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Pedagogia Social em Tempos de Inclusão Social

GESTÃO ESCOLAR

INCLUSÃO

MERCADO

PEDAGOGIA SOCIAL

QUALIDADE DE ENSINO

José Manuel de Sacadura Rocha

José Manuel de Sacadura Rocha

07/05/2018

Este artigo aborda a Pedagogia Social a partir da inserção de novas camadas sociais na escola e demais categorias de ensino. Parte da perspectiva que toda a educação é social, portanto deve se estender para além da escola e atingir a sociedade pelo trabalho. O planejamento e o conteúdo da escola devem ser discutidos pelos alunos, pelos discentes, pelos gestores e pela comunidade, através de processos de autogestão escolar. Defende-se que não existem motivos razoáveis que justifiquem um decréscimo de qualidade e exigência das práticas orientadas às ocupações em virtude do ingresso de novos contingentes de alunos vindos dos estratos mais baixos da sociedade, pelo contrário. Os retrocessos nas políticas e práticas educacionais, contudo, encontram-se conformadas nos limites das exigências e expectativas das sociedades de mercado e das prevalências de alguns estratos sociais sobre outros. A educação conforme a Pedagogia Social é, por definição, extensiva a todos, e envolve a escolha de processos que alcancem a eficiência de conteúdos sem descorar da universalização do acesso do conhecimento e da formação da consciência de crianças e adultos.

Após a democratização do Brasil e com a promulgação da Constituição Federal em 1988, a Educação recebeu atenção especial, conforme segue:

  • 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (CFBR/88).
  • 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (CFBR/88).

Apesar da formalização, a lei pouco pode fazer para que o processo educacional seja executado de forma a transformar educadores e educandos. Sem isto, a construção de um homem livre capaz de desenvolver toda a potencialidade que o habita em condições de igualdade e vida boa para todos, não passará de uma “perspectiva utópica da educação” (Gadotti, 2012) a alimentar os educadores de boa vontade; entretanto dificilmente a ultrapassar os limites estreitos das sociedades classistas.

Por exemplo, quanto à educação inclusiva, a UNESCO, em seu Relatório de Monitoramento Global da Educação 2017/8 (2017, p. 11), afirma:

Embora a maioria dos 86 relatórios de países até agora apresentados reportem que suas constituições, leis ou políticas se refiram explicitamente ao direito à educação de pessoas com deficiências, poucos definem o conceito de deficiência. A falta de uma definição internacional clara pode tornar mais difícil desenvolver programas e cumprir com padrões internacionais. De forma similar, em 42 dos 86 países, suas constituições, leis ou políticas se referem explicitamente à educação inclusiva, sugerindo uma tendência contra escolas especiais e a favor de programas inclusivos em escolas regulares. No entanto, nem sempre as políticas se traduzem em prática.

A proposta educacional, a partir de parâmetros como, p. ex., colocados na obra de Pistrak, Makarenko, Vigotski e Paulo Freire, se insere como alternativa dentro de uma Pedagogia Social radical. A abordagem de uma “verdadeira” pedagogia social visa “integrar na sociedade os que não são integrados”, mas isso não basta, porque se deve perguntar antes que tipo de sociedade se pretende construir. Assim, a educação social não pode discutir apenas a “escola” e “os conteúdos” a partir de visões elitizadas, por cima, mas precisa discutir um projeto político de sociedade, e inserir nesse projeto a coletividade/ comunidade, a partir da base. Neste sentido que Pistrak (2000) afirma que deve existir uma “teoria pedagógica revolucionária”, e é nesta proposta que se distinguem práticas entre  uma escola para a “desalienação” e uma escola para a “reprodução”, bem como se estabelece a diferença entre “professores” e “educadores”.

Faz-se necessário, pois, definir melhor os tipos possíveis de “educação”, pois como Moacir Gadotti (2012, p. 2) esclarece: “A diversidade é a marca desse movimento de educação social, popular, cidadã, cívica, comunitária”.

  • Pedagogia Social – Ciência acadêmica que discute a filosofia e as práticas da Educação Social; estabelece os princípios para uma educação transformativa dos sujeitos cidadãos e do projeto de vida coletiva; cria a teoria filosófica necessária a orientar as práticas de ensino e o papel dos educadores e da
  • Educação Social – Prática educacional/ pedagógica “transformadora” e “inclusiva” que está nos movimentos e serviços sociais. Atuação que se dá pelos Direitos Humanos, de forma oficial, universal (Revolução Francesa 1789; ONU 1948; UNESCO 1947; Constituição Federativa do Brasil 1988)[1].

As bases da sociedade contemporânea encontram-se na diversidade, e isso força a criação de uma sociedade de direitos. Crescem exponencialmente os ordenamentos jurídicos, desde a Declaração dos Direitos Humanos na França, em 1789, e, notadamente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em busca de reconhecer os direitos de pessoas, grupos e comunidades. […] A cultura dos direitos humanos se implanta com os objetivos de erradicar práticas discriminatórias, de gêneros, raças, religiões, etnias, nacionalidade e idade; dirimir ameaças de ordem física, moral e psicológica contra a pessoa humana; reduzir a desigualdade social, criar a possibilidade comum de se usufruir um padrão de bem-estar social e propiciar a cada pessoa o desenvolvimento de suas potencialidades; garantir a liberdade de expressão e de trabalho, sem exploração. (Neto, 2010, p. 38-40).

