos repetitivos, em torno de igual questão (função nomofilática ou normativa). Definir, portanto, questões fáticas, como a ocorrência, ou não, do dano e sua autoria, é tarefa que não se inclui no objetivo do incidente em cogitação.

Mas não é fácil, e até mesmo se mostra, com frequência, impossível, isolar numa questão relevante, para o processo, limitando-a tão só ao aspecto jurídico, a ponto de qualifica-la como “exclusivamente de direito”. É que, no processo, os juízes são sempre incumbidos de aplicar o direito positivo numa quadra em que as circunstâncias fáticas são inafastáveis, pela simples constatação de que a função essencial da jurisdição não é outra, senão a de qualificar os fatos trazidos à sua análise para determinar-lhes a consequência jurídica. Em outros termos, quando se impõe, como nos recursos especial e extraordinário, que o acertamento seja de direito e não de fato, o que, na verdade, se deseja é a apuração da corretude, ou não, do modo com que se procedeu à subsunção dos fatos apurados à norma jurídica que lhe seja pertinente. Para tanto, a limitação imposta ao tribunal superior de apreciar tão somente as questões de direito, seja nos recursos especial e extraordinário, seja em qualquer incidente, será sempre relativa, e nunca absoluta, já que na quase totalidade dos casos será impossível examinar a questão de direito deduzida em juízo sem vinculá-la ao respectivo suporte fático.

O fenômeno da separação processual das questões de fato das de direitodiante da circunstância de que o fenômeno jurídico envolve necessariamente fato e direito –, conduz à conclusão de que o correto é falar em “questões que sejam predominantemente de fato predominantemente de direito”, como ensina TEREZA ARRUDA ALVIM[25] (g.n.). Vale dizer:

“… o fenômeno jurídico é de fato e de direito, mas o problema (= a questão) pode estar girando em torno do aspecto fático ou em torno do aspecto jurídico. Queremos com isso dizer que, embora indubitavelmente o fenômeno não ocorra senão diante de fato e de norma, o aspecto problemático desse fenômeno pode estar lá ou cá” (g.n.)[26].

Donde ter-se como assente no direito processual brasileiro que a questão de direito corresponde às conclusões esposadas nos julgados no que diz com a aplicação das normas jurídicas; e que a questão de fato compreende tudo que envolve a apuração e certificação do quadro fático que permeia o litígio posto em análise.

Impende ter sempre presente que a própria estrutura da norma jurídica traz intrínseca a hipótese fática de sua incidência (“se é A, deve ser B”). Daí que o juízo de subsunção do fato à norma jurídica predisposta para regulá-lo configura questão de direito, na qual “a violação consiste em não aplicar a um fato claro, absolutamente de acordo com o suposto da norma, a lei ou a doutrina que deveria aplicar-se, o que equivale a desconhecê-las”[27].

Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça observa majoritariamente a tese de que a questão é de direito, e não de fato, quando se cuida da valorização da matéria fático-probatória (matéria essa não mais sujeita a debate ou controvérsia). Já então o que se visa é o seu valor e a sua qualificação jurídica, e não mais sua simples interpretação. Portanto, eventual erro na espécie não versa sobre o fato– que, no processo se apresenta como certo e bem definido –, mas sobre o seu enquadramento jurídico.

É nesse mesmo sentido a lição da JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA, quando ressalta que se excluem “das questões de fato a qualificação jurídica dos fatos, pois quando se qualifica erroneamente um fato há em consequência aplicação incorreta da lei[28]. Há na verdade violação da própria norma jurídica e, por isso, nítida questão de direito. “Sem dissentir dessa tese, CHIOVENDA afirma não constituir questão ou juízo de fato, mas de direito, a concernente à natureza jurídica de um fato, a saber, se um fato considerado como verdadeiro é ou não regulado por determinada norma”[29].

Preciosa é a lição de BARBOSA MOREIRA a respeito do tema:

“Dizer que ela [a lei] abrange ou não abrange certo acontecimento é, portanto, interpretá-la. Admitir a abrangência quando o fato não se encaixa na moldura conceptual é aplicar erroneamente a norma, como seria aplicá-la erroneamente não admitir a abrangência quando o fato se encaixasse na moldura conceptual. Em ambos os casos, viola-se a lei, tanto ao aplicá-la a hipótese não contida em seu âmbito de incidência, quanto ao deixar de aplicá-la a hipótese nela contida” (g.n.)[30].

Tratando especificamente dos requisitos de admissibilidade do incidente de resolução de demandas repetitivas, DIDIER e CUNHA ensinam:

“Não cabe IRDR para definição de questões de fato; apenas para questões de direito. Não cabe, por exemplo, o IRDR para definir se determinada construção foi vendida com vícios estruturais decorrentes de falha no projeto ou na execução da obra, mas cabe para dizer se, ocorrendo esse fato, há ou não responsabilidade civil do construtor pela reparação do dano daí decorrente. Exige-se a efetiva repetição de processos em que se discuta a mesma questão de direito[31] (g.n.)

Esclarecem, com adequação, os mesmos autores:

“É muito difícil a distinção entre questão de fato e questão de direito. Toda questão de direito pressupõe a ocorrência de um fato. Pode-se, de todo  modo, dizer que questão de fato é aquela relacionada com a causa de pedirou com a hipóteseprevista no texto normativo, enquanto a questão de direito é aquela relacionada com as consequências jurídicas de determinado fato, ou com a aplicação da hipótese deincidência prevista no texto normativo, com as tarefas de subsunção do fato (ou conjunto de fatos) à norma ou de concretização do texto  normativo[32].

Em suma, a questão controvertida que, nos termos do art. 976, I, do CPC deve ser “unicamente de direito”, não é só aquela que versa sobre a interpretação de norma jurídica, é também a que, diante de fato certo e incontroverso, versa sobre a correção, ou não, de seu enquadramento na norma que lhe diz respeito[33]. Assim, num acidente que tenha ocasionado a morte ou a incapacitação de dezenas ou centenas de vítimas, é questão de direito (e não de fato)o arbitramento da reparação do dano moral suportado de maneira uniforme pelos acidentados ou seus dependentes, se a base fática (dano e responsabilidade), não se achar em discussão no processo. Nada impede, então, que se lance mão do IRDR, para superar as divergências instaladas e chegar a critérios indenizatórios uniformizados[34].

