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A Recente Lei do Distrato (Lei nº 13.786/2018): O Novo Cenário Jurídico dos Contratos de Aquisição de Imóveis em Regime de Incorporação Imobiliária ou de Loteamento (Parte 2)

ATRASO NA ENTREGA DO IMÓVEL

ATRASO NO PAGAMENTO

DIREITO DE CESSÃO DE CONTRATO

IMÓVEL

INADIMPLÊNCIA

LEI Nº 13.786/2018

LEI Nº 4.591/64

LEI Nº 6.766/76

MULTA

MULTA MORATÓRIA

Flávio Tartuce

Flávio Tartuce

29/01/2019

Por Carlos E. Elias de Oliveira e Bruno Mattos e Silva*

O § 9º do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 livra o adquirente inadimplente de pagar a multa compensatória pela ruptura do contrato se ele encontrar um sucessor com capacidade financeira e econômica suficiente para assumir o polo contratual. Trata-se, na verdade, de uma verdadeira cessão de contrato admitida por esse dispositivo. Foi atécnico o texto legal quando se referiu ao termo “sub-rogue”, pois essa sucessão no polo contratual não configura uma sub-rogação – que é fruto do pagamento de uma dívida por um terceiro (art. 346, CC) e que é uma hipótese de extinção da obrigação –, e sim uma cessão de contrato. A cessão de contrato envolve uma assunção de dívida (art. 299, CC) e uma cessão de crédito (art. 296, CC) pelo terceiro que assumirá o polo contratual.

Como requisito, o § 9º do art. 67-A exige o consentimento do incorporador a idoneidade financeira.

Quanto ao primeiro requisito, entendemos que o incorporador só pode negar o consentimento mediante justo motivo fundado na inidoneidade financeira do sucessor. É que, se o legislador tivesse deixado esse consentimento ao puro arbítrio do incorporador, o dispositivo seria absolutamente inútil e não teria inovado, em nada, a ordem jurídica, pois a cessão de contrato já é admitida pela legislação atual mediante consentimento da outra parte. O dispositivo em pauta precisa ser interpretado sob a presunção de que ele inova o ordenamento jurídico e de que criou um efetivo “direito subjetivo”, ou seja, uma faculdade de agir (facultas agendi) ao adquirente no sentido de constranger o alienante a aceitar a cessão contratual em favor de um terceiro financeiramente idôneo.

Quanto ao segundo requisito (a idoneidade financeira), o sucessor precisa ser aprovado em pesquisas de cadastros e demonstrar sua capacidade financeira. A lei não detalha como isso será feito; caberá ao incorporador valer-se de meios razoáveis para essas pesquisas de cadastros e para a comprovação da saúde financeira do sucessor.

Por fim, destaque-se que esse direito de cessão do contrato para evitar a multa compensatória só é prevista para casos de incorporação imobiliária, e não para casos de loteamento. A nova lei não inseriu dispositivo similar na Lei nº 6.766/76. Todavia, entendemos que a omissão legislativa para o loteamento deve ser suprida por aplicação analógica do § 9º do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 aos casos de aquisição de lotes.

No caso de inadimplemento relativo pelo adquirente (atraso no pagamento das prestações), ele terá de suportar uma multa moratória pactuada, a qual não poderá exceder a 2% do valor da prestação por força do art. 52, § 1º, do CDC. A nova lei nada mudou nesse aspecto.

No caso de inadimplemento relativo pelo incorporador (atraso na entrega do imóvel), este terá de pagar indenização de 1% a.m. sobre o valor pago pelo adquirente, conforme § 2º do art. 43-A da Lei nº 4.591/64. Alerte-se que a base de cálculo não é o valor do imóvel, e sim o valor pago.

O referido dispositivo não afirmou que esse 1% a.m. sobre o valor pago era uma multa. O texto legal afirma que, no caso de atraso na entrega do imóvel, o incorporador terá de pagar “indenização” de 1%.