  • Educação Comunitária – feita pela comunidade, efetuada pela própria “classe”, oficial ou não, mas não é universal. Tradicionalmente uma determinada leitura “revolucionária” via aqui a possibilidade de se preparar os trabalhadores para a construção de uma nova sociedade livre dos sacrifícios e discriminações impostas pelas sociedades capitalistas. Veja-se Gramsci (2004, p. 117): “Os burgueses podem até ser ignorantes. Mas não os proletários. Os proletários têm o dever de não ser ignorantes”.
  • Educação Popular – resistência ao discurso formal estatal, oficial de teor autoritário, resistir ao discurso sectário, elitista:

Se o discurso do acadêmico soa alto e dominante sobre a fala popular, esse discurso congela-se em conceito, congela a consciência, faz com que esta adormeça no interior de frases feitas. Desaparece a ênfase na luta, entendida como curiosidade interrogadora e crítica da ordem. Permanecerão somente pacotes de frases feitas. (Freire e Noronha, 1989, p. 30-31).

Este discurso era particularmente objetivado pelas lutas de jovens, educadores e intelectuais contra a ditadura militar entre os anos 1960-1980. Mas pela abrangência que se vê em tais palavras, fica claro que a “educação popular” tem mais o sentido de aproximar os processos educativos dos mais excluídos, para além da instituição escola, mas como forma de questionar uma “ordem” que permanece destruidora da humanidade por vias do liberalismo de mercado.

Na perspectiva que o pathos da sociedade de mercado na modernidade é a “indiferença”, e na pós-modernidade a “despolitização”, até de minorias que lutam pelo “SEU” reconhecimento, precisamos da Política dos Direitos Humanos para o “CONSENSO”, pois é por ela, na atualidade, que se pode pensar em uma pedagogia social do ponto de vista do coletivo. De fato, não pode haver educação social que instigue à transformação de sujeitos de direito e educadores que não esteja inserida em um contexto de projeto de vida coletiva boa para todos.

Neste sentido, a “educação comunitária” e a “educação popular” são formas de se chegar a uma educação coletiva mais abrangente, predicado da “educação social”: as várias formas de constituir a educação na sociedade são todas válidas se objetivam a transformação para a (re)humanização do homem, e realização de suas potencialidades sem dominação e exploração, pela prática, em consonância com as realidades dos indivíduos, como elas se verificam concretamente.

Não deixa de ser paradoxal que a luta pela emancipação do humano nas práticas educativas tenha que lançar mão de construções jurídicas iluministas e apregoadas pelo liberalismo de mercado – Direitos Humanos -, pois, como afirma João Clemente Neto (2010, p. 48):

É no contexto da desigualdade socioeconômica e cultural brasileira que o educador deve construir um conhecimento que sirva como um dos braços de saída das mazelas geradas pela posse e retenção injusta de bens, produtos e equipamentos. Por esse aspecto, a educação aparece como uma oportunidade e uma moeda de troca.

Outra questão, é que mesmo em países da periferia do sistema de mercado, e ainda que pese a aproximação telecomunicativa pelas práticas de globalização da produção, circulação de mercadorias e capitais, existe um mundo de excluídos do sistema que só se agiganta, enquanto uma minoria usufrui “desumanamente” da ostentação e do mais avançado que os recursos tecnológicos oferecem.  Paulo Freire (1970, p. 17) nos ensinou a pensar em sua “Pedagogia do Oprimido” nos seguintes termos: “Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam”. Os que se descobrem são todos os que se identificam com a exclusão dos milhões que as sociedades da forma mercadoria e dos valores de troca não conseguiram garantir, porque não têm interesse genuíno nisso, o mínimo de “dignidade humana”. Educadores por natureza são os que se identificam!

As chamadas políticas de inclusão, levando às escolas e às universidades jovens oriundos de classes e estratos mais baixos da sociedade, têm impacto direto no nível do aprendizado e qualidade de ensino, com nivelamento “por baixo”. Isso se dá, em certa medida, pelo fato dessas camadas sociais terem menos acesso àquilo que se chamaria de “cultura erudita”, por exemplo, o hábito de leitura, repetindo, assim, as mesmas deficiências de suas gerações anteriores. Acontece que nos ambientes escolares tradicionais, não preparados para recuperar e requalificar  esses jovens para níveis mais exigentes de leitura e escrita, acaba por “facilitar” o aprendizado a todos, rebaixando o nível de conteúdo programático e a exigência de seu aprendizado, atingindo inclusive, por tabela, aqueles estudantes que teriam, à priori, melhores condições de atenderem a um nível mais elaborado de conhecimento.

Por outro lado, reconhecer essas melhores condições de base de alunos oriundos de camadas mais favorecidas da população não significa que estejam dispostos a alçar esses conhecimentos “superiores”, o que remete, então, à questão da disciplina. Apesar da Convenção Sobre os Direitos da Criança – UNICEF, em seu artigo 28, item 2, (1989, p. 20) afirmar que: “Os Estados Partes tomam as medidas adequadas para velar por que a disciplina escolar seja assegurada de forma compatível com a dignidade humana da criança e nos termos da presente Convenção”, a disciplina teria que ser exigida para todos se todos se empenhassem em um aprendizado mais qualificado, o que na prática não se verifica na inclusão social do aprendizado, pelo contrário, como a minoria passa a ser a maioria, é pelo nível de aprendizado e preparação anterior dos novos inclusos que se nivela o ensino de forma geral. Neste sentido, as políticas públicas de inserção social, no plano da educação, não geram de forma automática uma melhor escolarização e desenvolvimento de acesso à cultura e às exigências do trabalho.

Este paradoxo não é, contudo, exclusivo dos países que se localizam na periferia do capitalismo contemporâneo. Em uma pesquisa efetuada na França em 2008, que relacionava a quantidade de livros lidos por níveis de escolaridade, constatou-se que o nível de leitura diminuía em relação à hierarquia escolar.