É muito oportuno lembrar que acaba de ser noticiado um grande termo de uniformização ajustado entre a Vale e o Ministério Público, para prevalecer nas indenizações de danos morais ocasionados pelo rompimento da barragem de Brumadinho.

8 – A tese fixada através do IRDR

O tribunal, ao julgar o IRDR, fixará uma tese de direito que será observada no julgamento da demanda que serviu de base para a instauração do incidente e em todos os demais processos pendentes ou futuros, dentro da jurisdição do tribunal, que versem sobre a mesma questão de direito.

Naturalmente não haverá interesse que justifique o incidente se o inconformismo se referir a decisão que simplesmente ofende norma jurídica de sentido e alcance não controvertidos nos órgãos jurisdicionais. O regime recursal é suficiente para combater a incorreta aplicação da lei na prestação jurisdicional, se for o caso.

O que vai justificar o IRDR é justamente a constatação de que entre diversos processos a mesma norma tem sido interpretada e aplicada de maneira diferente para resolver questões evidentemente iguais.

A função do tribunal, na espécie, é, a um só tempo: (i) uniformizar a jurisprudência e (ii) estabelecer precedente, com força vinculativa para os órgãos integrantes do próprio tribunal (vinculação horizontal) como para todos os juízes ou tribunais inferiores a ele subordinados (vinculação vertical).

A tese, em tais circunstâncias, não será uma simples reprodução do enunciado da norma em debate no incidente. Circunstâncias fáticas necessariamente haverão de ter ensejado a polêmica motivadora do recurso ao IRDR, em busca da tese pacificadora do conflito jurisprudencial estabelecido.

É importante, pois, que o quadro fático-jurídico seja, de alguma forma, retratado na tese afinal definida pelo tribunal. Isto porque, diante do caráter normativo que o decisório assumirá, para todos que enfrentam ou venham a enfrentar, a mesma questão de direito, torna-se indispensável a determinação da hipótese de incidência sobre a qual vigorará a norma do direito jurisprudencial[35].

Cabe, então, no IRDR, a regra geral dos enunciados de súmula da jurisprudência dominante dos tribunais (CPC, art. 926, § 1º), os quais devem ser editados com teor que se atenha às “circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação” (art. 926, § 2º).

9 – Processo principal pendente no tribunal: seria requisito de admissibilidade do IRDR?

Durante a tramitação do Projeto do atual CPC, duas posições prevaleceram em diferentes momentos: no Projeto inicial e em sua redação final, o Senado estipulou que o IRDR poderia ser provocado tanto pelo juiz de primeiro grau como pelo relator no tribunal, e ainda pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública.

Na Câmara dos Deputados foi aprovado um substantivo com dispositivos que expressamente mantinham a suscitação do IRDR, sem a exigência de basear-se em processos já em tramitação no tribunal.

A última versão aprovada no Senado e que foi sancionada e publicada, transformando-se no CPC de 2015, não contém enunciado algum que exija a instauração do incidente com base apenas em processo existente no tribunal, e, quanto aos legitimados, o rol do art. 977 inclui tanto o juiz de primeiro grau como o relator no tribunal. A tentativa tardia e injurídica de emendar o texto, quando da segunda e última discussão do Projeto no Senado, para inserir a malsinada limitação, restou, portanto, completamente frustrada.

Diante desse histórico do problema, nosso entendimento externado em sede de doutrina é que na sistemática do CPC atual o IRDR não exige que a repetição de soluções diferentes para a mesma questão de direito se dê em face de processos já em curso no tribunal:

“Essa exigência chegou a ser cogitada durante a tramitação parlamentar do Projeto, mas foi excluída do texto que afinal se tornou o CPC. Assim é que o próprio juiz de uma das causas repetitivas está autorizado [pelo art. 977, I] a provocar o incidente oficiando ao presidente do tribunal de segundo grau. Terá, contudo, de demonstrar a divergência de entendimento sobre a questão comum, divergência essa estabelecida não doutrinariamente, mas entre decisões judiciais já pronunciadas, as quais poderão ter acontecido na primeira ou na segunda instância. A lei, pois, não exige que o dissídio interpretativo se dê obrigatoriamente nos tribunais”[36].

Também para PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO, o IRDR pode ser suscitado “já no primeiro grau pelas partes, pelo juiz, de ofício, pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública e, se for o caso, pelo relator do recurso (art. 977)[37].

A corrente dos que condicionam o cabimento do IRDR é liderada por FREDIE DIDIER JÚNIOR e LEONARDO CARNEIRO DA CUNHA. A tese é defendida com dois argumentos[38]:

  1. se o IRDR é um incidente a ser julgado pelo tribunal, “é preciso que haja um processo no tribunal”;
  2. se não houver caso em trâmite no tribunal, ter-se-á um processo originário e não um incidente, o que seria impossível, por não caber ao legislador ordinário criar competências originárias, visto que as do STF, do STJ e dos TRFs, estão estabelecidas na Constituição Federal, e as dos Tribunais de Justiça devem ser definidas pelas Constituições Estaduais. Assim, “o legislador ordinário pode – e foi isso que fez o CPC – criar incidentes processuais para causas originárias e recursais que tramitem nos tribunais, mas não lhe cabe criar competências originárias para os tribunais. É também por isso que não se permite a instauração do IRDR sem que haja causa tramitando no tribunal” (g.n.).

Há, ainda na doutrina, quem se baseie no texto do parág. único do art. 978 do CPC (que prevê a competência do tribunal para fixar a tese e também para julgar o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária de onde se originou o incidente), para concluir que só existindo processo pendente no tribunal seria possível a instauração do IRDR[39].

ALUISIO GONÇALVES DE CASTRO MENDES, por todos, responde muito bem aos argumentos suscitados para condicionar o IRDR à pendência de processo no tribunal, da seguinte maneira:

  • Competência dos tribunais de segundo grau fixada constitucionalmente:

O fato de existir na Constituição algumas competências definidas para órgão de 2º grau não torna a competência dos tribunais matéria constitucional, ou seja, tema de que só a Constituição possa tratar. Demonstração disso é que mesmo no âmbito dos tribunais superiores nem todos eles possuem a discriminação da respectiva competência na Constituição Federal. Basta lembrar que a competência do TST, do TSE e do STM é fixada pelo legislador infraconstitucional. E para o STJ, cuja previsão de competência consta da Constituição – inclusive no tocante a alguns incidentes originados nas instâncias inferiores (CF, art. 105, I, “d” e “g”) –,  novas competências foram criadas por leis ordinárias em casos como o do Incidente de Uniformização da Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais (Lei nº 10.259/2001, art. 14, § 4º); e também para o pedido de uniformização de interpretação de lei na esfera dos Juizados Especiais da Fazenda Pública (Lei nº 12.153/2009, arts 18, § 3º e 19, caput).

