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Exame da Lei 13.831/2019: menos dinheiro para as mulheres e o provisório que nunca se acaba

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Exame da Lei 13.831/2019: menos dinheiro para as mulheres e o provisório que nunca se acaba

DIREITO ELEITORAL

FUNDO PARTIDÁRIO

LEI 13.831

LEI Nº 9.096

MULHERES

MULHERES NA POLÍTICA

PARTICIPAÇÃO POLÍTICA FEMININA

Luiz Carlos dos Santos Gonçalves

Luiz Carlos dos Santos Gonçalves

16/07/2019

Novas leis eleitorais costumam vir à lume nos anos ímpares – para reger as eleições que ocorrem no ano par subsequente – e, normalmente, surgem por volta de setembro. Quando são aprovadas antes disso – por exemplo, em maio – convém prestar mais atenção. É o caso da Lei 13.831 de 2019. Para adiantar a conversa, a lei trouxe duas maldades. A primeira, que tem recebido certa atenção da mídia, é a anistia dada aos partidos que descumpriram a exigência de gastar 5% dos recursos do Fundo Partidário em programas de promoção da participação política feminina. A segunda é uma interpretação muito peculiar do que se pode considerar “provisório”.

Exame da Lei 13.831/2019

A exigência de gastos de recursos do Fundo Partidário com a promoção da participação feminina está na Lei dos Partidos Políticos, n 9.096/95, art. 33

“V – na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e mantidos pela secretaria da mulher do respectivo partido político ou, inexistindo a secretaria, pelo instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política de que trata o inciso IV, conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total;”

O Fundo Partidário é composto, principalmente, por recursos públicos. A vinculação de 5% de seu montante, em prol das mulheres, visa afastar alegação muito comum das direções partidárias, a de que não há mulheres preparadas, em quantidade suficiente, para se tornarem candidatas. Isso explicaria a dificuldade das agremiações partidárias em atender à quota de 30% de mulheres nas eleições para o legislativo. A ideia da lei, portanto, era a de que esse percentual fosse gasto em fomento, preparação e formação política para os talentos femininos. Trata-se de valor, sob todas as luzes, muito acanhado, mas que, ainda assim, era descumprido.

Ocorre que a Lei 9.096/95 permite o uso dos recursos do Fundo Partidário nas campanhas eleitorais, art. 44. Não deveria fazê-lo, especialmente depois que foi criado o Fundo Especial de Financiamento das Campanhas, Lei 13.487/2017. Entretanto, conforme a Consulta n. 060024793, respondida pelo TSE em maio de 2018, essa possibilidade permanece.

Quando o partido não gasta os 5% para a promoção da participação feminina, exige-se que ele transfira o saldo para conta específica, utilizando-o no exercício financeiro subsequente, sob pena de multa. É o que consta do art. 44 da Lei 9.096/95:

“§ 5º O partido político que não cumprir o disposto no inciso V do caput deverá transferir o saldo para conta específica, sendo vedada sua aplicação para finalidade diversa, de modo que o saldo remanescente deverá ser aplicado dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% (doze inteiros e cinco décimos por cento) do valor previsto no inciso V do caput, a ser aplicado na mesma finalidade. “

Em caso de descumprimento, os partidos terão suas contas rejeitadas, sendo obrigado à devolução da quantia apontada como usada irregularmente, além de multa de 20% sobre o valor não utilizado. A Justiça Eleitoral descontará essa importância de repasses futuros do Fundo Partidário (art. 49 da Resolução23.546/2017 do TSE).

É contra essas sanções que se apresenta a primeira maldade da Lei 13.831/2019. Ela alterou a Lei dos Partidos Políticos, que passou à seguinte redação:

“Art. 55-A. Os partidos que não tenham observado a aplicação de recursos prevista no inciso V do caput do art. 44 desta Lei nos exercícios anteriores a 2019, e que tenham utilizado esses recursos no financiamento das candidaturas femininas até as eleições de 2018, não poderão ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade.”

Art. 55-C. A não observância do disposto no inciso V do caput do art. 44 desta Lei até o exercício de 2018 não ensejará a desaprovação das contas.”