Daí surgem duas questões: essa indenização prefixada é uma multa moratória? O adquirente poderá cobrar, além dessa indenização prefixada, o valor por lucros cessantes correspondente ao atraso na entrega do imóvel e outras indenizações por danos materiais e morais sofridos?

A nova lei pecou na técnica ao ter sido omisso no tratamento direto da matéria, embora tenha, no § 3º do art. 43-A da Lei nº 4.591/64, dado uma singela pista ao insinuar que essa indenização é uma multa. Até o advento dessa nova lei, a jurisprudência predominante é no sentido de que, no caso de atraso na entrega do imóvel, o incorporador tem de pagar multa moratória cumulada com indenização integral pelos lucros cessantes, os quais correspondem ao valor mensal do aluguel do imóvel. Cabia ao legislador, que tinha ciência desse entendimento jurisprudencial dominante, ter expressamente disciplinado a matéria.

Em nenhum momento, o § 2º do art. 43-A da Lei nº 4.591/64  especifica se a qual tipo de dano essa indenização se destina a reparar. Será que essa indenização está a reparar os lucros cessantes correspondente à indisponibilidade do imóvel atrasado? Ou será que está a reparar danos morais eventualmente sofridos? Ou será que a indenização é por outros danos materiais que possam ter sido sofridos pelo adquirente? Tampouco esse dispositivo legal vale-se de um advérbio de exclusão para assentar que o adquirente somente poderá cobrar essa indenização.

É de antever o cipoal de controvérsias doutrinárias sobre o tema.

Ao nosso aviso, a nova lei deve ser interpretada sob a presunção de que o legislador conhecia o entendimento jurisprudencial preponderante, firmado no sentido de que o consumidor poderia cobrar da incorporadora uma multa moratória de 2% a.m. (fruto da inversão da multa moratória cobrada contra o consumidor) em cumulação com uma indenização por lucros cessantes correspondente ao valor do aluguel do imóvel, sem prejuízo de outras indenizações devidas. Se o legislador quisesse afastar essa cumulação, ele teria sido expresso, pois sabia do quadro jurisprudencial predominante. O legislador, todavia, não foi expresso em vedar a cumulação. E, considerando que a cláusula penal é uma indenização prefixada que pode ser cobrada independentemente de prejuízo e que também tem função punitiva, entendemos que a indenização de 1% de que trata o § 2º do art. 43-A da Lei nº 4.591/64 tem natureza jurídica de uma multa moratória. Isso é confirmado pelo fato de o § 3º desse art. 43-A aludir à referida indenização como “a multa prevista no § 2º”.

Desse modo, temos que a nova lei, em relação ao quadro jurisprudencial anterior, somente reduziu a multa moratória de 2% do valor do imóvel para 1% do valor pago. A nova lei não impede, portanto, que, além dessa multa moratória, o adquirente possa cumulativamente cobrar indenização por lucros cessantes (pela indisponibilidade do imóvel), por dano moral (se o caso admitir) ou por outros danos materiais, tudo mediante prova do prejuízo. A discussão relativa à cumulação de multa moratória com outras indenizações não foi atingida pela nova lei; ela continua girando em torno da correta interpretação do art. 416, parágrafo único, do CC. Ao nosso aviso, a jurisprudência anterior à nova lei já se equivocava em admitir a cumulação por contraria o art. 416, parágrafo único, do CC. Para nós, o mais adequado era admitir que a multa moratória era um início de indenização, de maneira que o credor só poderia cobrar indenização SUPLEMENTAR, e não integral, mediante prova de que o prejuízo excedia ao valor da multa moratória. A jurisprudência, todavia, preferia focar a natureza punitiva da multa moratória do que a sua natureza indenizatória.

