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Delação premiada 3: o problema do Estado traidor
Víctor Gabriel Rodríguez
03/05/2018
Tem muito a nos ensinar a entrevista, tão repercutida, concedida pelo narcotraficante “Nem da Rocinha” ao jornal El País, em março deste ano,[1] então vamos usá-la para a figuratividade deste último texto[2] de nossa trilogia. Perguntado pelo jornalista sobre a possibilidade de aceitar um acordo de delação, o entrevistado nega a hipótese enfaticamente – mesmo encarcerado, diz Nem, pretende manter um mínimo de dignidade que ainda lhe resta.
Não se pode de imediato enaltecer seu comportamento como absolutamente ético, já que não puramente motivado. Afinal, como novo enxadrista[3] que se revela o reeducando, sua declaração quer alcançar efeitos para além da pura retidão moral, de qual destaco ao menos três: (1) alardeia-o como mantenedor da ética, o que lhe ajuda na progressão de regime prisional; (2) preserva-lhe a vida, porque evita a certeira reação do grupo à sua eventual traição; (3) espalha a ameaça de sanção a partir de seu exemplo, como uma prevenção geral negativa extralegal.
Ainda sem essa pureza de valor que pretendeu enunciar, sua atitude, a meu ver, revela um posicionamento perante o Estado que merece nossas linhas. Ao renunciar à delação – e essa é a nova lógica a partir desse importante instituto –, o conhecido narcotraficante cria uma expectativa de direito, quer dizer, uma expectativa de tratamento ético por parte do Estado. E isso é um efeito natural do processo: (a) o Estado renunciou sua posição de ético por excelência, como vimos[4]. Logo, (b) passa a ser um negociador como qualquer outro. Portanto, (c) aquele que senta para negociar está obrigado marcar sua posição no diálogo, que não está predefinida.
E a posição daquele que rejeita a delação é mais clara: ele exige do Estado que se comporte na futuramente mais estreita ética. Diante do juiz, o não delator conquista o que os vanguardistas, por um conceito muito vago, chamariam de “local de fala”, quer dizer, a reciprocidade do comportamento reto. Com sua negativa à tentadora proposta de compra por delação, o Estado tem para com ele o dever de agir nos limites estreitos da lealdade da old school, da época pré-traição premiada. Tal como, se me permitem a analogia realista, um empresário que se nega a pagar propina ao fiscal de impostos, porque acha errado corromper: “aja com rigor, mas não exceda seus limites”.
Agora basta interpretar a contrario sensu, quer dizer, na situação de quem aceita o acordo de delação. O delator é aquele que, amparado pela lei, descumpre um compromisso anterior, concertado, mesmo que de modo tácito, com seus pares de delito. Portanto, ao usar dessa nova espécie de “diálogo” com o poder público[5], não tem com o interlocutor – o Estado – o valor moral de cobrar lealdade futura. É esse o fator que, a meu ver, melhor explica a constante tensão que se instala, até a sentença final do juiz, em todos os envolvidos em delação: o medo de que o Estado, seguindo o exemplo do réu agraciado, seja um traidor de seus próprios compromissos[6].
A probabilidade de que o Estado descumpra os preceitos do termo de acordo de delação é considerável – para não dizer “alta” – por muitos motivos. O primeiro deles já foi dito: travado expressamente entre partes que renunciaram a seus compromissos éticos, a boa-fé de quem lavra o compromisso está fissurada desde o início, o que compromete a interpretação de qualquer cláusula futuramente posta em controvérsia. Matéria nobre para os civilistas.
O segundo ponto é corolário: a própria lei penal, por sua lógica interna, concede uma série[7] de vias para que o juiz compense a redução da pena pela delação com outros meios penais, a exemplo da própria “personalidade do agente”, entre outras. Isso porque, como vimos em texto anterior, o sistema penal – formado na lógica não utilitarista – segue um sistema de maior punição ao indivíduo que rompe segredos. Um estudo mais aprofundado desses institutos está no livro que aqui apresentamos.
É por isso que uma das nossas “Sete antinomias da delação premiada” se chama “A antinomia do Estado traidor”[8]. Corresponde à hipótese daquele delator que, ao fazer as contas finais de sua condenação, nota que há mais prejuízo com o acordo do que sem ele; ou, ainda, perde o direito à despenalização porque o juiz considera insuficientes seus aportes, mas só após explorar todas as suas informações. Não será apenas com o sr. Joesley que haverá o dilema: de um lado, a injustiça que há quando o Estado descumpre sua parte no acordo de delação; de outro, a risível posição do traidor que se queixa ao Poder Público sobre a falta de boa-fé no cumprimento do termo: mas não se pode confiar em mais ninguém?
Nosso livro sistematiza essas gritantes contradições entre a ética e nossa herança cultural, em enfrentamento com a lógica utilitarista que nos invade. Tentei encarar o que creio ser a relevante tarefa dos novos tempos: desenhar o vetor que indica o caminho de buscar uma justiça efetiva enquanto se tenta, como disse o entrevistado, manter o mínimo de dignidade. Fácil não é, mas as respostas aparecem.
[1] A entrevista foi publicada em 18 de março de 2018, disponível no sitebrasil.elpais.com
[2] Essa trilogia tem por base nosso livro: Delação premiada: limites éticos ao Estado. Rio de Janeiro: Forense, 2018. 253 p.
[3] Na entrevista ao El País, “Nem” revela que está se dedicando a atividades como aprendizado de xadrez e leitura.
[4] Veja-se “Delação premiada 1: a antinomia da lei no tempo”, publicado neste veículo.
[5] Comentamos a posição da delação como refazimento do contrato social no Capítulo 7 da obra, intitulado “O Estado que Dialoga”. Vide p. 111 e ss.
[6] Sobre a possibilidade de traição, vide o Capítulo 13: “Como fazer uma delação”, p. 215 e ss.
[7] Vide subitem 12.3.2, “Antinomia da personalidade”, p. 206 e ss.
[8] Vide p. 210 e ss.
Veja também:
- Delação Premiada 2: Custo Humano e Extermínio Natural
- Delação Premiada 1: A Antinomia da Lei no Tempo
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