Conforme Philippe Coulageon (2014, p. 64):

O declínio relativo da leitura manifestado pelos níveis da hierarquia dos diplomas escolares remete às transformações da estrutura social do público escolar, que acompanharam, desde os anos 1960, o processo de massificação do ensino secundário. Revela também, de modo indireto, tudo aquilo que os hábitos culturais dos estudantes deviam tradicionalmente não à própria escola, porém à herança cultural transmitida por suas famílias (Bourdieu e Passeron, 1964). De maneira geral, o prolongamento da escolaridade e a deformação “dirigida para o alto” da estrutura da população por qualificação de diploma constituíram um fator de distorção da ligação entre a escola e a cultura erudita, devido à heterogeneidade crescente do público escolar. Desse modo, enquanto a socialização escolar atuava no sentido de aculturar as crianças das classes populares quando eram nitidamente minoritárias no ensino secundário – e, portanto, levadas a apoiar seus hábitos escolares nos das crianças da burguesia -, parece que a incitação à “boa vontade cultural” enfraquece assim  que a dominação numérica dos “herdeiros” diminui, reduzindo ao mesmo tempo o sentimento de indignidade cultural dos “promovidos”.

Duas coisas são importantes: primeiro, é sabido que o hábito da leitura, bem como a valorização e apreciação das manifestações culturais e artísticas “eruditas”, começa com o apoio e o exemplo familiar. É na família que a criança desde cedo pode alcançar, durante a formação da “consciência superior” (Vygotski, 1995), o gosto pela cultura. Mas se isso parece insofismável, é importante reconhecer, como no texto acima, que esses hábitos pela cultura erudita desaparecem na medida em que a escola não promove o ensino e a aproximação à produção cultural, fazendo-a um hábito, uma experiência e um gosto; ao contrário, desaparece esse gosto, esse conato com a cultura inclusive dos que teriam melhores condições para continuarem a desenvolvê-la. Em troca, os oriundos dos estratos mais humildes da sociedade “aceitam” esse nivelamento frágil e fraco, beirando o senso-comum; esse “nivelamento por baixo” age como que uma “redenção”, reduzindo ao mesmo tempo o sentimento de indignidade cultural dos promovidos.

Por óbvio, existe aqui uma indistinção de termos que não contribui para a inclusão da coletividade/ comunidade nos processos educacionais mais efetivos: “por baixo” pode ser compreendido por uns e usado, por outros, como pretensa igualdade de oportunidades, quando esconde, de fato, apenas o discurso reprodutor, na formalidade sócio-política e jurídica, das intenções das camadas mais  favorecidas da sociedade. A “verdadeira” democracia não exige classificações, mas justiça; contudo, justiça social de inclusão não pode ser efetuada à custa da banalização e vulgarização da educação, suas políticas e suas práticas, com pena de, em última instância, prejudicar mais as classes menos privilegiadas, uma vez que os cidadãos favorecidos sempre podem facilmente estabelecerem estratégias de sobrevivência vantajosas, seja pelo domínio da informação, do poder econômico e/ou político, enquanto os cidadãos desfavorecidos levam visível e palpável desvantagem na reprodução social.

Se a educação é a melhor forma de atender às camadas mais vulneráveis da sociedade, não faz sentido banalizar o ensino e suas exigências disciplinares e ilustrativas, pois os mais penalizados serão exatamente aqueles que não têm, geração após geração, acesso à cultura e aos benefícios espirituais das artes. Na verdade os penalizados serão todos, toda a sociedade, que passa a viver pelo imediatismo performático e estandardizado próprio das modernas exigências logísticas do humano, não como arte, mas como coisa. Por isso, falar de “cultura erudita”, ao contrário do que se possa pensar, não é falar da elitização da cultura e da educação, mas enaltecer o direito a todos de terem acesso e compreensão das manifestações de espírito, em uma época e uma sociedade, base para o desenvolvimento e crescimento intelectual e aceso a uma vida boa para todos. Esse nivelamento educacional “por baixo”, aclamado como o “popular”, pode, e muitas vezes o faz, inclinar o conhecimento e o acesso aos níveis superiores da vida, para o comum, o banal, o supérfluo, conhecimento de superfície. De alguma forma, em uma sociedade de classes, esse tipo de discurso pretensiosamente popular, quando contra o “erudito”, favorece sempre mais uma minoria que detém a hegemonia cultural e reproduz um saber que se transforma sempre em “domínio de poder” (Foucault, 1979).

Por este prisma, Althusser (1985) nos alertou para o fato que nas sociedades de mercado o poder se estende por toda a sociedade através dos Aparelhos Ideológicos de Estado – AIE, com destaque para a escola oficial. Mas mesmo as formas não oficiais da escola, os processos não oficiais de educação, por conta de todas as instituições e formas mais abrangentes e disseminadas de educação social, também são AIE, portanto, devem ficar atentas para não reproduzirem esse mesmo discurso, que de popular passa a ser “populismo”, e só interessa às classes dominantes e aos idealismos de busca e consolidação de poder (Rocha, 2015). A matriz filosófico-metodológica que deve orientar a educação social, escolar ou não, oficial ou não, pode ser entendida nos autores inicialmente mencionados.

Pistrak (2000) fala da escola trabalho, fala de uma prática educativa em que o aluno é incentivado a “aplicar a teoria”, onde os conteúdos devem ser levados à sociedade por vias dos benefícios e proveito coletivo desse saber, que é “erudito”, caso contrário não faria diferença em relação à consciência de alunos e cidadãos, não faria diferença em relação às condições concretas de vida da população. Mais,  a prática do trabalho funciona, nestes termos, como prevenção contra esse “populismo filisteu” e exige ao mesmo tempo as condições mais elevadas de conhecimento, uma vez necessário a atender as necessidades e os interesses coletivos.