Em síntese, no caso de atraso na entrega do imóvel, o incorporador tem de pagar multa moratória de 1% do valor pago pelo adquirente, sem prejuízo do direito de este cobrar integralmente indenização por lucros cessantes (pela indisponibilidade do imóvel), por outros danos materiais comprovados e por danos morais eventualmente existente. Acrescemos que o mero atraso na entrega do imóvel não gera dano moral, mas, a depender do caso concreto, poderá haver alguma excepcionalidade a caracterizar esse tipo de dano.

A nova lei não trata da multa moratória para o caso de atraso na entrega do lote, ao contrário do que fez em relação a imóveis em regime de incorporação imobiliária. É verdade que o terreno que compõe o lote é um bem já existente; todavia, a infraestrutura que serve ao lote é um bem futuro. Se o loteador atrasar a entrega dessas obras de infraestrutura, indaga-se: poderia o adquirente do lote cobrar multa moratória e outros encargos moratórios?

Ao nosso aviso, a resposta é positiva, mas a base de cálculo da multa moratória e dos outros encargos moratórios deve ser proporcional à expressão econômica que as obras de infraestrutura possuem no preço do lote. Assim, do preço pago pelo lote, deve-se estimar quantos por centos correspondem ao valor da infraestrutura do terreno. É que a obrigação do loteador perante o adquirente não é a de simplesmente entregar um terreno desnudado, mas também o de prover-lhe da correspondente infraestrutura. Afinal de contas, sua obrigação é a de entregar um lote, assim entendido o terreno servido de infra-estrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situe” (art. 2º, § 4º, Lei nº 6.766/79).

O novo art. 43-A, § 2º, da Lei nº 4.591/64 estabelece que, no caso de atraso na entrega do imóvel alienado em regime de incorporação imobiliária, o adquirente só terá direito à indenização (multa moratória, para nós) de 1% a.m. sobre o valor efetivamente pago se ele estiver adimplente. Não há preceito similar para loteamento.

Esse preceito precisa ser interpretado conforme à Constituição Federal para evitar a mancha da inconstitucionalidade. É que, se, de um lado, o preceito acima condiciona o recebimento da multa moratória pelo consumidor à sua adimplência, por outro lado, a nova lei não faz qualquer exigência de o incorporador estar adimplente para receber a multa moratória do consumidor que atrasou o pagamento de prestações. Nesse sentido, a lei incorreria em “dois pesos e duas medidas” a atrair a pecha da inconstitucionalidade por ofensa ao princípio constitucional da isonomia.

Para evitar isso, entendemos que o dispositivo acima precisa ser interpretado conforme à Constituição para restabelecer a igualdade (material, e não formal) entre as partes. E, para tanto, precisamos tomar um cuidado. É que o ordenamento permite, como mecanismo de autotutela, a exceptio non adimpleti contractus (exceção de contrato não cumprido), prevista no art. 476 do CC. Por essa medida, a parte de um contrato bilateral legitimamente e independentemente de ordem judicial pode reter a prestação enquanto a outra não cumprir a contraprestação.

Sob essa ótica, indaga-se: o adquirente tem de pagar a multa moratória sobre as suas prestações no caso de atraso do incorporador?

Para responder, precisamos separar as prestações anteriores ao início do atraso do incorporador das prestações posteriores.

Em relação às prestações posteriores ao início do atraso, temos o seguinte. Se o adquirente, após o atraso do incorporador, abstém-se de pagar as prestações vencidas durante esse período de atraso, ele não poderá ser obrigado a pagar a multa moratória sobre esses valores, pois está valendo-se legitimamente da exceptio non adimpleti contractus. Não há atraso injustificado do adquirente em honrar seu débito e, portanto, não há mora. Nesse caso, só o incorporador está em mora. Temos ser desnecessário que o adquirente consigne em juízo o valor das parcelas, pois isso só iria desproporcionalmente onerar a sua situação com o dispêndio de tempo e de recursos financeiros para a propositura de uma ação judicial de consignação em pagamento. Para nós, basta que o adquirente retenha as prestações e disponha-se a pagá-las, no momento em que o incorporador purgar a mora oferecendo as chaves do imóvel.

