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Da Bolívia, com amor
Luiz Carlos dos Santos Gonçalves
12/11/2019
A Bolívia é um país incrível, pleno de contrastes e belezas. Quem vai a La Paz, Cochabamba ou Santa Cruz de La Sierra percebe uma sociedade vibrante, lutando para sair da pobreza, ainda em dívida com a maior parte de sua população, que é de origem indígena[1].
O país está vivendo tempos conturbados, nos quais um candidato disputava a oportunidade de ser Presidente pela quarta vez consecutiva, tendo vencido eleições com alegações de fraude. Houve manifestações de rua, sinais de inconformismo na sociedade civil e, afinal, um pronunciamento policial-militar que levou à renúncia do mandatário-candidato. Ainda é incerto quem ocupará o poder e quando serão realizadas as novas eleições recomendadas pela Organização dos Estados Americanos.
Esses eventos bolivianos sugerem reflexões que podem ser úteis para a compreensão da situação institucional brasileira. Afinal, somos um dos poucos países nos quais tarefas administrativas eleitorais foram confiadas ao Poder Judiciário. A Justiça Eleitoral cadastra os eleitores, registra os candidatos, colhe e apura o voto, diploma os vencedores e julga as controvérsias derivadas das campanhas. Noutros locais, a maior parte destas tarefas é confiada a órgãos administrativos, cabendo à Justiça somente o julgamento de controvérsias, na maior parte das vezes por órgãos judiciais não especializados.
Houve o desrespeito a uma consulta popular realizada em 2016, na qual os bolivianos decidiram que manteriam o texto de sua Constituição, que no artigo 168 proíbe mais de uma reeleição sequencial. A razões que o Tribunal Supremo Eleitoral Boliviano invocou para permitir esse novo mandato estão baseadas no artigo 21 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, incisos 1 e 2, segundo os quais: “Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direção dos negócios públicos do seu país, quer diretamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos” e, “Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país”. Infelizmente, a Corte não deu a devida atenção a este mesmo artigo 21, que prossegue, inciso 3, dizendo que “A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos: e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto” .
A experiência boliviana também enseja uma segunda reflexão, relativa à independência dos órgãos de controle eleitoral. O Tribunal Supremo Eleitoral interrompeu a contagem dos votos no pior momento possível, no qual se desenhava a chance de realização de um segundo turno. Esta decisão levou à renúncia de um de seus Ministros. Esse ato, além da autorização para a disputa do quarto mandato, suscitou dúvidas sobre a independência e a imparcialidade da Corte.
Diante das notícias da crise político-eleitoral boliviana, a vetusta proposta de exigir a impressão do voto nas eleições brasileiras voltou a ser cogitada.
Reflito, mas indico minha falta de isenção. Afinal, atuei perante a Justiça Eleitoral brasileira, no papel de fiscal, por muitos anos. Integrei o Ministério Público Eleitoral entre 2006 e 2010, auxilei a Procuradoria Geral Eleitoral entre 2014 e 2016 e fui Procurador Regional Eleitoral de São Paulo entre 2016 e 2019.
Se, apesar disso, minhas reflexões podem vir à luz, elas servem para indicar o seguinte.
Em primeiro lugar, indicamos a inconveniência de interpretar uma norma jurídica, ainda que internacional, segmentando-a, isolando dispositivos. A República supõe alternância dos exercentes dos poderes legislativo e executivo e não parece que esta exigência seja contrária aos direitos humanos. Às vezes se faz essa interpretação, por exemplo, do Pacto Interamericano de Direitos Humanos, de São José da Costa Rica. Ao perceber que seu artigo 22 não indica o pertencimento a partidos políticos como condição de elegibilidade, muitos sustentam que essa exigência seria ofensiva de direitos humanos. Marcelo Peregrino, conhecedor do tema, não incide neste erro e aponta julgado da própria Corte Interamericana de Direitos Humanos – Castañeda Gutman v. México, julgado em 6 de agosto de 2008 – favorável à necessidade de filiação a partido político [2].
Em segundo lugar, podemos aprender com a crise de nosso vizinho e valorizar algo que temos de bom no Brasil. A Justiça Eleitoral surgiu, em 1932, justamente porque os poderes executivo e legislativo provaram mal, quando organizavam as eleições. Elas eram permeadas de fraudes e achincalhes e o resultado que produziam não era confiável. Ao longo deste período, o Judiciário Eleitoral realizou bons trabalhos. Ainda que sejamos críticos de um certo governismo que acomete de vez em quando os tribunais eleitorais, nada indica que não tenhamos uma Justiça altiva e independente. Ainda que o preço de funcionamento de toda a máquina judiciária-eleitoral seja elevado, o custo de um sistema eleitoral não confiável e respeitado pela sociedade civil pode ser muito mais alto.
A terceira reflexão diz respeito ao voto impresso. O Supremo Tribunal Federal, por duas vezes – ADI 4543, 2013 e 5889, 2018 – já se pronunciou no sentido de sua inconstitucionalidade. Ele favorece a compra de votos, põe em dúvida o segredo do voto e ainda conturba os procedimentos de tomada e apuração, que ficariam a mercê de milhares de impressoras e dos rompantes próprios das paixões eleitorais. Basta alguém ter olhado de relance para o papel impresso, achando-o diverso do que pensou ter votado, para que a quizília se estabeleça.
Confiamos na urna eletrônica. Nunca tivemos, ao longo destes anos de atuação ministerial, indícios concretos de manipulação ou fraude. E nunca achamos que denúncias nesse sentido deveriam ser “engavetadas”: cabe à Justiça Eleitoral esclarecer cada detalhe, cada tecla mal premida, cada inversão na ordem de votação, cada mal funcionamento do aparelho. Os resultados das eleições passadas – que consagraram como vitoriosos os maiores críticos do equipamento – são eloquentes.
Não somos contrários, porém, a uma elevação do número de urnas auditadas. A Resolução 23.574/2018, do TSE, prevê que serão auditadas de 6 a 15 seções eleitorais em cada Estado. É preciso admitir que isso é pouco. Nestes locais, haverá eleição eletrônica e com votos de papel, propiciando a comparação. O número destas seções auditadas poderia crescer significativamente, desde que a sociedade esteja informada de que isto elevará os custos do processo eleitoral.
Aprender com as vicissitudes dos outros é prova de maturidade; mudar o que está dando certo, não.
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[1] Recomendo a viagem. Em La Paz, há uma montanha símbolo, o Inti Illimani, de mais de cinco mil metros de altura. Estive lá uma vez, há muito tempo atrás. Prova de que faz tempo é que eu consegui subir até o topo!
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