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O erro médico e a responsabilidade civil – parte 1

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O erro médico e a responsabilidade civil – parte 1

ADVERTÊNCIA PRELIMINAR

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

ERRO MÉDICO

RESPONSABILIDADE CIVIL

RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO

Humberto Theodoro Júnior

Humberto Theodoro Júnior

07/01/2020

Na primeira parte do artigo “O erro médico e a responsabilidade civil”, o autor Humberto Theodoro Júnior apresenta a introdução do tema. Confira:

Advertência preliminar

A presença da ordem jurídica na atividade profissional do médico é enorme, como, aliás, se dá com qualquer técnico que se dedique a alguma das denominadas “profissões liberais”. Preceitos dos mais diferentes matizes  interferem desde a habilitação técnica exigida, passando pelas especializações pós universitárias, pela ética profissional, pelo contrato de prestação de serviços, pelos direitos e deveres estabelecidos entre o facultativo e seus pacientes, tanto de caráter econômico como social, até, por fim, a penosa e discutida disciplina da responsabilidade civil pela falha cometida no tratamento do enfermo.

Não sendo nosso propósito discorrer sobre todo esse imenso universo jurídico, que hoje forma um ramo científico denominado “Direito Médico”[1], cumpre delimitar o âmbito daquilo sobre que nos dispusemos a abordar, esclarecendo, desde logo, que nosso intento é, quanto possível, mais informativo e prático, já que buscaremos, sobretudo, anunciar as posições mais ou menos estabilizadas na jurisprudência dos tribunais superiores em torno dos principais problemas da responsabilidade civil profissional, estando cientes de que iremos falar para uma assistência formada majoritariamente por não profissionais da área jurídica.

Estamos seguros, por exemplo, de que o problema da ética médica é causa de cruciantes preocupações, que transcendem a ordem legal e, por isso, tem sido explorado e enfrentado mais intensamente no plano filosófico, voltado para valores abstratos, e, consequentemente, insatisfatórios quando se acham expostas as agruras do dia-a-dia profissional e social, já que não se chega, na seara filosófica, a apontar univocamente regras e avaliações de comportamento concretas e pragmáticas.

O debate sobre temas angustiantes como o aborto, a reprodução assistida, a concepção in vitro, a barriga de aluguel, a interferência genética no ser humano, a eutanásia, a anencefalia e muitos outros de iguais dimensões, mais acende dúvidas e conflitos ideológicos do que aponta normas a iluminar o futuro das pesquisas e técnicas manejáveis pelos cientistas e profissionais da medicina contemporânea.

A sociedade, por seu turno, se mantém em estado de perplexidade e desconforto no plano da crise dos costumes e tradições, não sabendo que valores prestigiar no nebuloso embate entre a ciência e a moral, travado em torno dos bens mais valiosos para o homem civilizado, que são a vida e a dignidade humana[2].

À ordem jurídica cabe, instintivamente, sistematizar todas as atividades profissionais, mas não pode fazê-lo autoritária e discricionariamente. A lei põe ordem na convivência social, mas para pacificar a sociedade tem de fazê-lo legitimamente, ou seja, em sintonia com a cultura e os costumes dominantes. Não basta a racionalidade. Direito e moral se interagem de forma circular. A legitimação e autoridade da lei se fazem presentes, em plenitude, quando os valores prestigiados por um e outra são homogêneos. Quando a cultura não logra definir com precisão seus valores, inglória é a tentativa do direito de normatizar os segmentos controvertidos do comportamento social, em determinado momento histórico.

É numa quadra como esta que a ética médica e a lei vivem diante do cenário atual de volumoso e imprevisível progresso científico em atrito com a ausência de critérios axiológicos sólidos para balizar e delimitar adequadamente as normas jurídicas pertinentes.

Mas, não é esse o objeto da presente exposição, mesmo porque, o dilema atual se planteia, predominantemente, no terreno filosófico, no qual, infelizmente, não nos consideramos preparados com adequação para um enfrentamento sério.