O trabalho na escola, enquanto base da educação, deve estar ligado ao trabalho social, à produção real, a uma atividade concreta socialmente útil, sem o que perderia seu valor essencial, seu aspecto social, reduzindo-se, de um lado, à aquisição de algumas normas técnicas, e, de outro a procedimentos metodológicos capazes de ilustrar este ou aquele detalhe de um curso sistémico. (Pistrak, 2000, p. 19).

Nestas condições, a escola, as instituições educacionais, a educação social estaria blindada contra a sua banalização e controle, inclusive do Estado sobre a educação e o trabalho. A educação social objetiva “potencializar a fala do sujeito”, a partir da sala de aula (condições internas), e isso se dá na dimensão do trabalho. Mas o sujeito que não tem voz na sala de aula dificilmente terá no mundo do trabalho, e dificilmente saberá “potencializar-se” na comunidade. Educação social se dá pelo processo pedagógico que inclui o mundo do trabalho, que o absorve. Não se deve, contudo, confundir o “mundo do trabalho” com a “opção de mercado” da educação pelos mais favorecidos.

Neste sentido tem-se a ilustração da UNESCO (2017, p.24):

Alguns países de renda média e alta têm sido proativos na criação de um mercado para as escolas. As políticas de escolha escolar aumentaram em mais de dois terços dos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) nos últimos 25 anos. No entanto, evidências sugerem que as políticas de escolha escolar beneficiam mais as populações privilegiadas. Com frequência, nos sistemas de escolha escolar, os pais ou responsáveis baseiam sua escolha em fatores como composição demográfica, o que pode levar à diminuição da diversidade e reforçar as divisões socioeconômicas. Na Finlândia, a escolha escolar era exercida principalmente por famílias com nível educacional elevado cujas crianças se sobressaíam academicamente. Em Santiago, no Chile, apenas um em cada quatro pais de estudantes da primeira série escolheram a escola com o melhor desempenho da sua lista de preferências, e quase 70% apenas procuraram escolas em termos de sua filiação religiosa.

Por outro lado, a Convenção Sobre os Direitos da Criança/ UNICEF, aprovada em 20 de novembro de 1989 pela Assembleia Geral da ONU, fala explicitamente “que os Estados-Partes devem criar diferentes formas de educação secundária, prevendo, a par da educação geral, também uma forma de ensino vocacional; devem tornar a informação e a direção, tanto educacional quanto vocacional, acessíveis a todas as crianças” (Comparato, 2010, p. 373).

Convenção Sobre os Direitos da Criança, UNICEF (1989, p. 20):

Artigo 28: 1. Os Estados Partes reconhecem o direito da criança à educação e tendo, nomeadamente, em vista assegurar progressivamente o exercício desse direito na base da igualdade de oportunidades:

  1. Encorajam a organização de diferentes sistemas de ensino secundário, geral e profissional, tornam estes públicos e acessíveis a todas as crianças e tomam medidas adequadas, tais como a introdução da gratuitidade do ensino e a oferta de auxílio financeiro em caso de necessidade;
  2. Tornam a informação e a orientação escolar e profissional públicas e acessíveis a todas as crianças.

Makarenko (2010) com a proposta de autogestão educacional afasta as pretensões oficiais estatais, e das elites, bastante deformadas e centralizadas do processo educacional, por via de uma intelectualidade a dizer das verdades do conhecimento, conteúdo e processos disciplinares. A importância aqui é ver que a educação “erudita”, o conhecimento “erudito”, enfim, a cultura “erudita” não é elitista, mas pode caminhar, e deve, junto com as práticas discutidas e organizadas pela sociedade, pelas comunidades, pelos comitês, pelas assembleias, pelos coletivos, pela população. Isto previne a ingerência oficial, e o domínio da esfera educacional e cultural por um saber direcionado à centralidade do poder, da dominação política, econômica, fundamentalista, burguesa, fascista ou de outro tipo.

Makarenko   (2010,   p.    62),    ao   referir-se    aos   “Órgãos    de   Autogestão” educacionais, nos ensina como se deve proceder em tais colegiados:

A atividade dos órgãos de autogestão só será atual e importante se toda a vida da instituição educacional estiver de tal modo organizado que a suspensão da atividade deste ou daquele órgão se reflita imediatamente no trabalho da instituição e seja sentida pela coletividade como uma deficiência. Para que os órgãos de autogestão tenham precisamente essa importância de instituições que funcionam regularmente é necessário o seguinte:

  1. a administração da instituição, incluindo a pedagógica, não deve substituir os órgãos de autogestão e resolver independentemente as questões que são da competência destes órgãos, mesmo que a decisão da direção possa parecer mais correta e flexível;
  2. cada decisão dos órgãos de autogestão deve ser cumprida obrigatoriamente, sem demoras e sem adiamentos;
  3. se a administração considera impossível o cumprimento da decisão errônea de qualquer órgão de autogestão, deve reclamar perante uma assembleia geral, e não simplesmente anular a decisão;
  4. o método fundamental para o trabalho da administração deve ser a influência exercida nos próprios órgãos de autogestão; aquele camarada que não goze desta influência e que provoque constantemente conflitos com estes órgãos não serve para trabalhar nesta instituição;
  5. a atividade nos órgãos de autogestão não deve ocupar muito tempo aos educandos para que eles não sejam sobrecarregados com as suas obrigações e não se convertam em “funcionários”;
  6. não se podem sobrecarregar os órgãos de autogestão com diversas ninharias que se pode resolver no trabalho administrativo corrente;
  7. o trabalho realizado por todos os órgãos de autogestão deve ser organizado com muita precisão e todas as suas decisões devem ser registradas por escrito. É preferível que o controle deste trabalho esteja centralizado num só local, por exemplo, junto ao secretário do Conselho da

Entretanto, nas sociedades de status todos os esforços de inserir a gestão educacional com as comunidades, são passíveis de ser manipulados ou mesmo boicotados pelos grupos dominantes:

As partes interessadas da comunidade participam da gestão com base na escola (GBE), em que a autoridade e a responsabilidade pela tomada de decisões é transferida para atores locais. A GBE melhorou os resultados e a assiduidade dos estudantes em países como Indonésia e México. No entanto, a relutância em compartilhar a responsabilidade com membros da comunidade provocou entraves em alguns esforços da GBE, como em Hong Kong, na China. A representação comunitária, às vezes, exclui grupos marginalizados.