Todavia, quanto às prestações vencidas anteriormente ao período de atraso, é certo que, até a data do início do atraso na entrega do imóvel, o adquirente está em mora e, portanto, terá de pagar a multa moratória e os demais encargos moratórios incidentes sobre essas prestações até esse momento. O problema é definir se, após esse momento (o do início do atraso na entrega do imóvel pelo incorporador), o adquirente deverá ou não continuar pagando os encargos moratórios. Entendemos que o adquirente só terá de pagar os encargos moratórios se o incorporador já tiver concluído a construção e estiver retendo propositalmente a entrega das chaves enquanto o adquirente regularizar a própria situação. É que, nesse caso, o incorporador não estará em mora, mas sim no exercício da exceptio non adimpleti contractus. Todavia, se o incorporador não tiver concluído a construção, isso significa que ele não tem condições materiais de entregar as chaves se o adquirente pagar as prestações antigas, de maneira que o adquirente não poderá ser mais constrangido a pagar as prestações vencidas. Nesse caso, o adquirente deixa de estar em mora a partir do momento em que se configurou o atraso no término da construção (ou seja, no momento em que o habite-se não foi obtido no prazo estipulado) e, portanto, não terá de suportar multa moratória nem outros encargos moratórios sobre as suas prestações antigas. O adquirente, a partir daí, estará a exercer a exceptio non adimpleti contractus.

Ainda sob essa perspectiva, indaga-se: o incorporador tem de pagar multa moratória e outros encargos moratórios em razão do atraso na entrega do imóvel mesmo se o adquirente estiver inadimplente?

Não há dúvidas de que, se o adquirente está com prestações atrasadas, o incorporador também pode valer-se da exceptio non adimpleti contractus e negar entregar-lhe as chaves do imóvel enquanto ele não pagar essas prestações acrescidas de multa moratória e outros encargos moratórios. Nesse caso, o incorporador não terá de pagar multa moratória, porque não está em mora, e sim no exercício legítima da exceptio.

Alerte-se, porém, que isso só ocorrerá se a obra já estiver construída com o devido “habite-se” e se o incorporador já estiver com as chaves em mãos para entregar ao adquirente logo após este quitar as prestações pendentes. É que, se o caso se tratar de um atraso no andamento da própria construção, isso significa que o incorporador não tem condição alguma de entregar as chaves para o adquirente caso este quite as prestações vencidas. Daí decorre que, nessa hipótese, é descabido afirmar que o incorporador estaria exercendo a exceptio non adimpleti contractus, pois ele não está retendo propositalmente a contraprestação no aguardo da quitação das prestações pelo adquirente. A exceptio non adimpleti contractus pressupõe a disponibilidade potencial da prestação retida ou, nas palavras do Professor lusitano António Menezes Cordeiro, “pressupõe uma faculdade de recusar a prestação”[1]. O incorporador que atrasou a construção não tem a faculdade de recusar a prestação, porque esta sequer existe materialmente diante do atraso na própria construção. Em situação como essa, entendemos que o adquirente tem direito à multa moratória de 1% a.m. pelo atraso da incorporadora mesmo se estiver inadimplente com algumas prestações.

Em síntese, havendo atraso na entrega do imóvel pelo incorporador em razão de o habite-se não ter sido obtido até a data final estipulada, isso significa que o incorporador não tem a disponibilidade potencial do imóvel para quitar sua dívida. Daí decorre que o incorporador está em mora e terá de pagar multa moratória ao adquirente ainda que este esteja inadimplente. Daí também decorre que o adquirente deixa de estar em mora a partir do início do atraso no término da obra, pois ele não pode mais ser obrigado a pagar nada em razão da indisponibilidade material do contraprestação, razão por que: (1) o adquirente não terá de pagar multa moratória nem outro encargo moratório sobre as prestações que se vencerem após o início do atraso na entrega do imóvel; e (2) as prestações vencidas antes da caracterização no atraso na entrega do imóvel só poderão ser engorduradas com multa moratória e demais encargos moratórios até esse momento.