O que intentaremos abordar é algo muito mais singelo e, ao mesmo tempo, mais rente aos interesses práticos da profissão médica e dos direitos patrimoniais imediatos dos consumidores dos relevantíssimos serviços de tutela da saúde. É, pois, da responsabilidade civil dos médicos e das entidades hospitalares, na ótica sobretudo da jurisprudência, que nos acuparemos.

Introdução à responsabilidade civil

Denomina-se responsabilidade civil a obrigação de indenizar decorrente da prática de um ilícito danoso, na esfera civil. Difere da responsabilidade penal, que decorre da prática de crime, e sujeita o infrator a pena prevista em lei operante na esfera do direito público.

A responsabilidade civil – dever de indenizar – pode ser aquiliana ou contratual. É aquiliana (ou extracontratual) a que decorre da infração do dever primário de não lesar a ninguém, funcionando, portanto, como a sanção genérica do ato ilícito civil danoso. É contratual, a oriunda do descumprimento das obrigações geradas especificamente pelo contrato.

A previsão legal da responsabilidade aquiliana consta do art. 186 do Código Civil, in verbis: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. E os efeitos do ato ilícito são previstos no art. 927 do mesmo Código: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187) causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. A indenização, outrossim, será medida pela “extensão do dano” (art. 944). Se este foi moral, a reparação será arbitrada equitativamente pelo juiz (art. 953, parág. único; art. 954, etc).

A responsabilidade negocial, por seu turno, está dimensionada pelo art. 389 do Código Civil: “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos e honorários de advogado”.

Como se vê, em qualquer caso, seja contratual ou extracontratual, a indenização corresponderá sempre às dimensões do dano suportado pelo ofendido.

Problemas atuais da responsabilidade civil

Quem fala em responsabilidade civil pensa em ato ilícito danoso e no dever ético-jurídico de indenizar o prejudicado, dever esse que toca ao culpado pelo evento antijurídico.

Durante séculos, vigorou o singelo esquema jurídico de configuração da responsabilidade civil, assentado em três elementos essenciais: a) o dano injurídico; b) a culpa; e c) o nexo causal entre o dano da vítima e o ato culposo do agente. Assim, nem todo dano nem toda ilicitude deveriam ser sancionados com o dever de indenizar, mas somente aqueles que, não encontrando justificativa jurídica, reunissem todos os requisitos legais essenciais, os quais, dessa maneira, funcionariam como filtros da apuração da responsabilidade civil.

Com a evolução da cultura nos dois últimos séculos, todavia, assistiu-se a uma verdadeira erosão dos filtros que, juridicamente, separavam os danos indenizáveis, dos não indenizáveis, provocando uma avalanche de litígios, numa crescente e incontrolável busca de reparação para quase todos os danos inevitáveis na convivência social. Até mesmo danos hipotéticos, como a perda de uma chance, e danos não materializados, como os extrapatrimoniais ou morais, são hoje objeto de reparação sempre patrimonial. Indeniza-se, sempre economicamente, entre outros, dano à honra e à imagem, que poderia, por exemplo, ser reparado eficaz e satisfatoriamente por meio de retratação pública. Os tribunais, nada obstante, insistem na velha praxe de a sanção ética, mesmo quando a lesão seja puramente moral, não ser suficiente para reparar civilmente a lesão qualquer que seja ela.

Por sua vez, o elemento culpa – justificativa moral que sempre explicou o dever de reparar o dano –, praticamente vem sendo erodido. Em lugar da responsabilidade subjetiva (lastreada na culpa), cada vez mais a lei contempla casos de responsabilidade objetiva. Vale dizer: impõe-se a indenização mediante tão só apuração da autoria do ato e do resultado danoso[3]. O Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, coloca o dever de indenizar o dano acontecido nos fornecimentos de bens e serviços de consumo, sem qualquer indagação de culpa. O próprio Código Civil admite vários casos de presunção de culpa por atos de terceiros, e adota em diversas circunstâncias a responsabilidade baseada tão somente no risco criado por atividades classificadas como perigosas[4].