A captura pela elite foi um problema para alguns comitês de GBE no Nepal. (UNESCO, 2017, p. 24).

A vantagem da gestão via inclusão da comunidade, apesar de tudo, tem em Makarenko a vantagem de educar igualmente os pais e os demais agentes sociais em torno das práticas educacionais, pois mesmo que, de início, não exista capital intelectual significativo para os processos pedagógicos, é a partir desta inclusão e destes processos que a comunidade também se instrui, o que perfaz um escopo educacional social muito mais abrangente que o confinamento e a gestão de especialistas na escola. Isto de fato só não acontece quando existe o impedimento por parte do poder oficial em conjunto com as camadas favorecidas da sociedade.

Outro aspecto da educação social relevante é o caráter de autoconsciência que a escola e seus processos educacionais devem incentivar, possível se determinado nível de conhecimento estiver presente no cidadão. Adorno (1982) nos fala da “educação para a liberdade” quando procura incentivar que os jovens aprendam sobre o Holocausto, para que, mesmo que determinado indivíduo queira repetir tais atrocidades higienistas e racistas, não encontre na população respaldo e aceitação dessas práticas, o que remete, por parte da sociedade, ao controle discursivo do poder, da textualização e fabricação mítica da realidade.

Receio que através das medidas educativas, por mais abrangentes que sejam, será difícil evitar que assassinos de escrivaninha tornem a aparecer. Mas que existem pessoas que lá embaixo, como servos, portanto, praticam atos que se destinam a perpetuar a sua própria servidão e se despedem de toda a dignidade humana; que continuem existindo Bogers e Kaduks (autoridades alemãs nazistas), contra isso se pode fazer alguma coisa, pela educação, pelo esclarecimento. (Adorno, 1982, p. 45).

O discurso para o “domínio” do poder não é condizente com os interesses mais imediatos dos menos favorecidos, a não ser provisoriamente para instaurar uma democracia popular de fato, ou seja, somente enquanto estratégia, na fase de transição, da maioria para transformar a vida e a consciência dominadas pelas elites econômicas, aristocracias culturais e oligarquias estatais.

Pistrak (2000, p. 30), em sua obra “Fundamentos da Escola do Trabalho”, dedica um capítulo à escola “na fase de transição”:

A escola sempre foi uma arma nas mãos das classes dirigentes. Mas estas não tinham nenhum interesse em revelar o caráter de classe  da escola: as classes dirigentes não passavam de uma minoria, uma pequena minoria, subordinando a maioria a seus interesses, e é por isso que se esforçavam para mascarar a natureza de classe da escola, evitando colaborar na destruição de sua própria dominação. Ao contrário, um dos primeiros problemas da revolução social é exatamente o de mostrar a natureza de classe da escola no contexto de uma sociedade de classes. Desenvolver a educação das massas, condição da consolidação das conquistas e das realizações revolucionárias, significa dar-lhes uma consciência mais clara e mais exata dos objetivos sociais da classe vitoriosa.

A obra de Pistrak está localizada em um momento histórico específico – A Revolução Russa de 1917 -, e carrega a responsabilidade de refazer as práticas educativas e as funções escolares em patamares completamente diferentes do observado em sociedades de classe. Entrementes, a orientação dos autores que estavam diante dos fatos históricos e da responsabilidade de formular a pedagogia de uma “nova escola”, de um processo educacional voltado para o social, transcende o momento, tendo por fundamento a desalienação e deve ser capaz de resistir ao discurso idealista, fanático, desarrazoado e anticientífico. Claro, aqui não se tratam de uma nova “racionalidade instrumental” nem a “idolatria da técnica” como instrumento de domínio e gestão de vontades e energias humanas (Deleuze, 2000).

O paralelo que se pretende aqui efetuar é de uma educação que demonstre as atrocidades do passado e a hegemonia do poder que perpetua de “cima para baixo”, por via do Estado, o culto do centralismo político das políticas e práticas educacionais. As gerações de jovens estudantes deverão ser capazes de distinguir a “arte da dominação”, questionar a “ética da estética do capital”, separar a cultura verdadeiramente popular da cultura populista segregacionista. Isto é possível pela educação, dos valores em volta do projeto comum de sociedade, de todos para todos, do todo como mais importante que a parte, e também, concomitantemente, por uma preparação preventiva para o discurso e textualização cultural que leva à opressão, a todas as formas de opressão.

Portanto, o que se deve exigir é que o cidadão do futuro, por vias da educação social entenda a complexidade própria da imanência do espírito de uma época e de sua ideologia determinada, o que exige uma “formação superior” rumo à desalienação do homem, não só do trabalho econômico pela superação da indigência, mas desalienação das formas culturais que se apresentam e podem ser instrumento de dominação. A finalidade da educação social deve ser voltada para esta erudição, que não é elitista, é para todos, verdadeiramente para todos, mas que não pode “reproduzir” tecnicamente as “velhas” formas de submissão.

Walter Benjamin (1994, p. 183) dá o tom desta submissão moderna por vias das tecnologias de comunicação de massa:

Seu objetivo (rádio e cinema) é tornar “mostráveis”, sob certas condições sociais, determinadas ações de modo que todos possam controlá-las e compreendê-las, da mesma forma como o esporte o fizera antes, sob certas condições naturais. Esse fenômeno determina um novo processo de seleção, uma seleção diante do aparelho, do qual emergem, como vencedores, o campeão, o astro e o ditador.