Tais inovações, que se referem a incidentes não previstos no art. 105 da CF, não foram declarados inconstitucionais pelo STF,  mas, pelo contrário, mereceram sua chancela, “diante da necessidade de se preservar a segurança jurídica e da compatibilidade com as funções exercidas pelo STJ”[40].

Quanto aos TRFs, a Constituição no rol dos casos de competência não relaciona, sabidamente, todos os incidentes que devem ser por eles decididos. Assim, também se passa com o relacionamento dos incidentes a cargo dos Tribunais de Justiça feitos pela Constituição dos Estados. Entretanto, não se lhes nega, por exemplo, a competência, sem previsão constitucional, para incidentes, como o de impedimento ou suspeição do juiz, bem como para instrumentos de criação ou fortalecimento recentes, a exemplo da reclamação[41].

Ressalte-se ainda – na linha de ALUISIO CASTRO MENDES – que “o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas é um mecanismo processual completamente novo no ordenamento nacional. Portanto, as Constituições, Federal e Estaduais, não poderiam prever algo inexistente ao tempo das respectivas promulgações”. E por isso mesmo – e, principalmente, pelo importante papel que lhe cabe na preservação das garantias fundamentais, sobretudo a isonomia e a segurança jurídica – “deve ser visto sob uma ótica mais ampla e menos formalista pois atende aos preceitos maiores da Constituição”, dentre eles e em particular o do acesso à justiça e o da duração razoável do processo, além da segurança e da igualdade de todos perante a lei.

Aos intérpretes e aplicadores da nova sistemática de valorização dos precedentes cabe simplificar e otimizar o uso de remédios dinamizadores do processo justo, como soi ser o IRDR, no plano das demandas repetitivas.

  • Por fim, o parágrafo único do art. 978, do CPC/2015

A previsão do parágrafo único do art. 978 do CPC de que o tribunal ao fixar a tese julgará, também, “o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária de onde se originou o incidente”, tem sido interpretada, por certa opinião doutrinária, como indicativo de que a lei somente admitisse o IRDR como incidente instaurado a partir de processo em curso no tribunal.

Tal limitação, todavia, como já explicitado, foi intentada tardiamente na fase final da discussão parlamentar do Projeto do atual CPC, quando os textos aprovados pelo Senado e pela Câmara já não eram mais passíveis de alteração de fundo. Por isso, foi rechaçada na votação final ocorrida no Senado. O CPC, de tal sorte foi votado e sancionado, com permissão a que tanto o juiz de primeiro grau como o relator, no tribunal, tivessem legitimidade para provocar a instauração do IRDR. Vale dizer: a sistemática do Código é a de que o incidente tanto pode ser instaurado a partir de processo em andamento no primeiro grau de jurisdição como no curso de recurso ou processo em tramitação perante o tribunal de segundo grau. É o que, também, entende PAULO CESAR PINHEIRO CARNEIRO, na lição já antes arrolada[42].

Logo, o parágrafo único do art. 978, só pode, sistematicamente, ser interpretado como autorizador do julgamento conjunto do incidente e do processo principal, se e quando ao procedimento do IRDR tiverem sido afetadas causas já em curso no tribunal. Inexistindo, pois, processo principal em tais condições, o julgamento do tribunal se limitará à fixação da tese que os juízes de primeiro grau terão de aplicar nos processos suspensos em seu poder. De maneira alguma, se haverá de entender, portanto, que sem processo no tribunal o juiz de primeiro grau não pode suscitar o IRDR, e muito menos que o tribunal só possa admitir o incidente se baseado em processo em curso perante ele[43].

Incensurável, pois, a lição de ALUISIO DE CASTRO MENDES, a propósito do alcance do parágrafo único do art. 978, que conteria apenas uma regra eventual de prevenção. Não teria ela, todavia, o condão de levar à conclusão de que apenas os processos em tramitação no tribunal poderiam ensejar a instauração do IRDR. “Mas, sim, que naqueles instaurados a partir de processos em tramitação no tribunal, o órgão competente julgaria a tese e a causa em concreto, estabelecendo-se, assim, vis atractiva para a prevenção”[44].

10 – A função específica do IRDR no sistema brasileiro de precedentes sumulados (“enunciados” de Súmula)

Na política de valorização da jurisprudência, com o fito de ampliar a função nomofilática das decisões judiciais, principalmente dos Tribunais Superiores, o art. 927, do CPC, inclui entre os casos de força vinculante o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (inc. III).

Entre os processualistas brasileiros há alguns que, apegados à técnica do common law, criticam a orientação adotada por nosso CPC no relacionamento dos atos judiciais a que confere força normativa vinculante eventos jurídicos heterogêneos e que, de forma alguma, se enquadrariam no conceito de precedente, se tomado como paradigma o direito anglo-americano. Segundo tal censura, a situação teria se agravado porque nem o legislador, nem os intérpretes em sua maioria, se preocuparam com fazer a distinção entre jurisprudência, súmula e precedente, o que seria essencial para a boa adaptação do precedente da técnica do common law ao nosso regime de civil law.

Certo é que o sistema do common law construiu, de fato, uma concepção de precedente que é muito própria às suas tradições. Não se pode, entretanto, ignorar que o sistema uniformizador da jurisprudência adotado, de longa data, entre nós, se orienta por mecanismos nomofiláticos profundamente diversos daqueles historicamente observados pelos povos afeitos à cultura inglesa.

Com efeito, na tradição anglo-americana o confronto se dá entre casos, ou seja, o precedente se impõe quando o novo caso a ser resolvido seja igual a outro anteriormente julgado por tribunal, no respeitante a seus elementos essenciais. Assim, o precedente é descoberto a posteriori com vistas para o passado e só será, na verdade, qualificado como precedente quando no futuro surgir caso igual.

Para a lei brasileira, de maneira muito diversa, o precedente é considerado como tal desde o momento em que certas causas são decididas (ex.: ações de controle de constitucionalidade, julgamento de causas ou recursos repetitivos etc), ou quando, independentemente de causa nova, os tribunais elaboram súmulas, para catalogar teses que se consolidaram em sua jurisprudência (enunciados de súmula que eventualmente serão úteis no processo geral de uniformização da jurisprudência).