Se, todavia, o habite-se já tiver sido obtido e se o atraso na entrega do imóvel decorrer de uma proposital retenção das chaves do incorporador enquanto o adquirente não quitar as prestações atrasadas, o incorporador estará a exercer a exceptio non adimpleti contractus e, portanto, não terá de pagar multa moratória alguma. Só o adquirente é que terá de suportar os encargos moratórios sobre suas prestações atrasadas.

Portanto, o art. 43-A, § 2º, da Lei nº 4.591/64 precisa ser interpretado da seguinte maneira: o adquirente inadimplente só não terá direito à multa moratória pelo atraso na entrega do imóvel se o incorporador já tiver concluído a construção e estiver retendo a entrega das chaves do imóvel como exercício legítimo da exceptio non adimpleti contractus. Todavia, se o incorporador tiver atrasado a própria conclusão da construção, ele terá de pagar a multa moratória ainda que o adquirente esteja inadimplente, pois a inadimplência deste último passa a ser justificada como exercício da exceptio non adimpleti contractus.

A nova lei não censurou expressamente o entendimento jurisprudencial predominante no sentido de que, se o adquirente é consumidor, a multa compensatória pactuada contra ele deverá ser, no mesmo percentual, revertida contra o incorporador, pois seria abusivo, à luz do art. 51 do CDC, pactuar punições mais severas contra o consumidor inadimplente do que as punições firmadas contra o incorporador.

Todavia, para a multa moratória, a nova lei censura o até então vigente entendimento de inversão dessa multa contra a incorporadora. É que, no caso da multa moratória, conforme já exposto anteriormente, a nova lei só tratou do caso de atraso do incorporador e estabeleceu que este deverá pagar indenização (cuja natureza jurídica, para nós, é de multa moratória) de 1% do valor pago para cada mês de atraso. Não cabe pacto em contrário, salvo se for para majorar essa multa em proveito da parte mais vulnerável, que é o adquirente e em favor de quem foi editada a nova lei. De fato, para o caso de inadimplemento relativo do adquirente, a nova lei nada diz, razão por que segue em vigor o entendimento de que o adquirente pagará a multa moratória pactuada, a qual não poderá exceder a 2% da prestação se o adquirente for consumidor, conforme art. 52, § 1º, do CDC.

Em relação à multa compensatória, o caso é diferente. A nova lei estabelece que, havendo o inadimplemento absoluto do adquirente – da qual decorre a resolução do contrato por culpa deste –, cabe-lhe pagar multa compensatória “que não poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) da quantia paga” (art. 67-A, II, Lei nº 4.591/64). Como se vê, o contrato não é obrigado a estabelecer o percentual de 25% a título de multa compensatória contra o adquirente; as partes podem pactuar qualquer percentual, desde que inferior a esses 25%.

Se, porém, o inadimplemento absoluto for do incorporador – de que deriva a resolução contratual por culpa deste –, a nova lei não estabelece nenhum teto para a multa compensatória a ser suportado pelo incorporador, mas apenas se limita a estabelecer que este terá de pagar a “multa estabelecida”.