Enquanto produtor de cultura o conhecimento erudito se faz necessário para a resolução essencial de problemas que crescem em complexidade, relacionando-se aí a realidade social e o fenômeno humano – com e na mediação com o ambiente natural -, mas político, jurídico, econômico. Por outro lado, a educação social deve se preocupar com esses mesmos produtores de cultura e saber, para que não se tornem eles mesmos os manipuladores do conhecimento e se apropriem individualmente do conhecimento e ciência.

Enquanto consumidores todos os cidadãos são efetivamente “consumidores de saberes”, não apenas de valores de troca, igualmente nas artes, na educação, na organização política, jurídica e econômica. Como tal podem ser manipulados pelo controle discursivo, textualização e práticas orientadas para a reprodução de valores mercantis/ elitistas. Portanto, o conhecimento e os saberes sociais devem ser ministrados por processos que também se articulem de forma a possibilitar o reconhecimento dessa manipulação e desse poder de ser “domínio de poder pelo saber especializado”; devem-se construir processos educacionais que levem à prevenção da manipulação tanto como se esforcem para a desalienação ocupacional e política, na medida em que podem ser usados de forma profícua para o bem coletivo e extensão democrática do conhecimento e da ciência.

O processo de transmissão do conhecimento pelo processo educacional, quando visa ao coletivo e ao bem social, deve se instruir de procedimentos progressivos de aprendizado desde os mais tenros anos de vida da criança, até a sua maturidade. O espírito humano se regozija com o saber e a cada momento da experiência cultural se sente admirado e anseia por novos conhecimentos, na medida mesma em que a vida social exige soluções e comportamentos mais sofisticados diante das responsabilidades crescentes que o agente social adquire ao longo da vida, o que perfaz o seu crescimento. Isto o faz crescer como indivíduo e como cidadão. E o seu reconhecimento é fundamental para um ser mental e fisicamente melhor constituído, em bem estar consigo e com o mundo.

Por isso os conhecimentos devem ser gradualmente passados e as práticas do trabalho orientadas e exigidas em quantidade e complexidade de acordo com a idade e maturidade do indivíduo em processo de aprendizado. Mas não se deve imaginar, seja qual for o meio, a forma ou instituição de ensino, que o que é bom para uns não é para outros, uma visão sectária e discriminatória do tipo “você não nasceu para isso” ou “nem todos serão A ou B”. O mais simples indivíduo do povo tem capital intelectual suficiente para compreender quando adulto a essência da realidade social, o valor da ética, o benefício de agir coletivo, a felicidade de ajudar o próximo e o gozo da vida boa para todos. Bem como pode entender a essência e o objetivo de uma obra de arte, da manifestação espiritual mais livre, uma representação abstrata da alma que identifica a opressão, resiste à manipulação mediática, ao controle do discurso e à textualização da verdade oficial, do domínio do poder, da facilidade espúria da exploração dos mais fracos etc. A educação erudita que aqui se defende é universal e deve ser estendida a todos como forma mesma de evitar os mesmos mecanismos de dominação e exploração que o sistema de mercado e as classes dominantes impuseram na sociedade moderna industrial por vias da reprodução do capital.

Alguns autores refletindo sobre a pós-modernidade, achando que precisam necessariamente de desenvolver uma teoria moderna, abandonam a teoria ou caiem na mazela de repudiarem os conceitos, a explicação mais elaborada, a busca da essência, a desalienação do homem em face do trabalho em sua reprodução material e intelectual.

Diz Michel Mafessoli (1998, p. 19):

É bem verdade que tal depuração, por mais satisfatória que seja para a inteligência mecânica ou instrumental, é de pouco interesse  quando o politeísmo vital tende a afirmar-se com força. Há momentos em que não se pode mais mumificar ou isolar analiticamente o objeto ou o sujeito vivo. É então que, ultrapassando o conceito, é preciso saber associar a arte e o conhecimento. Sendo um e outro entendidos, é claro, em sua acepção mais ampla. Em resumo, não  se pode assimilar a humanidade, também movida pela paixão e pela não-razão, ao objeto morto das ciências naturais.

Contudo, não existe forma de fugir dessas mazelas senão pelos conceitos, pela elaboração discursiva de alto nível, como a precedente, desde que esteja planejada para o coletivo, fundamentalmente, pelo coletivo. A condição humana é a “circunstância”! O homem está na vida, no senso-comum, no erro, no infortúnio, na incompreensão, no movimento, em processo, portanto, na “escuridão”, a luz uma réstia fugaz em que o “dia” é mais efêmero do que a “noite”. Mas deve-se ter cuidado: o que nos resta? A banalização conceitual de nosso tempo é, infelizmente, saudada como salutar e própria em tempos pós-modernos, na verdade, em tempos de “nadificação” do humano, de sua alienação e desumanização pelo esvaziamento de valores, de ideologias, de conceitos, de enunciados. Sorvemos o nosso próprio veneno!

Porém, a libertação do homem não é o mito, a mistificação, a ignorância, o obscurantismo, o fanatismo, a apatia; nem tampouco o realismo cultural e educacional decidido e investido pela burocracia estatal e pelo poder totalitário. Pelo contrário, preparar as camadas mais humildes da população, e neste sentido, preparar os próprios “herdeiros do poder”, para a vida ética social que privilegie os direitos e instrua para as obrigações de todos, pelo bem aristotélico do Justo Total (Aristóteles, 1991), é destruir e prevenir respectivamente a hegemonia das elites burguesas e aburguesadas, evitar que seja substituída pela barbárie do centralismo totalitário estatal ou a construção de heróis a cuja personalidade só interessa a “fala do povo” no discurso mantenedor de classes. Este arrazoado se distingue algo de Gramsci que, como se disse anteriormente, em determinada oportunidade enaltecia a instrução dos trabalhadores em detrimento da burguesia. A pedagogia social que defendemos aqui é da educação social para todos! Colocar no mundo, preservar a vida ou transformá-la por um indivíduo melhor e para uma vida melhor. O Ser Social se forma no “espaço social relevante”.