É que aqui – repita-se –, a lei já estipula com antecedência quais são as decisões judiciais e outros atos dos tribunais que terão futura eficácia de precedentes vinculantes.[45] Essa qualidade do chamado “direito judicial” brasileiro faz com que, à evidência, não se possa filiá-lo à sistemática do “precedente anglo-saxão”, já que neste o julgamento nunca nasce com a predestinação de se tornar necessariamente uma norma vinculante[46].

Merece ser ressaltado que o IRDR, como os demais atos decisórios que participam do sistema brasileiro de precedentes, estruturado pelo CPC/2015, mantém a tradição do regime de súmulas (art. 926, § 1º), com o qual o direito positivo nacional, inclusive no plano constitucional, já se acha familiarizado, e que, evidentemente, não é o mesmo do direito anglo-americano.

Nesse sentido, está determinado por nosso novo CPC que, uma vez verificado o estabelecimento de jurisprudência qualificada como dominante, entre seus julgamentos, os tribunais brasileiros “editarão enunciados de súmula”, com observância dos pressupostos fixados no regimento interno (art. 926, § 1º).

Esses enunciados procuram reproduzir a tese que serviu de fundamento ao entendimento dominante no tribunal acerca de determinado problema jurídico. Não é o caso em sua inteireza e complexidade que o enunciado sumulado reproduz, mas apenas a ratio decidendi em que os precedentes se fundamentaram.[47]

Embora o regime de direito jurisprudencial em construção entre nós não seja o mesmo do common law, por razões intrínsecas da própria diversidade histórica dos dois sistemas de estabelecimento da ordem jurídica positiva, não há como negar a preocupação dos países de civil law de se aproximarem, na medida do possível, da técnica e experiência dos anglo-saxônicos no que toca aos precedentes. E na matéria é de se ter em conta que, na tradição do common law, “todo precedente judicialé composto por duas partes distintas:

a)as circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; e

b) a tese ou o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório”.[48]

Não obstante de maneira diferente, esses dois elementos figuram também no sistema de precedentes sumulados programado pelo novo Código brasileiro, como a seguir veremos. Da técnica anglo-americana deve-se valer a doutrina nacional principalmente das noções de ratio decidendi, obiter dictum e distinção, temas até o momento pouco tratados pela jurisprudência local.

O novo CPC dispensou grande atenção ao fenômeno jurisprudencial, por reconhecer a relevante influência político-institucional que a interpretação e aplicação do direito positivo pelos órgãos judiciais exercem sobre a garantia fundamental de segurança jurídica, em termos de uniformização e previsibilidade daquilo que vem a ser o efetivo ordenamento jurídico vigente no país[49].

Entretanto, para que essa função seja efetivamente desempenhada, a primeira condição exigível é que os tribunais velem pela coerência interna de seus pronunciamentos. Por isso, o novo CPC dedica tratamento especial ao problema da valorização da jurisprudência, dispondo, em primeiro lugar, que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável[50], íntegra[51] e coerente[52] (art. 926, caput).[53]

A súmula, nessa ordem de ideias, reproduz, abstrata e genericamente, a tese de direito que se tornou constante ou repetitiva numa sequência de julgamentos. O tribunal não legisla primariamente, mas ao aplicar, no processo, as normas do direito positivo, determina o sentido e alcance que lhes corresponde, segundo a experiência de sua atuação sobre os casos concretos.

Não corresponde, a súmula, a uma reprodução global do precedente (i.e., do caso ou casos anteriores julgados). Nela se exprime o enunciado que uniforme e repetitivamente tem prevalecido na interpretação e aplicação pretoriana de determinada norma do ordenamento jurídico vigente. Uma vez, porém, que os tribunais não se pronunciam abstratamente, seus julgados sempre correspondem a apreciação de casos concretos, cujos elementos são fatores importantes na elaboração da norma afinal aplicada à solução do objeto litigioso. Assim, embora o sistema de súmulas não exija a identidade dos casos sucessivos, não pode deixar de levar em conta a situação fático-jurídica que conduziu à uniformização da tese que veio a ser sumulada[54].

É importante, pois, que ao editar enunciados de súmula, o tribunal procure ater-se às “circunstâncias fáticas” em que os casos paradigma foram resolvidos (art. 926, § 2º). Em outras palavras, a súmula, em regra, identificará a ratio decidendi, que serviu de fundamento aos diversos casos que justificaram o enunciado representativo da jurisprudência sumulada. Como a causa de decidir envolve necessariamente questões de direito e de fato, também as súmulas haverão de retratar esses dois aspectos nos seus enunciados.[55]

Na sistemática de formação do “direito jurisprudencial” do CPC, a função específica do IRDR consiste em fixar, pelo tribunal, uma tese de direito, que se preste à aplicação em todos os processos atuais e futuros nos quais se debata a mesma questão de direito, que tanto pode ser de direito material como processual (CPC, art. 928, parág. único). O modus operandi é o mesmo da jurisprudência dominante do tribunal, qual seja, fixar um enunciado (ratio decidendi), representativo da norma concretizada para definir uma controvérsia jurídica, cuja observância obrigatória pelos juízes e tribunais alcança muito mais do que a resolução do processo que deu causa ao incidente, pois prevalecerá para o julgamento de qualquer processo que, doravante, gire em torno da mesma questão.

Assim, a elaboração da tese fixada pelo julgamento do IRDR há de observar os mesmos padrões preconizados pelos parágrafos do art. 926, do CPC, para a redação dos enunciados das súmulas da jurisprudência.

A tese, de tal sorte, não deve ser puramente abstrata, ou seja, divorciada do quadro fático que a justifica (art. 926, § 2º).

11 – Formulação da tese a que chegou o julgamento do IRDR

São dados importantes que o tribunal não pode ignorar no julgamento do IRDR, no que diz com a redação da tese que se vai transformar em norma para posteriores julgamentos de processos que envolvam questão igual tratada no incidente, e que são igualmente relevantes para os juízes responsáveis por sua aplicação prática, nas demandas correlacionadas com situações jurídicas similares àquelas padronizadas pelo IRDR:

  • Identidade e diversidade do suporte fático das demandas

Os precedentes são tão bons quanto mais assemelhados forem os casos a serem julgados tomando-os como base. “Perderão a sua eficácia, por outro lado, quando o contexto fático e jurídico dos casos se segmenta. Nessa situação, a controvérsia relativa à aplicação ou não do precedente reduzirá a quase zero a sua utilidade de agregar segurança jurídica”[56].