Como se vê, a nova lei não proibiu que, em havendo relação de consumo, haja a inversão da cláusula penal compensatória em proveito do consumidor. E realmente a inversão da cláusula penal é medida absolutamente necessária para o caso de o adquirente ser consumidor, pois: (1) é inegável que o consumidor é vulnerável e não possui poder de barganha para alterar as cláusulas contratuais; (2) a vontade presumível do consumidor, se este tivesse efetivo poder de barganha, seria a de pactuar igualar os percentuais das multas compensatórias; (3) é irrelevante o fato de as obrigações serem diversas, pois a proporcionalidade é obtida pela diversidade de base de cálculo sobre o qual incidirá o percentual da multa; (4) assim como o incorporador tem prejuízo com o rompimento do contrato por culpa do consumidor, também este tem incalculáveis danos com a frustração contratual por culpa do incorporador; (5) como a multa compensatória é uma prefixação de indenização e independe de prova de prejuízo, deve-se presumir que o dano presumido do consumidor é proporcionalmente igual ao do incorporador, proporção essa que é obtida por meio da incidência de um mesmo percentual sobre uma base de cálculo correspondente à prestação de cada parte; (6) essa isonomia faria o valor da multa chegar a um “ponto ótimo”, conciliando os interesses contrapostos.

Entendimento diverso nos levaria ao absurdo de considerar, como lícito, que, num contrato, o incorporador estabeleça uma cavalar multa compensatória de 25% do valor pago contra o consumidor e uma suave multa compensatória de 1% do valor pago contra si mesmo. Se a relação é de consumo, tal desnível deve ser censurado por se caracterizar abusivo.

Portanto, à luz da nova lei, é cabível a inversão da multa compensatória contra o incorporador, se o adquirente for consumidor. Não é devida, porém, a inversão da multa moratória, pois há norma expressa estipulando o percentual dela em desfavor do incorporador (art. 43-A, § 2º, Lei nº 4.591/64).

O § 1º do art. 43-A da Lei nº 4.591/64 estatui que, havendo atraso do na entrega do imóvel, o adquirente poderá pedir a resolução do contrato com direito à restituição da integralidade do valor acrescida de multa compensatória, desde que ele “não tenha dado causado ao atraso”. Trata-se de condicionante extremamente perigoso e que precisa ser manuseado com cuidado pela jurisprudência.

Quando o adquirente dará causa ao atraso de uma obra?

É difícil imaginar alguma hipótese factível. Talvez isso ocorreria se o adquirente cercar, com um exército, o terreno e obstruir o trabalho dos construtores.

O perigo do preceito acima é que ele daria ensanchas ao entendimento de que, se o adquirente tiver atrasado o pagamento de prestações, ele seria o causador do atraso na entrega da construção, pois teria prejudicado a saúde financeira do incorporador. Essa interpretação, contudo, parece-nos manifestamente contrária ao espírito da Lei nº 4.591/64, que, ao exigir idoneidade financeira do incorporador como requisito de habilitação (art. 32, “o”) e ao permitir a desistência da incorporação apenas dentro do prazo de carência (art. 34), deixa claro que o incorporador não pode condicionar o sucesso da construção à adimplência dos adquirentes. O risco financeiro pelo custeio da construção é exclusivamente do incorporador. Por essa razão, o atraso na construção não poderá ser juridicamente atribuído ao fato de o adquirente ter incorrido em mora quanto às prestações. Incorporador de que trata a nova lei não é consórcio imobiliário, nem um condomínio, tampouco sua gestão interna está sujeita à fiscalização ou ao controle dos adquirentes de imóveis “na planta. Incorporador é um empresário que assumiu o risco de entregar os imóveis alienados “na planta” dentro do prazo pactuado.

Evidente que, se o adquirente não for consumidor, é válida cláusula contratual que condicione o cumprimento do prazo ao pagamento pontual das prestações pelo adquirente. Assim, se um fundo de investimento imobiliário – que não é consumidor – adquire os imóveis “na planta” de um incorporador, é lícito que as partes pactuem que, havendo atraso no pagamento das prestações, o atraso na entrega do imóvel é justificável. Todavia, se o adquirente for consumidor, essa cláusula seria nula por ser abusiva à luz do art. 51 do CDC, na medida em que está a transferir para o consumidor um risco desproporcional que deve ser suportado apenas pelo incorporador e na medida em que desconsidera que, ao pagar em mora, o consumidor já indeniza o incorporador mediante o pagamento de multa moratória e de outros encargos moratórios.