Até mesmo no campo da responsabilidade subjetiva, onde a vítima tradicionalmente tinha o ônus de provar a culpa do causador do dano, a situação se alterou muito, com a possibilidade de inversão desse encargo, admitida pelo Código de Processo Civil, em amplitude que vai muito além das relações de consumo. Com isso, em lugar de se exigir da vítima do dano (autor da ação de indenização) a prova da conduta culposa do réu (agente do ato danoso), o que ocorre, corriqueiramente, é a imputação ao demandado de comprovar ter agido sem culpa, aliviando assim, o pretendente à indenização, do encargo de provar um dos elementos essenciais da responsabilidade civil: a culpa.

Não só as noções de dano e culpa foram fragilizadas e até suprimidas em muitos casos de responsabilidade civil, contentando a jurisprudência com simples e problemáticas presunções. Também o nexo causal acha-se erodido em face das discordantes teorias que procuram definir filosoficamente o que se deve entender por causa do evento ilícito danoso indenizável. Com isso, os tribunais não conseguem firmar uma teoria unívoca sobre a causalidade jurídica, e com a aplicação ora de uma ora de outra teoria, acabam implantando insegurança e desconfiança no seio da sociedade[5].

Registra-se, com o descompromisso dos tribunais com as técnicas precisas de delimitação do dano indenizável e com a adoção de práticas fragilizadoras ou flexibilizadoras dos elementos da culpa e do nexocausal, a observância de critérios decisórios que muito se aproximam da discricionariedade judicial. Demandar, hoje, em torno de responsabilidade civil, importa quase sempre disputa aleatória, em crescente proporção, principalmente quando se enfoca a posição daquele de quem se reclama a reparação civil do dano.

Antes, pois, de iniciar o tratamento da responsabilidade civil decorrente do erro médico, fica aqui este preocupante registro: a segurança jurídica e a justiça, no campo da reparação do ilícito civil, acham-se expostas a graves riscos, na quadra histórica de nosso tempo. É que a prova da culpa e do nexo causal, tradicionais filtros da reparação civil, vem perdendo, gradativamente, o papel decisivo nas causas da espécie. O que, infelizmente, se constata é a elasticidade com que os julgadores descartam as regras tradicionais de aferição desses elementos essenciais do dever de indenizar, em prol da discricionária e reiterada “responsabilização de algum agente mais preparado a suportar a ampla reparação dos danos”[6].

Diante dessa expansão generalizada da reparação civil do dano a qualquer custo, o mais prudente é a adoção de políticas preventivas para evitar os atos danosos ou para contar com expedientes asseguradores de sua eventual reparação, sem choques desestabilizadores da situação econômica do fornecedor de bens e serviços na complexa ordem econômica e social de nosso tempo. Seguro público obrigatório, ou privado facultativo, emprego crescente de tecnologia e especialização profissional no campo da segurança e prevenção, e outras medidas políticas e sociais são recomendações que a doutrina jurídica vem preconizando para que os profissionais se preparem melhor para o clima de risco atualmente implantado no País, com destaque para atividade médica e hospitalar.

A responsabilidade civil do médico, em particular

No passado discutiu-se muito sobre se seria contratual ou extracontratual a responsabilidade civil aplicável à reparação dos danos acarretados ao paciente por falha no tratamento imputável ao médico que o assistia. É que a relação jurídica, na espécie, não era relacionada no campo dos contratos e só surgia no Código de 1916 quando se tratava da reparação dos atos ilícitos.

A distinção entre os casos de responsabilidade aquiliana e de responsabilidade contratual era importante, porque, na primeira, a vítima do ato ilícito tinha o ônus de provar a culpa do agente causador do dano, enquanto o dever de reparar perdas e danos do contratante faltoso decorria imediatamente do fato do descumprimento do negócio jurídico. Havia, por isso, dispensa da prova da culpa, que se presumia a partir do inadimplemento. Ao inadimplente é que tocava o ônus de provar sua ausência de culpa pelo evento.