  • Abstração e concreção da tese

Também é preciso perceber – como o faz VITORELLI – que o sistema de precedentes só é vantajoso se ele não for reduzido a teses sumuladas, a ementas ou resumos de julgados. “A riqueza desse sistema está em produzir normas jurídicas a partir de contextos fáticos concretos, que possam ser comparados a outros casos. Produzir apenas mais textos abstratos significa criar um problema novo, o de um Judiciário que, efetivamente, legisla sem resolver o problema anterior, que é a incerteza da interpretação da lei enquanto texto, dificuldade esta que não depende de quem as produzir”[57]. Nosso sistema de uniformização da jurisprudência é, em última análise, um sistema de teses ou enunciados de súmula, mas estes nunca deverão omitir-se quanto ao quadro fático ou circunstancial dos processos de que resultaram as teses ou os enunciados sumulares (CPC, art. 926, § 2º)[58].

12 – Jurisprudência, súmula e precedente

Há aqueles que criticam, seriamente, o Código brasileiro por instituir um sistema de jurisprudência vinculante, tratando em promiscuidade os casos de jurisprudência dominante, súmula e precedente, como se vê dos arts. 926 e 927.

Mas, diante das características e peculiaridades do nosso sistema de vinculação ao “direito judicial” – que se manifesta, sobretudo, por meio de teses ou enunciados de súmula –, é, a nosso ver, de pequena ou nenhuma relevância para o CPC brasileiro a distinção acadêmica entre jurisprudência, súmula e precedente, embora pudesse ser interessante para a compreensão do sistema de precedentes do direito anglo-americano.

Para TARUFFO é mesmo inadequada a elaboração de uma teoria geral do precedente que se restrinja a uma simples “versão adaptada do common law[59], tendo em vista as notórias diferenças entre os regimes do civil law e do common law, no que toca à organização judiciária, à teoria das fontes do direito, à cultura dos juristas e à prática, “pois todas elas também concorrem para a impertinência da simples importação de uma teoria dos precedentes”[60]. Portanto, é evidente, para o jurista italiano, “a inadequação de uma teoria geral do precedente que seja apenas uma versão adaptada da teoria (ou de uma teoria) do precedente de common law[61].

Nessa mesma linha de ideias é o pensamento de SABRINA NASSER DE CARVALHO, formulado em torno da sistemática do Código brasileiro sobre os precedentes judiciais vinculantes: “a integração dos precedentes judiciais nos países de cultura civil law deve ocorrer sem que os operadores do direito se descurem das diferenças que marcam a sua polarização com o common law”[62].

É de se notar que os arts. 926 e 927, ao elencar os casos formadores do “direito judicial” (entendido como tal, as normas geradas por atos do Poder Judiciário), nem sequer se valem da expressão “precedente”. Reportam-se tão somente aos termos “jurisprudência dominante”, “decisões”, “acórdãos” e “enunciados de súmula”[63].

Além disso, o CPC, ao disciplinar as causas repetitivas como fontes de jurisprudência vinculante, prevê a “fixação de tese”, para aplicação obrigatória em futuros julgamentos de questões iguais à do caso paradigma (arts. 978, parág. Único; e 1.040, III). Não são os casos, portanto, que se confrontam para descobrir se há ou não precedente a observar. São teses ou enunciados de súmula que desempenham, aqui, o papel de precedentes, numa construção histórica própria e até mais antiga que a do commom law. Já em tempos reinois e coloniais funcionavam em nosso meio jurídico os assentos dos tribunais de relação, com papel assemelhado ao dos atuais enunciados de Súmula ou teses de uniformização de decisões judiciais vinculantes.

– Conclusões

1ª) O incidente de resolução de demandas repetitivas é aquele que se instaura, perante um tribunal, quando em sua jurisdição registra-se repetição de processos em torno de uma igual questão de direito, ensejando risco de soluções conflitantes que possa ofender a isonomia e a segurança jurídica(CPC, art. 976), risco esse que se coíbe mediante fixação, pelo tribunal, de tese jurídica, aplicável, dentro de sua área jurisdição, a todos os processos pendentes e futuros que versem sobre a mesma questão de direito resolvida no IRDR (CPC, art. 985).

2ª) O IRDR se insere na nova sistemática adotada pelo CPC/2015 com vistas à valorização da jurisprudência, sob dupla perspectiva: (i) proporcionar uniformidade, previsibilidade e confiança na prestação jurisdicional, respeitando, efetivamente, as garantias de isonomia e segurança jurídica; e ao mesmo tempo, (ii) perseguir uma mudança de atitude dos juízes e tribunais, que vá além da obrigatoriedade de obediência ao precedente, e que atue, especialmente, “no sentido de se produzir julgados modelares, que sirvam de referência, que gerem confiança dos cidadãos. Esse é – para MEDINA – o ponto de partida: decisões fundamentadas[64].

3ª) Sua natureza jurídico-processual é a de incidente, e não de recurso ou ação. Não se destinando a resolver o mérito de uma demanda, não se pode reconhecer a autoridade de coisa julgada à tese fixada através do IRDR.

4ª) Os únicos requisitos de admissibilidade do IRDR são os arrolados pelo art. 976 do CPC, quais sejam: (i) ocorrer “efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito”, e, (ii) ocorrer “risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica”.

5ª) Os direitos nascem sempre de fatos, de sorte que o reconhecimento deles envolve, necessariamente, análise fática e normativa.

6ª) A controvérsia (= questão) é que pode girar sobre o suporte fático (domínio da prova) ou sobre a normaque o qualifica na ordem jurídica (domínio do direito). Sendo certo que: (a) a questão de fato é, pois, a que envolve controvérsia sobre a apuração da veracidade dos fatos em que se apoiam as pretensões contrapostas pelas partes no processo; e (b) a questão de direito ocorre quando não se controverte sobre o quadro fático probatório, mas apenas sobre seu enquadramento jurídico.

7ª) Entretanto, a tese fixada pelo tribunal, embora sendo de direito, não pode se afastar das circunstâncias fáticas em que a controvérsia jurídica se instalou. Assim: a tese, in casu, é igualável ao enunciado de súmula jurisprudencial, de modo que o tribunal, no IRDR, ao enunciá-la deverá adotar teor que se atenha “às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação” (art. 926, § 2º).