Portanto, entendemos que a melhor interpretação do § 1º do art. 43-A da Lei nº 4.591/64 é no sentido de que o pagamento, em mora, de prestações pelo adquirente não impede que este, havendo atraso na conclusão das obras, promova a resolução do contrato, pois o causador da extinção do contrato é exclusivamente o incorporador. O adquirente, todavia, poderá ser considerado como causador do atraso da construção se tiver praticado algum ato doloso tendente a obstruir o andamento da obra (ex.: um ataque terrorista) ou se, não sendo consumidor, houver cláusula contratual que transfira ao adquirente que paga, com mora, as prestações a responsabilidade pelo atraso da construção.

O § 3º do art. 43-A da Lei nº 4.591/64 estabelece que a multa moratória devida contra o incorporador por atraso na entrega do imóvel não poderá, em hipótese alguma, ser cumulada com a multa compensatória devida contra o incorporador no caso de resolução contratual por culpa deste. Isso significa que, se o incorporador atrasar a entrega do imóvel ao longo de 2 anos, o adquirente poderá pedir a resolução do contrato para receber a integralidade do valor pago de volta acrescido de uma multa compensatória, mas não poderá cobrar também as multas moratórias que incidiriam para cada mês de atraso ao longo desses 2 anos. A propósito, se o incorporador tiver pago voluntariamente essas multas moratórias, eles têm de ser devolvidas pelo adquirente que veio a pedir a resolução do contrato, devolução essa que poderá ser realizada mediante dedução do valor final a ser restituído ao consumidor.

Esse dispositivo precisa ser lido com cautela para evitar inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da isonomia. O seu raciocínio precisa ser estendido também para o caso de resolução contratual por culpa do adquirente, o que guiará a interpretação do art. 67-A da Lei nº 4.591/64. Assim, nessa hipótese de resolução por culpa do adquirente, o incorporador deverá calcular, como montante dos valores pagos pelo adquirente, todas as parcelas pagas por este com inclusão da multa moratória e com outros encargos moratórios. Não poderá o incorporador considerar apenas o valor atualizado das prestações, e sim o valor efetivamente pago de cada prestação com inclusão dos conexos encargos moratórios. É desse montante total que o incorporador poderá deduzir as parcelas previstas no art. 67-A da Lei nº 4.591/64. E isso deve ser feito assim, porque não pode o incorporador ficar com a multa moratória de nenhuma das prestações e, ainda por cima, cobrar a multa compensatória de até 25% prevista no inciso II do art. 67-A da Lei nº 4.591/64.

Portanto, sob pena de inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da isonomia, o § 3º do art. 43-A deve ser interpretado em conjunto com o art. 67-A da Lei nº 4.591/64, de modo que a vedação de cumulação de multa moratória com multa compensatória seja aplicada tanto contra o adquirente quanto contra o incorporador.

Carlos E. Elias de Oliveira é Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília, Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e de Registro, Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civi, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012), Advogado, ex-membro da Advocacia-Geral da União (Advogado da União) e ex-assessor de ministro Superior Tribunal de Justiça.

Bruno Mattos e Silva é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP e Mestre em Direito e Finanças pela Universidade de Frankfurt, Alemanha. Consultor Legislativo do Senado Federal e advogado em Brasília. Foi advogado de empresas em São Paulo, Procurador Federal da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Procurador chefe do INSS nos tribunais superiores e Assessor Especial do Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Professor de Direito Comercial. Autor da obra “Compra de Imóveis – Aspectos Jurídicos, Cautelas Devidas e Análise de Riscos”.


[1] CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil IX: direito das obrigações: cumprimento e não-cumprimento, transmissão, modificação e extinção. Coimbra/Portugal: Editora Almedina, 2017, p. 289.

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