Erich Fromm (2002, p. 271, trad. nossa) afirmava com relação à educação que:

[…] para considerá-la desse ponto de vista do processo social me parece que deve ser caracterizada deste modo: a função social da educação é a de preparar o indivíduo para o bom desempenho da tarefa que mais tarde será sua obrigação realizar na sociedade, isto é, moldar seu caráter de maneira tal que se aproxime ao caráter social.

Consequentemente o autor chega à conclusão que não é o homem que, em princípio, “faz” a sociedade, mas do ponto de vista de sua personalidade e caráter, é a sociedade que “faz” o homem; o homem é um ser social. É sabido quanto isto é reafirmado por Vygotski (1995, p. 338, trad. nossa): “Nada pode demonstrar melhor a origem social da personalidade da criança que o fato que somente com o incremento, a profundidade e diferenciação da experiência social cresce, se forma e desenvolve a personalidade da criança”.

A realidade das pessoas é mais abrangente que o “saber” e os “conceitos”. Contudo, a “história” precisa ser explicitada. Por aí que o sujeito fará a “interpretação” e a “síntese”, na “velha” forma socrática “amar a sabedoria”. Obviamente, a sabedoria não pode ser entendida como aquilo que petrificou. O conhecimento subjacente e popular deve instigar as várias camadas da sociedade, pela educação planejada e pela dinâmica da autogestão educativa, para que a sabedoria se engradeça com os conhecimentos crescentes da civilização, da mediação do homem frente à natureza e da emancipação, pelo esforço coletivo, da indigência. Daí que a erudição social, de domínio da maioria, deve proporcionar a síntese necessária “à vida do trabalho” de todos em sociedade como primeira necessidade material, e sentida como necessidade espiritual do homem. Regia Marx (2013, p. 242) que: “Por força de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o complexo das capacidades físicas e mentais que existem na corporeidade, na personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de qualquer tipo”.

Qualquer pedagogia que não prima pela superioridade elitista deve levar progressivamente a todos os indivíduos, e por meio de suas aptidões e conhecimentos, organização autônoma, formal e informal, as condições intelectuais para reformular o mundo e o transformar, transformando qualitativa e incessantemente as qualidades desse mesmo homem em consonância com as mais legitimas manifestações populares e altitude do espírito humano educado. Assim, igualmente, o passado não labutará contra o progresso da humanidade e de uma sociedade solidária e cooperativa, ao contrário, nutrirá de sabedoria e experiência a educação social em sua plenitude. Não existe motivo para abandonar, per se, o estoque acumulado de conhecimento técnico-cientifico para a construção do futuro, desde que se use a razão a serviço do homem e não contra ele.

Todas as sociedades de todas as épocas usaram a educação para a sociabilidade, fazendo-a instrumento de transmissão de valores e conhecimentos. Assim, na Antiguidade a “escola” servia aos ensinamentos da filosofia, das artes e da natureza com vistas à formação do “cidadão” voltado para o cuidado-de-si e para as obrigações com a cidade-Estado. Uma formação política integrada por todos os conhecimentos em prol de um projeto coletivo maior de vida boa para todos, que nem o advento dos “direitos” na época romana conseguiu destruir. Por séculos o logos (a razão) e a physys (a natureza) andaram juntas.

Na Idade Média a “escola” servia aos ensinamentos eclesiásticos e, portanto, à dominação da igreja sobre os indivíduos, formatando uma sociedade que deveria ser pastoreada a partir da religiosidade cristã. Nesta época a educação era instrumento da propagação do mito fundante do pecado humano e da disseminação do medo do inferno como punição após o julgamento final. Cabia aos cristãos se lamentarem, se amaldiçoarem, se punirem, se precaverem e tentarem a salvação de suas almas, primeiro pela fé (Sto. Agostinho), depois pelos atos (Sto. Tomás de Aquino), sempre conforme a obediência santa à igreja (Paulo de Tarso).

Então a Renascença trouxe o despertar da razão, do sensível, do experimento, da ciência. A escola é para a formação técnica, para a dominação da natureza, para a fragmentação e especialização do saber, para o trabalho. Diríamos que é assim desde o século XVI, e desde as primeiras descobertas astrofísicas e as grandes navegações que a escola sempre estará voltada, apesar de algumas reações humanísticas e das artes, para a primazia técnica-científica (Leonardo Da Vinci). De forma abrupta, a “experiência mecânica” e as relações de causa e efeito abrangem a filosofia, a política e a própria religião, quanto mais não seja porque a cultura e a arte precisarão servir aos propósitos da nova realidade de mercado.

Contudo, foi só na Modernidade que a escola sofre em definitivo a determinação tecnicista e mecânica e passa a servir à realidade do trabalho enquanto mercadoria. A época moderna é a primeira a experimentar o advento do capital e do fetiche das mercadorias, e é por meio dessa determinação da realidade de mercado que tudo e todos se convertem paulatina, mas obstinadamente, em utilidades, e a vida se orienta conforme o trabalho em abstrato, os valores de troca e a acumulação de capital. Desta maneira, a educação não é só o instrumento de oferecimento de conhecimentos técnicos, mas de valores, conceitos e enunciados que visam usar as tecnologias para a reprodução da vida mercantil. Por mais que as formas políticas e jurídicas apregoem a liberdade e a igualdade, o liberalismo burguês é de fato o “absoluto invertido” disto. Mas deve-se acreditar no corolário dominante: esta é a função maior da escola e da educação nas sociedades industriais sob o domínio da forma mercadoria.