8ª) O IRDR inclui-se na competência dos tribunais, mas a legitimidade para provocar sua instauração cabe tanto a juiz no primeiro grau de jurisdição como ao relator no tribunal de segundo grau (art. 977, I).

9ª) O sistema do CPC, portanto, admite IRDR a partir tanto de processo em curso em primeira instância como de processo já em andamento no tribunal. Não condiz com o sistema do CPC o condicionamento do IRDR à necessária pendência de processo no tribunal que irá julgá-lo.

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[1] CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Breves notas sobre as inovações do novo Código de Processo Civil. In: CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro; GRECO, Leonardo; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de (coords.). Inovações do Código de Processo Civil de 2015. Rio de Janeiro: Ed. GZ, 2016, p. 11.

[2] ARRUDA ALVIM, José Manoel. Novo contencioso civil no CPC/2015. São Paulo: Ed. RT, 2016, p. 521-531; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Demandas repetitivas. Direito jurisprudencial. Tutela plurindividual, segundo o novo Código de Processo Civil: incidente de resolução de demandas repetitivas e incidente de assunção de competências. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, v. 28, n. 9/10, p. 65-77, set.-out./ 2016.

[3] CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Novo Código de Processo Civil- Anotado e comparado. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 586.

[4] BARBOSA, Andrea Carla; CANTOARIO, Diego Martinez Fervenza. O incidente da resolução de demandas repetitivas no Projeto de Código de Processo Civil: apontamentos iniciais. In: FUX, Luiz (coord.). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 471; CONSOLO, Cláudio; RIZZARDO, Dora. Due modi di mettere le azioni colletive alla prova: Inghilterra e Germania. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano; Giuffrè, ano LX,  p. 901, 2006. ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. São Paulo: RT, 2012, p. 539 e ss.; CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento modelo (Musterverfahrem) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, São Paulo, n. 147, maio 2007; LEVY, Daniel de Andrade. O incidente de resolução de demandas repetitivas no anteprojeto do Novo Código de Processo Civil: exame à luz da Group Litigation order britânica. Revista de Processo, São Paulo, n. 196, p. 165-203, jun. 2011.

[5] Admitido o incidente, o relator, na forma do art. 982, I, do CPC, poderá ampliar a suspensão para todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitem no Estado ou na região, conforme o caso.

[6] CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Inovações do Código de Processo Civil de 2015, cit., p. 4.

[7] SANTIAGO, Alexandre Quintino; ROBORTELLA, Tatiana Rocha. O incidente de resolução de demandas repetitivas como instrumento de consolidação dos precedentes no Código de Processo Civil de 2015, In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos et al. (orgs.). Processo Civil contemporâneo: Homenagem aos 80 anos do Professor Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 677).

[8] DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do novo processo civil. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 242.

[9] WANDERLEY, João Flávio Vidal. O objeto e a natureza do incidente de resolução de demandas repetitivas: as situações jurídicas repetitivas e os direitos individuais homogêneos no cerne do debate. Revista de Processo, v. 285, p. 264-265, São Paulo, nov.2018.

[10] O juiz da causa e o relator em segunda instância podem, de ofício, promover a instauração do IRDR (CPC, art. 977, I).

[11] SANTIAGO e ROBORTELLA.O incidente de resolução de demandas repetitivas, cit., p. 677.

[12] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 52.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, v. III, n. 695, p. 982-983.

[13] “O incidente de resolução de demandas repetitivas visa à prolação de uma decisão única que fixe tese jurídica sobre uma determinada controvérsia de direito que se repita em numerosos processos” (TEMER, Sofia. Incidente de resolução de demandas repetitivas. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 39).

[14] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al.Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. São Paulo: RT, 2015, p. 1.396.

[15] DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do novo processo civil, cit., p. 242.

[16] BARBOSA, Andrea Carla; CANTOARIO, Diego Martinez Fervenza. O incidente de resolução de demandas repetitivas no Projeto de Código de Processo Civil: apontamentos iniciais. In: FUX, Luiz (coord.). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 503

[17] “O incidente de resolução de demandas repetitivas somente pode abranger questão unicamente de direito e o tema submetido no tribunal necessita que não exista controvérsia sobre questão de fato” (TJMG, 1ª Seção Cível, IRDR – Cv nº 1.0000.16.018615-1/001, Rel. Des. Alberto Vilas Boas, decisão publicada em 24.06.2016).

[18] “O incidente de resolução de demandas repetitivas é instrumento criado pelo novo Código de Processo Civil que objetiva, no caso de efetiva repetição de processos sobre uma mesma questão jurídica, garantir um julgamento que propicie tratamento isonômico e segurança jurídica à coletividade” (TJMG, 1ª Seção Cível, IRDR – Cv nº 1.0000.16.032832-4/000, Rel. Des. Alberto Vilas Boas, decisão publicada em 24.06.2016).

[19] “Questão unicamente de direito”, na dicção da lei, equivale a questão “eminentemente de direito”, o que ocorre quando a compreensão da hipótese fática independe de dilação probatória e se extrai “exclusivamente da análise dos documentos indispensáveis à propositura da demanda” (FICHTNER, José Antônio; MONTEIRO, André Luis. Sentença de julgamento imediato do mérito: algumas considerações sobre o art. 285-A, do CPC. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, n. 76, p. 52, jul. 2009). Não há, propriamente, in casu, uma questão unicamente de direito”, mas, sim, uma questão, no máximo, “predominantemente de direito”, porque, na espécie, “a situação de fato não traz, em si, maiores questionamentos quanto à sua existência, seus contornos e seus limites” (BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2007, v. 2, t. I, p. 127).

[20] MEDINA, José Miguel Garcia. Direito processual civil moderno. 2. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 1.481.

[21] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil, cit., p. 1.397-1.398.

[22] CAMARGO Luiz  Henrique Volpe. O incidente de resolução de demandas repetitivas no projeto de novo CPC: a comparação entre a versão do Senado Federal e a da Câmara dos Deputados. In: FREIRE, Alexandre et al. (orgs.). Novas tendências do processo civil. Salvador: JusPodivm, 2014, v. 3, p. 287.

