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Acordo de leniência na Lei Anticorrupção: pontos de estrangulamento da segurança jurídica – Parte 1
Thiago Marrara
09/08/2019
A Advocacia Geral da União em conjunto com a Controladoria Geral, de um lado, e a Odebrecht, de outro, celebraram um dos maiores e mais impactantes acordos de leniência do país. Diante de irregularidades em aproximadamente cinco dezenas de contratos administrativos com o governo federal, a empreiteira, no acordo, comprometeu-se a adotar uma política de integridade e a devolver aos cofres públicos dois bilhões e setecentos milhões de Reais em até 22 anos. [1]
Aos leigos, a notícia acima soa muito bem. Afinal, o governo logrou reaver bilhões de Reais graças ao sucesso da leniência – instituto que “pegou”, diferentemente de muitos, criados pelo legislador num dia, mas esquecidos no outro. Entretanto, àqueles que se dedicam ao estudo do polêmico acordo administrativo, a notícia causa inúmeras perplexidades e dúvidas. É possível tratar de reparação de danos em leniência? Há limitação temporal às obrigações pactuadas? É lícito unir, sob única leniência, dezenas de atos tipificados na Lei Anticorrupção brasileira? Quais são, afinal, as funções, o regime e o nível de flexibilidade que caracterizam esse tipo de acordo integrativo dos processos sancionadores na Administração Pública?
Todas essas perguntas convergem a uma dúvida maior: qual é o grau de segurança jurídica que o regime legal oferece a quem deseja celebrar acordos como o noticiado em 2018? Com o escopo de contribuir com a elaboração de uma resposta a essas inquietações e lançar estímulos a potenciais futuras reformas da Lei Anticorrupção, o presente texto se inicia com um resgate da definição do acordo de leniência, buscando tornar mais claros seus traços distintivos em relação a outros ajustes que ganharam força ao longo do gradual movimento de consensualização da Administração Pública brasileira.
Em seguida, apresenta, com suporte em um método dogmático, analítico e crítico, as características gerais do regime jurídico do programa de leniência para atos de corrupção, levando em conta as determinações tanto legais, quanto infralegais. Com isso, em conclusão, objetiva-se demonstrar: (i) quais são as falhas e lacunas existentes no modelo adotado pelo legislador brasileiro; (ii) como atos normativos posteriores reagiram diante desses problemas e (iii) o que, após a edição de tantas normas, necessita ser aperfeiçoado para que se possa dar o devido grau de segurança jurídica e previsibilidade aos interessados em fazer uso desse acordo de cooperação nos três níveis federativos.
Acordo e programa de leniência: definições relevantes
Diz o ditado: “O uso do cachimbo entorta a boca”. Na prática da Administração Pública, não há nada mais verdadeiro. Ao longo do tempo, pequenas distorções ou má-aplicações de institutos se consolidam e acabam por gerar problemas estruturais, não raro a exigir que o ordenamento se adapte ou que a jurisprudência os reinterprete para preservar suas funcionalidades.
A preocupação com a definição do acordo de leniência se enraíza exatamente na necessidade de se evitar que o uso inadequado do instituto venha a distorcer a lógica do modelo de gestão pública consensual e, mais que isso, a fragilizar a política de combate à corrupção por meio de inseguranças criadas por invenções quotidianas sem qualquer respaldo no ordenamento jurídico. Em outras palavras, o resgate da definição do ainda novo conceito em debate serve não apenas para guiar a discussão vindoura de seu regime jurídico, senão igualmente para fixar suas funções, de maneira a desestimular seu emprego indevido em substituição ou em prejuízo de outros instrumentos de gestão pública, inclusive acordos como os compromissos de cessação de prática.