Contemporaneamente nada muda com relação a estes objetivos mercantis da educação e a função da escola continua a mesma a serviço do nonsense de uma vida coisificada, com a agravante que a reprodução ampliada dos valores de troca se dá cada vez mais como trabalho morto, substituição do trabalho humano por máquinas e inteligência artificial. Mas isto não significa que a pós-Modernidade seja acéfala e que já não exista interesse em “preparar” a criança e o jovem para a conformação nos limites da reprodução da sociedade mercantil e permanência da hegemonia cultural que lhe é apropriada. Pelo contrário! O discurso “líquido” da pós- modernidade pode esconder, e muitas vezes o faz, as categorias essenciais pelas quais o capital em tempos de globalização domina e explora, acumula enquanto destrói, determina a falência não mais apenas do homem-produtor-de-si-mesmo, mas de sociedades, povos e nações inteiras mundo afora. Neste contexto, precisamente, a Educação Social e o trabalho obstinado e dedicado dos educadores sociais se ergue como diferencial para a humanidade em tempos de barbárie.

A educação social é para o trabalho, para a relação social e para a resistência e luta. Isto se dá pelo projeto coletivo e pela autogestão. A escola efetivamente já não tem lugar próprio, já não precisa de estruturas oficiais, ainda que também as possa usar. A propalada liquidez, que se manifesta hoje em termos de redes sociais teleinformáticas, o relativismo e a atemporalidade, e o obtuso esvaziamento de conceitos também se voltam contra os sistemas dominantes e podem ser utilizadas como “escapes” para a ação comunitária de educadores-mediadores sociais. Em tempos de globalização desenfreada da reprodução do capital, qualquer lugar “à margem” do oficialismo e da burocracia estatal, pode servir para a educação social que visa à tomada de consciência, à união de forças e à organização autônoma dos indivíduos.

Para todos os níveis de conhecimento e interesses dos grupos de representação e dignidade humana, o ato de educar é antes de tudo o resgate da humanidade e do homem como pivô da sua própria existência, na relação social e através dela, pela retomada do trabalho concreto rumo ao valor do capital intelectual e espiritual. Este trabalho não pode ser alcançado, obviamente, por um só homem, por um só grupo, por uma só geração. Perseverar obstinadamente na “educação” é o mantra dos educadores sociais! Esta é a forma filosófica do homem superar a sua finitude e o desalento que ela acarreta. É a resposta à pergunta “Que diferença fará?”.

Qualquer lugar de trabalho é um lugar para o encontro e aproximação de fulgurantes possibilidades individuais e reconhecimento de subjetividades, pois no fazer coletivo o pensar é o exercício do conhecimento e do aprendizado, primeiro como resistência e contestação, segundo como reconstrução do devir. Finalmente, nos estágios mais elaborados do trabalho-viver, a práxis produz a arte, o trabalho como arte realiza a arte no/pelo trabalho. Para tal processo a educação é a ferramenta mais importante e a escola, colocada nestes termos, o lugar de preparação-mediação de vigilância, resistência e luta pelo resgate do humano e do sentido do labor e da vida.

A história se faz enquanto mundo humano pela contradição, pela dialética que envolve o Universo, e no plano humano, em uma sociedade coletivista e de organização e participação efetiva popular, entre o passado e o futuro, de geração em geração, do antigo para o novo. Deve-se, pois, entender o passado, transformá-lo e refundar a história: a história da cultura e do homem passa por uma pedagogia que emane da vontade do Ser social. O agir “transformativo” deve ultrapassar a “experiência cultural” já vivida; o agir “educacional” deve ultrapassar o “comunicativo” nos moldes de formação e hegemonia de classe. O Ser social, no âmbito da educação social, deve saber contra o quê agir, por que agir e aonde se quer chegar. Educação social não trata de projeto de grupo, mas de humanidade, e isso só pode acontecer pela participação social disciplinada. Não existe “fala neutra” – todo projeto pedagógico tem intencionalidade e apregoa determinada ideologia, esta entendida como proposta de vida coletiva.

Na história as minorias sempre usaram o domínio do poder – pela forma jurídica e estatal – a submeter a maioria a seus interesses, e a cultura, a educação e as artes sempre foram instrumentos desses interesses não coletivos. Assim, não é propriamente uma questão de “formação” do educador que está em jogo, mas qual a “informação” que se quer passar e “para quem”. Ou, se se quiser, as práticas educativas estão sempre no âmbito da “ideologia”: de uma ou de outra ideologia; negar este fato é sempre pior que admiti-lo, porque daqui decorre a sua função e seu funcionamento. É Bernard Edelman (1976, p. 23) quem afirma que: “Mas o que basta à prática de uma ideologia – isto é as fronteiras que ela se traça – constitui precisamente a sua função e o seu funcionamento”.

A autogestão educacional, envolvendo instituições, educadores, educandos, famílias e sociedade, tem papel decisivo e transformador na essência do que realmente deve ser resolvido por vias da educação e qual seu papel social. Cabe à sociedade decidir qual o homem do futuro e em qual mundo (Ser)á: desta resolução estão depositadas a esperança da educação e da humanidade!


[1]Refere-se às datas de promulgação de resoluções que especificamente mencionam a educação como direito fundamental e inalienável da humanidade: ”Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”. Revolução Francesa. Agosto de 1789; “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. ONU. Dezembro de 1948; “Resoluções Aprovadas pela Conferência Geral Durante a Segunda Sessão”. UNESCO. Dezembro de 1947; “Constituição da República Federativa do Brasil”. Brasil. Outubro de 1988.

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