Ou seja, se aquele percentual de 5% do Fundo Partidário tiver sido utilizado em campanhas femininas, haverá anistia. Nem as contas partidárias poderão ser rejeitadas, com esse fundamento, nem subsistirá a necessidade de repassar, para conta específica, o valor integral que não foi utilizado, para emprego no ano subsequente. Afinal, a lei diz:

“Art. 55-B. Os partidos que, nos termos da legislação anterior, ainda possuam saldo em conta bancária específica conforme o disposto no § 5º-A do art. 44 desta Lei poderão utilizá-lo na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres até o exercício de 2020, como forma de compensação.”

Ao fazê-lo, ofende a Constituição.

O percentual de 5% dos recursos do Fundo Partidário, bem como a obrigação de lançar ao menos 30% de candidatas aos cargos proporcionais, se inserem numa política de ação afirmativa, tendente a minorar a histórica desigualdade de gênero na composição das casas legislativas. O Brasil ocupa posição vexatória nos “rankings” de igualdade, na comparação com outras nações. Menos do que 15% da Câmara dos Deputados é composta por mulheres; nas assembleias legislativas e câmaras municipais, a situação ainda é pior. As razões para isso são a misoginia das estruturas partidárias e, notadamente, de suas direções.

Deixadas à própria conta, essas instâncias lançam apenas candidatos homens; se lançam mulheres, é em menor número; quando lançam, não financiam. Foi preciso uma decisão do Supremo Tribunal Federal para obrigar os partidos a utilizar ao menos 30% dos recursos (de novo, públicos) em prol de suas candidatas (ADI 5.617) e outra do TSE (Consulta 0600252-18) para exigir que, do 1,7 bilhão de reais do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas Eleitorais, se respeitasse a quota-parte das mulheres.

As ações afirmativas oferecem posições de vantagem para setores que, por variadas razões, competem em desigualdade de condições. O objetivo é, portanto, a promoção da igualdade, princípio e finalidade constitucional seguidamente reiterada. Só no “caput” do artigo 5º, a igualdade é mencionada duas vezes:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (…)”

E o primeiro inciso deste catálogo de direitos fundamentais é, justamente, o seguinte:

“I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;”

Essas posições de vantagem, as quotas, não tem a vocação da perenidade. Devem ir se atenuando na medida em que as condições materiais e sociais que traziam a desigualdade forem, por igual, se atenuando. No caso da participação política feminina, tal atenuação ainda não se apresenta. Os avanços têm sido discretos, ainda que constantes. O total de deputados federais é 513. Destes, eram 55 mulheres na legislatura de 2015/2018 (10,72%¨) e 77 para o período 2019/2022 (15%). Não temos dúvida em indicar que, para esse resultado, as ações afirmativas vigentes foram de grande valia. Entretanto, sem desmerecer o avanço efetivamente ocorrido, ele fica tímido se considerarmos que as mulheres representam cerca de 51% do total da população brasileira. Em síntese, não é a hora, ainda, de relaxar ou diminuir a ação afirmativa.

Uma atuação do poder público, inclusive normativa, que enfraquece uma ação de combate à desigualdade, é equivalente a uma ação que a amplia. Deste modo, a Lei 13.831/2019 padece de inconstitucionalidade. Outro modo de apresentar essa eiva é fazer referência à proibição do retrocesso. Uma política pública que buscava cumprir a Constituição – e vinha obtendo êxito nesse caminho – não pode ser descontinuada, a não ser que razões igualmente ponderáveis e constitucionais se apresentem. Não é o caso. Trata-se da destinação de recursos públicos, dados a instituições privadas (os partidos políticos), com vinculação muito moderada: 5%.

Não nos impressiona o argumento de que a anistia é condicionada. Afinal, não ocorrerá a reprovação das contas se aqueles valores tiverem sido utilizados em campanhas femininas. É importante destacar que, mesmo com as quotas de lançamento de candidatas e utilização dos recursos, 70% deles continuam a ser utilizados nas campanhas dos candidatos homens. Mesmo com o emprego total daqueles 5%, ter-se-ia, então, a metade do valor masculino: 35%. É uma diminuição da garantia mínima representada pela ação afirmativa.