Diante dessa premissa, portanto, considera-se imprescindível reafirmar a definição de acordo de leniência como “ajuste que integra o processo administrativo sancionador mediante celebração pelo ente estatal que titulariza, na esfera administrativa, o poder de punir e, de outro lado, por um infrator que se propõe a colaborar com o Estado na execução de suas tarefas instrutórias no intuito de obter, em troca da cooperação e do adimplemento de outras obrigações acessórias, a mitigação ou a imunização das sanções estatais aplicáveis nesse mesmo processo administrativo ou fora dele”.[2]
O acordo de leniência, tal como definido, envolve duas partes. De um lado, posiciona-se o infrator, que se dispõe a cooperar com a produção de provas, colaborando com a instrução e a busca da efetividade processual. Confesso e disposto a colaborar, o infrator age por conta e risco, assumindo todos os custos, financeiros ou não, da cooperação na produção de provas, bem como os riscos de exposição social e midiática, de eventual persecução em outros processos etc.
Ele não assume, porém, obrigação de resultado, ou seja, de que o processo culmine numa decisão administrativa condenatória. Sua obrigação é de reforçar e robustecer a instrução, com a comprovação da materialidade e da autoria dos ilícitos, tornando-se perfeitamente concebível que a cooperação se confirme ainda que não advenha a condenação de todos os acusados. De outro lado, como contratante, o Estado se propõe a agir de modo leniente, suave, brando no exercício de seu poder punitivo. O acordo lhe acarreta a obrigação de reduzir ou extinguir sanções potencialmente aplicáveis ao infrator confesso.
Cabe a ele, por conseguinte, o verdadeiro papel de leniente – papel que se justificará perante a sociedade na medida em que a brandura punitiva for compensada pela obtenção de provas que permitirão a persecução e a provável condenação de outros infratores. [3]
Em síntese, o acordo de leniência:
a) constitui acordo de direito administrativo, vinculado no geral a processos administrativos, [4] diferentemente da delação premiada, regida pelo direito penal. Na leniência, não se debatem infrações penais, ainda que, a depender do modelo adotado, o legislador possa conferir ao colaborador alguns benefícios quanto a potenciais sanções criminais com o intuito de incrementar a atratividade do programa de cooperação com a Administração Pública – o que, vale dizer, infelizmente não se previu na Lei Anticorrupção.
b) integra um processo administrativo punitivo, convivendo com a via unilateral de decisão estatal. Dito de outro modo: a leniência é acordo integrativo, uma vez que convive com o processo e o acompanha até sua conclusão, buscando torná-lo viável ou alcançar um resultado útil.
Em contraste, os compromissos de cessação de prática suspendem o processo administrativo e, após o cumprimento das obrigações, ocasionam seu arquivamento, de modo que não se chega a uma decisão, condenatória ou absolutória, em relação ao infrator compromissário.
c) pressupõe um comportamento pretensamente ilícito, ainda em curso ou já cessado, e sempre desenvolvido em coautoria. Por força dessa premissa, reputa-se ilegítima e imotivada a leniência celebrada com todos os infratores. Essa prática impossibilitaria o exercício do poder punitivo e negaria a própria essência do acordo. Leniência não é perdão, nem técnica de renúncia de competências. Na verdade, as características desse acordo são a comutatividade, a cooperação e o utilitarismo diante das finalidades do processo punitivo; e
d) exige que a Administração Pública não detenha condições de, por si só, desenvolver com sucesso as atividades instrutórias do processo administrativo sancionador. Por sua essência e função, a leniência se harmonizará com o princípio da moralidade administrativa somente quando se observarem simultaneamente duas condições básicas: o Estado não dispuser de condições de desenvolver a instrução de modo satisfatório por seus próprios meios e o infrator, que busca a leniência, mostrar-se apto para entregar provas robustas, capazes de contribuir efetiva e significativamente com a instrução processual. Na falta dessas condições, não deverá ser celebrado o acordo, sob pena de se utilizá-lo com a finalidade exclusiva de beneficiar um dos acusados em detrimento de outros – o que, novamente, representaria desvio da finalidade. [5]