[23] Se não são idênticos os institutos do incidente de resolução de demandas repetitivas e dos recursos extraordinários e especial repetitivos, “têm, com certeza, a mesma razão de ser e a mesma correlata finalidade. Não faz, portanto, sentido que, por meio de ambos os institutos, possa-se estar resolvendo, simultaneamente, a mesma questão de direito. Até porque, além do desperdício da atividade jurisdicional, há o risco de decisões conflitantes” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al.Primeiros comentários cit., p. 977).

[24] MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Incidente de resolução de demandas repetitivas –sistematização, análise e intepretação do novo instituto processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 116-124.

[25] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Controle das decisões judiciaispor meio de recursos de estrito direito e ação rescisória. São Paulo: Ed. RT, 2001, p. 154.

[26]Idem, ibidem.

[27] FONTOURA, Lúcia Helena Ferreira Palmério da. Recurso Especial. Questão de fato/questão de direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1993, p. 43.

[28] MEDINA, José Miguel Garcia. O prequestionamento nos recursos extraordinário e especial. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, p. 306. Idêntico é, também, o ensinamento de DIDIER e CUNHA sobre a natureza da “qualificação jurídica da prova” (DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2007, v. 3, p. 222.

[29] FONTOURA, Lúcia Helena Ferreira Palmério da. Recurso especial cit., p. 50.

[30] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual. Segunda Série. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 235.

[31] DIDIER JÚNOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil. 13. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, v. 3 p. 626.

[32] DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, v. 1, p. 439; DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil. 13. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, v. 3, p. 626-627.

[33] “Não ofende o princípio da Súmula 7 emprestar-se, no julgamento do especial, significado diverso aos fatos estabelecidos pelo acórdão recorrido. Inviável é ter ocorrido fatos cuja existência o acórdão negou ou negar fatos que se tiveram como verificados” (STJ, Corte Especial, AgRg nos EREsp 134.108/DF, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, ac. 02.06.1999, DJU 16.08.1998, p. 36). “As questões relativas ao exame da prova pericial e ao quantum fixado a título de indenização, in casu, não consistem em matéria puramente de fato. Em verdade, cuida-se a hipótese de qualificação jurídica dos fatos” (STJ, 2ª T. REsp 196.456/SP, Rel. Min. Franciulli Netto, ac. 07.08.2001, DJU 11.03.2002, p. 219) “Tanto a questão do cabimento de lucros cessantes quanto o pretendido pagamento pelo acréscimo de obras realizadas podem ser apreciados por esta Corte através da qualificação jurídica dos fatos, que difere da mera análise fático-probatória” (STJ, 2ª T., AgRg no Ag 680.476/SP, Rel. Min. Humberto Martins, ac. 26.06.2007, DJU 27.08.2007, p. 207).

[34] Por se tratar de questão de direito, “o valor da indenização por dano moral sujeita-se ao controle do Superior Tribunal de Justiça quando a quantia arbitrada se mostrar ínfima, de um lado, ou visivelmente exagerada, de outro” (STJ, 4ª T., REsp 588.572/RS, Rel. Min. Barros Monteiro, ac. 20.10.2005, DJU 19.12.2005, p. 418). No mesmo sentido: STJ, 3ª T., AgRg no Ag 585.849/RS, Rel. Min. Castro Filho, ac. 15.02.2005, DJU 07.03.2005, p. 243).

[35] As próprias leis sempre estatuem normas endereçadas a regular as situações fáticas que especificam como sendo a hipótese de sua incidência ou aplicação. Não haverá de ser diferente a edição de teses normativas criadas pelos tribunais, por meio dos diversos instrumentos processuais de uniformização da jurisprudência.

[36] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 51. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, v. III, nº 697, p. 962. No mesmo sentido: MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Incidente de resolução de demandas repetitivas –sistematização, análise e interpretação do novo instituto processualcit., p. 116-124; MEDINA, José Miguel Garcia. Direito processual civil moderno. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2016, p. 1.482; TEMER, Sofia Orberg. Incidente de resolução de demandas repetitivas: tentativa de sistematização…., cit., p. 83-87; BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de processo civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 613; MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil:tutela dos direitos mediante procedimento comum. São Paulo: Ed. RT, 2015, v. 2, p. 580-581.umHm

[37] CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Inovações do Código de Processo Civil de 2015, cit., p. 13.

[38] DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil cit., v. 3, p. 625.

[39] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 481.

[40] MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Incidente de resolução de demandas repetitivas cit, p. 118.

[41] MENDES, op. cit., p. 118-119.

[42] CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Inovações do Código de Processo Civil de 2015, cit., p. 13.

[43] “É claro que o IRDR pode ter se originado de processo já em tramitação no tribunal. De modo algum, se pretendeu afastar esta possibilidade, que decorre expressamente do sistema instituído, na medida em que pode ser instaurado pelo juiz ou relator (inciso I do art. 977), ensejando clara interpretação de que tanto os processos em tramitação perante a primeira instância quanto no tribunal poderão ensejar o pedido de instauração, pelo próprio órgão judicial ou pelos demais legitimados (incisos II e III do art. 977)”. (MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas cit., p. 121).

[44]Op. cit.,loc.cit.

[45] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015, p. 439.

[46] O precedente no direito brasileiro é muito diverso daquele conhecido no common law, “já que no sistema instituído pelo Novo Código de Processo Civil, diferente do que ocorre com o precedente do direito anglo-saxão, o julgamento já nasce predestinado a se tornar um precedente vinculante” (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 9.ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 1.390).

[47] Destaca Bustamante que atualmente tanto os magistrados do common law quanto os do civil law se preocupam com os precedentes jurisprudenciais. No entanto, a atitude de uns e outros varia. Enquanto juízes do common law buscam estabelecer uma comparação entre o precedente e o caso a julgar a partir dos chamados “fatos materiais”, os do civil law buscam extrair dos julgados anteriores um pronunciamento em forma de regra, tratando-o de forma abstrata, como norma (cf. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012, cit.inRevista de Processo, v. 260, p. 31, out/2016).

[48] TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte de direito. São Paulo: RT, 2004. p. 12.