Ademais, a lei não distingue se o emprego se deu em candidaturas majoritárias ou proporcionais femininas. O risco é que se procure aplicar a anistia mesmo que os recursos tenham sido empregados em prol de candidatas a senador, presidente, prefeito ou governador, enquanto as quotas são, claramente, orientadas para as candidaturas proporcionais. Vão querer dizer que os recursos dados a candidatos majoritários homens, desde que o suplente ou o vice sejam mulheres, justificará a anistia. Essa argumentação é pragmática, mas também avança no sentido da inconstitucionalidade da norma.

A segunda maldade da norma está na autorização para que os diretórios regionais e municipais dos partidos tenham organização provisória por oito anos.

Trata-se do segundo “round” da resposta que os partidos políticos deram a gestões que o Tribunal Superior Eleitoral vinha fazendo no sentido de obrigar os partidos políticos a apresentar a estruturação definitiva de seus diretórios, pois alguns permaneciam em configuração provisória ao longo de anos e anos. A Resolução 23.465 do TSE tinha estabelecido um prazo de cento e vinte dias. Era um prazo prorrogável, afinal, que ressalvava ainda a possibilidade de o estatuto partidário prever período diverso. Veio um direito no queixo: o Congresso Nacional aprovou a Emenda l nº 97, que deu nova redação ao artigo 17 da Constituição:

“§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna e estabelecer regras sobre escolha, formação e duração de seus órgãos permanentes e provisórios e sobre sua organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações nas eleições majoritárias, vedada a sua celebração nas eleições proporcionais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária. (grifamos)

O texto emendado não dispensou os partidos, porém, de definirem, em seus estatutos, o prazo de duração de seus órgãos provisórios. Com esse fundamento, a Corte indeferiu o registro de alterações estatutárias de um partido político, que não fixava esses prazos (RPP 141796).

Posteriormente, a Resolução 23.571/2018 dispôs que o prazo máximo dos órgãos provisórios seria de 180 dias, se os estatutos partidários não previssem prazo distinto.

Nessa disputa, a lei 13.831/2019 é, comparativamente, apenas um “jab”, um soco rápido:

“Lei 9.096/95

Art. 3º

……..

§ 2º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir o prazo de duração dos mandatos dos membros dos seus órgãos partidários permanentes ou provisórios.

§ 3º O prazo de vigência dos órgãos provisórios dos partidos políticos poderá ser de até 8 (oito) anos

§ 4º Exaurido o prazo de vigência de um órgão partidário, ficam vedados a extinção automática do órgão e o cancelamento de sua inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ).”

Ela regulamenta o prazo máximo de oito anos para as direções provisórias, se os estatutos nada disserem. O exagero é patente: anos, ao invés de meses. É um período equivalente a duas legislaturas do Congresso Nacional, ao tempo de mandato de um Senador. Sem deslembrar que, ao proibir a extinção automática dos órgãos provisórios e o cancelamento do CNPJ se abre a possibilidade de prorrogação, por mais oito anos. Quem sabe se, depois destes, outros mais?

Pode ser que a maior facilidade de desconstituição destes órgãos provisórios interesse às direções nacionais dos partidos políticos. O qualificativo “provisório”, como na novilíngua Orwelliana[1], passa a significar algo com extensa duração…

É desproporção que sinaliza, por igual, a inconstitucionalidade.

Entretanto, nesse trecho, a Lei 13.831/2019 traz uma esperança.

A autonomia partidária costuma ser indicada como obstáculo à atividade legiferante, mesmo quando esta procura exigir dos partidos políticos a atenção a comandos constitucionais. Nessa hora, costuma-se lembrar que os partidos são pessoas jurídicas de direito privado e que a Constituição lhes assegura autonomia.

Não seria possível, por esta leitura, uma lei que exigisse deles o respeito a regras democráticas de composição de suas direções, de participação dos filiados e de escolha dos candidatos. Tudo isso ficaria apenas ao talante da própria organização. Ao estabelecer um prazo máximo, ainda que exagerado, a Lei 13.831/2019 demonstra o contrário. Se a lei pode se imiscuir em assuntos partidários para ferir a Constituição, pode fazê-lo também para assegurar sua plena efetividade.”

Fonte: Cachaça Eleitoral

[1] “1984”, de George Orwell, no qual palavras dizem exatamente o oposto do que, de fato, significam.

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