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FILOSOFIA DO DIREITO
TRABALHO
Precarização do trabalho parte 1: a Lei Geral
José Manuel de Sacadura Rocha
11/12/2019
O materialismo histórico-filosófico que nos orientou leva-nos a afirmar que no trabalho o homem se “aliena”, e pela ociosidade estética o homem alcança a possibilidade criativa e a autonomia condizentes para a produção da cultura. Não é possível afirmar, ainda, que integralmente, os artistas e agentes culturais já tenham à sua disposição o tempo e a autonomia desvinculada das formas tradicionais dos sistemas de produção mercantil. Mas é possível observar que no estádio atual de desenvolvimento técnico-científico das sociedades capitalistas, o tempo de trabalho disponível aumenta sistematicamente, que uma quantidade maior de indivíduos sobrevive economicamente em atividades criativas, culturais e de lazer, que o trabalho econômico deixa de ser porto seguro para a subsistência dos trabalhadores assalariados e que as novas gerações estão se dirigindo cada vez mais constantemente para o trabalho estético, compelidos a isso pelos altos níveis de desemprego para o emprego tradicional.
Deve-se considerar neste ponto, antes de continuarmos, um problema fundamental e correlato, ainda que a nosso ver como transição, no processo de desenvolvimento técnico-científico da produção: a precarização do trabalho assalariado capitalista, trabalho vivo, nas atividades econômicas imediatas geradoras de valor.
Com o desenvolvimento do capital fixo, das máquinas e das demais ciências naturais (química, física, biologia, neurociências etc.), da mecatrônica, das infociências e das redes de comunicação assíncronas (não localizadas e não presenciais), o primeiro sintoma para as trabalhadoras e trabalhadores é a precarização de suas atividades, já verificada pelos autores no século XIX[1] – baixa de salários, devido ao aumento da massa de assalariados disponíveis, incremento da velocidade de produção, produtividade exigida pela adaptação desses trabalhadores às máquinas em menos horas de trabalho, intensa exploração do trabalhador nas atividades econômicas ainda menos intensivas em tecnologia, como no setor de atendimento e vendas e serviços ligados à circulação de mercadorias, depreciado todo o trabalho gerador de valor pela iminência de ser a qualquer tempo substituído pelo capital fixo e engordar as massas de desempregados e subempregados.
Esta dimensão da precarização do trabalho assalariado é irrefutável, os países mais avançados de liberdade econômica sofreram seus efeitos e os localizados na periferia do sistema capitalista sentem agora o pior desses efeitos, principalmente nos momentos mais medonhos de crises cíclicas do capital. Os autores[2] têm repetidamente chamado a atenção para os efeitos visíveis de precarização do trabalho assalariado mais evidente e desastroso nas atividades onde as relações contratuais são dispensáveis ou praticamente inexistentes. Mas não poderia ser de outra forma: no período da consolidação dos monopólios de capital financeiro, o trabalho humano como produtor de valor é sempre dispensável, cuja velocidade limite do capital é não socializar de vez a distribuição de riqueza geral (ver-se obrigado a distribuir riqueza social para incentivar o consumo por formas diversas daquelas do trabalho assalariado), enquanto a distribuição dessa mesma riqueza permanece atrelada à forma jurídica do contrato de trabalho entre particulares, qual seja a venda de força de trabalho em troca de salários.
Se se distribuísse a riqueza social geral – gerada anteriormente e reproduzida, ainda em muitos casos e lugares, como mais valor subtraído do tempo excedente de trabalho – de forma equidistante e justa ao menos para prover a vida material dos indivíduos com dignidade, cessaria toda a sobre-exploração, como a exploração do sobretrabalho não pago se extingue naquele que se despede do processo imediato de produção e circulação, toda vez que a máquina, o autômato, a informática, a química e a física associada tomam seu lugar.
A contradição do sistema de livre mercado coloca-se por aquilo que chamamos de lei geral do valor: os capitalistas não investem aleatoriamente parte sempre crescente da riqueza social extraída do mais valor em máquinas e ciência, nem por causa da demanda social por mais víveres e bens. O desenvolvimento e aquisição de capital fixo diminuem de fato a acumulação do excedente gerado de riqueza, e contrariamente ao que se coloca pelo pensamento da economia liberal, a máquina e os demais aspectos desse capital apenas podem “produzir” valor, transferir valor de troca aos produtos, na medida, e só na medida em que ele próprio é resultado de conhecimento social coletivo anterior e produto do trabalho vivo, ou capital circulante (mão de obra assalariada não paga pelo excedente de valor produzido) que se incorporou nele. A máquina não produz valor e dela não se pode obter mais valor.
Quanto ao aumento de demanda ela é geradora de mais lucro ou valor excedente na medida em que se compele o trabalho assalariado a produzir sempre mais em menos tempo – aqui a primeira atitude da gerencia a serviço do capital é extrair maior quantidade de mais valor dos trabalhadores até que exista riqueza gerada suficiente ao ponto do capital ver a possibilidade de investimento a partir dos excedentes obtidos, pois em último caso, e é o que acontece mais frequentemente, os preços sobem e a demanda volta a diminuir.
O mesmo processo se verifica quando existe uma superprodução quando então “o trabalho necessário é interrompido porque não há trabalho excedente para ser valorizado pelo capital” (MARX, 2011, p. 590). O que vem a ser isto? Quando o capital sofre de uma superprodução significa, em termos gerais, que a indústria e o mercado estão “esgotando” em seu seio a população excedente destinada à produção direta de produtos, portanto, que a extração de mais valor diminui, chegou ao limite de sua apropriação, ou o que é o mesmo, que o tempo de trabalho excedente não pode ser apropriado pelo capitalista investidor, voltando esse tempo disponível para a massa de trabalhadores.
Como se vê, a lógica “natural” seria a suspensão do reinvestimento de parte do mais valor em máquinas e processos de transformação científicos na indústria e circulação – superprodução vem acorrentada ao excesso de máquinas e equipamentos avançados. Mas o mercado de livre concorrência é muito pouco “natural”, ele se atém de fato a uma correlação de forças produtivas e relações sociais em desenvolvimento, cuja inevitabilidade é uma contradição irresolvível em seus próprios termos. Como Marx (2011, p. 590) o afirmou ainda diante do precário desenvolvimento técnico-científico do século XIX: “Todavia, sua tendência é sempre, por um lado, de criar tempo disponível, por outro lado, de convertê-lo em trabalho excedente”.
[Continua na parte 2]
Fonte: Núcleo de Ética Jurídica
[1] Marx cita Thomas Hodgskin, Charles Babbage, Andrew Ure, Robert Owen (MARX,Karl.Capital fixo e desenvolvimento das forças produtivas da sociedade. In: Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011).
[2] Ricardo Antunes (Os Sentidos do Trabalho, 2011); Ruy Braga (A política do precarizado: do populismo à hegemonia lulista, 2012).
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