Ainda sob o regime do Código Civil, doutrina e jurisprudência, embora reconhecendo a natureza contratual da relação entre médico e paciente, resolvam que, pela natureza particular das obrigações contraídas pelo médico, sua responsabilidade civil dependeria de prova de ter incorrido em culpa, como, aliás, dispunha o art. 1.545 do Cód. Civ./1916.

A situação se consolidou com o advento do Código do Consumidor, que não só, de um lado, incluiu entre os contratos de consumo as relações travadas entre médico e paciente, como de outro, as excluiu da responsabilidade objetiva (independente de culpa) que instituiu para os contratos em geral ajustados entre fornecedores e consumidores (CDC, art. 14). Expressamente o CDC estipulou: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais [categoria em que se incluem os médicos] será apurada mediante a verificação de culpa” (CDC, art. 14, § 4º).

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[1] FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico. 15.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019; DANTAS, Eduardo. Direito médico. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2009.

[2] A chamada bioética há algum tempo vem sendo trabalhada pela teoria dos princípios, sob influxo de ideias e valores manejados abstratamente nos domínios da pura filosofia. Mas, adverte GENIVAL VELOSO DE FRANÇA, “é da essência do filósofo criar mais problemas que soluções”. Tenta-se, hoje, fugir das teias do filosofismo, pela técnica do antipriciologismo, cuja justificativa moral “é de que aqueles princípios se conflitam entre si, criando-se uma disputa acirrada pela hierarquia deles”. Afirma-se, entre outros argumentos, que os bioéticos se apoiam em princípios “insuficientes para satisfazer as necessidades dos dias de hoje e para trazer respostas aos desafios do exercício da medicina atual”. Há, ainda, os que veem tais princípios como “por demais abstratos e distantes das situações que se apresentam na prática do dia-a-dia do médico. Quando os principialistas discutem entre si, tem-se a impressão que os caminhos da ética são muitos e são diferentes … A verdade é que o médico vem se estruturando dentro de certas situações difíceis, onde os princípios mais tradicionais nem sempre lhe asseguram a certeza de uma correta tomada de posição. Vão se estruturando de acordo com uma necessidade que sempre está em franca evolução. Mesmo que ele disponha de sua própria consciência, sob a inspiração de uma tradição milenar, não pode ficar indiferente a tudo isto que se verifica em seu redor. Tem-se a impressão que a ciência e a arte começam a fugir do seu domínio, num verdadeiro conflito de obrigações e deveres” (FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico, cit., p. 37).

[3] “No entanto, atualmente, essa teoria [a da responsabilidade subjetiva] começa a ser contestada, por várias razões: a imprecisão do conceito de culpa pelo seu cunho teórico e caracterização imprecisa, o surgimento da responsabilidade sem culpa, o sacrifício do coletivo em função de um egoísmo individual sem imputabilidade nos tempos atuais e a socialização do direito moderno” (FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico, cit., p. 291).

[4] “Atualmente, um exame abrangente das diversas hipóteses de responsabilidade objetiva existentes em cada ordenamento jurídico revela, em muitos deles, o seu distanciamento da própria noção de risco e a sua afirmação como simples responsabilidade independente de culpa” (SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil. Da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 250).

[5] “Embora tal fenômeno seja geralmente descrito como uma lamentável atecnia judicial, mais realista parece a constatação de que os tribunais têm simplesmente se recusado a dar ao nexo causal um tratamento rigoroso e de consequências aflitivas como o que fora, anteriormente, reservado à culpa. A postura eclética das cortes no que tange à aferição da relação de causalidade revela, de fato, que os magistrados têm se preocupado mais com os resultados concretos a serem alcançados, que com a técnica empregada em seus julgamentos” (SCHREIBER. Op. cit., p. 250-251).

[6] “A erosão dos obstáculos tradicionais ao ressarcimento resulta, obviamente, em uma crescente expansão dos danos ressarcíveis, a exigir, também dos estudiosos, um deslocamento do foco de suas atenções, que passa da culpa e do nexo causal ao dano, como elemento primordial da responsabilidade civil e locus privilegiado para a aferição da responsabilidade” (SCHREIBER. Op. cit., p. 251).


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