[49] “Com[o] se pode perceber, há sério comprometimento do sistema de jurisprudência adotado no Brasil [antes do CPC/2015], porquanto a insegurança e a intranquilidade da interpretação do direito ficam patente[s] tanto interna corporis como em uma escala vertical, no âmbito do judiciário, deixando o jurisdicionado apreensivo diante de um direito que pode ter mais de uma interpretação” (SANTIAGO, Nestor Eduardo Araruna; MAGALHÃES, Átila de Alencar Araripe. Novo Código de Processo Civil e função qualitativa dos precedentes: um debate necessário. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, v. 74, p. 81, set/2016). Registra ZANETI que no sistema seguido pelo CPC/1973, o que, em geral, se observava era que as decisões, com muita frequência, se caracterizavam como contraditórias, gerando instabilidade nos posicionamentos dos tribunais na interpretação e aplicação da lei (ZANETI JÚNIOR, Hermes. Precedentes [treat like cases alike] e o novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, v. 235, p. 295, São Paulo, set/2014).

[50] O próprio tribunal que construiu o precedente deve manter-se fiel a ele, evitando, quanto possível, decisões posteriores discordantes.

[51] A integralidade reclama do julgador que atente não só para as regras relacionadas diretamente com o caso, mas que tenha sempre uma visão da inteireza dos princípios estruturantes do ordenamento jurídico (FREIRE, Alexandre; FREIRE, Alonso. Elementos normativos para a compreensão do sistema de precedentes judiciais no processo civil brasileiro. RT, v. 950, p. 219-220, dez/2014). Ou seja, essa exigência explica “por que os juízes devem conceber o corpo do direito que administram como um todo, e não como uma série de decisões distintas que eles são livres para tomar ou emendar uma por uma, como nada além de um interesse estratégico pelo restante” (DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambrige, Mass.: Harvard University Press, 1986, p. 167). A jurisprudência, enfim, deve ser construída como um todo sistemático.

[52] “A coerência pressupõe que o juiz ou tribunal julgue conforme a orientação adotada em julgamentos anteriores envolvendo causas iguais ou semelhantes em seu conteúdo e teses. Traz, com isso, estabilidade e segurança jurídica, portanto” (THEODORO NETO, Humberto. A relevância da jurisprudência no novo CPC. In: THEODORO JÚNIOR, Humberto; OLIVEIRA, Fernanda Alvim Ribeiro de; REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (coords). Primeiras lições sobre o novo direito processual civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 678).

[53] Para implantar racionalmente a sistemática do CPC/2015, o STJ criou a Comissão Temporária Gestora de Precedentes (Portaria STJ/GP N. 475 de 11 de novembro de 2016). Hoje, vigora a Resolução N. 299 de 19 de julho de 2017, que não mais considera a NUGEP como temporária e que delega ao Ministro Presidente da referida Comissão, os seguintes poderes: I – despachar, antes da distribuição, em recursos indicados pelos Tribunais de origem como representativo da controvérsia; II – decidir, resolvendo os incidentes que suscitarem, os requerimentos de suspensão de todos os processos individuais ou coletivos em curso no território nacional que versem sobre a questão objeto de incidente de resolução de demandas repetitivas em tramitação; III – entender-se com outras autoridades ou instituições sobre assuntos pertinentes às atribuições previstas no art. 46-A do Regimento Interno (Resolução N. 299 de 19/07/2017, art. 2º).

[54] “Não é exigível identidade absoluta entre casos para a aplicação de um precedente, seja ele vinculante ou não, bastando que ambos possam compartilhar os mesmos fundamentos determinantes” (CEJ/ I Jorn. Dir. Proc. Civ., Enunciado nº 59). Karl Larenz, ao tratar do “direito judicial”, formado a partir dos “precedentes”, fala em decisão que “representa um paradigma, um modelo para futuras resoluções que se refiram a casos semelhantes, nos quais tenha relevância a mesma questão jurídica” (Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 610-611). Vale dizer, as causas não precisam ser exatamente iguais. A questão jurídica em jogo é que precisa ser a mesma.

[55] O art. 926 do CPC/2015 é a chave de leitura do direito jurisprudencial brasileiro e visa estabelecer premissas mínimas para a aplicação dos precedentes em nosso direito. “Louvável ressaltar o § 2º do art. 926 do CPC/2015 que determina que qualquer enunciado jurisprudencial, precedente ou súmula somente poderá ser aplicado e interpretado levando-se em consideração os julgados que o formaram” (g.n) (COTA, Samuel Paiva; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes. Modelo constitucional de processo e suas benesses: a reconstrução da teoria dos precedentes no direito brasileiro vs. a compreensão equivocada do seu uso no Brasil. Revista de Processo, v. 260, p. 29, out/2016).

[56] VITORELLI, Elisson. A prática do sistema de precedentes judiciais obrigatórios: entre fantasmas e potenciais. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos, et al (orgs).  Processo civil contemporâneo- homenagem aos 80 anos do Professor Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 765.

[57] Idem, ibidem.

[58] THEODORO JÚNIOR, Humberto, Curso de direito processual civil, 52ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2019, v. III, nº 611, p. 837/839.

[59] TARUFFO, Michele. Páginas sobre justiça civil. Barcelona: Marcial Pons, 2009, p. 542-543.

[60] CARVALHO, Sabrina Nasser de. Decisões paradigmáticas e dever de fundamentação: técnica para a formação e aplicação dos precedentes judiciais. Revista de Processo, v. 249, p. 445, São Paulo, nov./2015.

[61] TARUFFO, Michele. Op. cit., p. 543.

[62] CARVALHO Sabrina Nasser de. Op. cit., p. 446. Adverte a autora que, “por esta razão, a aproximação entre eles deve ocorrer de forma gradual, respeitando-se a tradição histórica e cultural do sistema jurídico de cada país. Isso, no entanto, não impede que eles se influenciem mutuamente, formando-os permeáveis aos benefícios e às vantagens que cada um pode oferecer”.

[63] O termo “precedentes” só é utilizado uma única vez pelo art. 927, em seu § 5º, com o nítido propósito de indicar coletivamente todos os casos arrolados nos cinco incisos do respectivo caput. Portanto, na linguagem do nosso CPC, precedente não tem o significado especial que lhe confere o common law, mas o de um gênero a que se integram as diversas espécies de atos de tribunais reunidos pelo referido art. 927.

[64] MEDINA, José Miguel Garcia. Direito processual civil moderno. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2016, p. 1.209. De fato, para o CPC/2015, a fundamentação das decisões judiciais é exigência de norma fundamental (art. 11). Não basta, porém, que um argumento qualquer seja utilizado como razão de decidir ratio decidendi). É indispensável que os fundamentos sejam lógicos, completos e adequados juridicamente, segundo a garantia do processo justo (arts. 6º, 9º, 10º, 489, II, e §§ 1º e 2º).


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