O “acordo” de leniência, tal como definido, não se confunde com o conceito mais amplo de “programa” de leniência, que equivale à política de cooperação instrutória e abrange diversas fases que ultrapassam em grande medida a vida do mero acordo de leniência. O programa inclui, portanto:
- A fase de qualificação: essa é a etapa em que as autoridades públicas recebem propostas de negociação do acordo. A propositura ocorrerá antes da abertura do processo administrativo sancionador (leniência prévia) ou ao longo do processo (leniência concomitante). Não existe, porém, leniência posterior à conclusão do processo. Durante a qualificação, caberá ao Estado organizar a lista de interessados e verificar quais cumprem os requisitos legais que os habilitam a apresentar uma proposta. Para organizar a demanda pelo acordo, deverá adotar a distribuição de senhas pela sequência temporal de chegada ou outro qualquer meio que diferencie os infratores interessados conforme o momento de manifestação de seu desejo de adesão ao programa, pois a Lei Anticorrupção impede a celebração de leniência com mais de uma pessoa jurídica dentro de um mesmo processo. Especificamente no âmbito federal da política de combate à corrupção, o art. 31, § 2º, do Decreto 8.420/2015 prevê que a formalização da proposta será realizada por meio de memorando de entendimentos entre a pessoa jurídica proponente e a CGU.
- A fase de negociação e de celebração: após a ordenação dos interessados em colaborar com o Estado, o órgão competente deverá iniciar o estudo da primeira proposta qualificada e as negociações conforme a ordem de chegada. Caso as negociações com o primeiro qualificado se revelem infrutíferas, iniciam-se negociações com o próximo da lista de qualificados até que um acordo venha a ser celebrado. É ainda possível que se retome a fase de negociação após uma leniência firmada, mas frustrada ao longo de sua execução, ou seja, descumprida – isso será viável desde que o processo ainda não tenha se encerrado.
- A fase de execução do acordo: uma vez concluída a negociação de modo exitoso, celebra-se o acordo de leniência e inicia-se sua execução, ou seja, o cumprimento das obrigações nele dispostas por conta e risco do infrator colaborador. Como dito, ele age por risco próprio, uma vez que a leniência não o imuniza contra todas as esferas de responsabilização que decorrem de sua iniciativa de delatar e colaborar com o Estado na apuração de fatos nos quais ele mesmo está envolvido. Ele age igualmente por conta própria, pois assume todos os custos da colaboração.
- A fase de avaliação do acordo: a última fase do programa é a de avaliação. Nela se verificam se foram atingidos os objetivos do acordo celebrado e, sobretudo, se o colaborador executou as obrigações que assumiu de boa-fé. Essa avaliação ocorre simultaneamente à condenação e nela se definem os benefícios a se conferir ao colaborador. Excepcionalmente, em casos de inadimplemento grave ao longo da fase de execução, deve ser possível ao Estado encerrar de modo antecipado o acordo e, como dito, iniciar novas negociações com outro infrator colaborador. [6]
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[1] Disponível em: [www.cgu.gov.br/noticias/2018/07/acordo-de-leniencia-com-a-odebrecht-preve-ressar-cimento-de-2-7-bilhoes]
[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago (Orgs.). Lei anticorrupção comentada. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 196.
[3] Fala-se aqui de “provável condenação”, pois, a despeito de um acordo de leniência bem executado, não é de se descartar que, ao final do processo sancionador, a entidade administrativa competente entenda que o comportamento confesso não configure ilícito.
[4] Apenas em casos excepcionais poderá a leniência ser empregada a despeito de um processo administrativo. No âmbito da Lei Anticorrupção, como a ação civil pública pode ser manejada para aplicar ao infrator as sanções administrativas em caso de omissão do ente público lesado, é concebível que o MP celebre a leniência independentemente do processo administrativo de responsabilização (PAR).
[5] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago (Orgs.). Lei anticorrupção comentada. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 196-198.
[6] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago (Orgs.). Lei anticorrupção comentada. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 211-212.
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