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Entrevista feita por Diego Prezzi Santos e Bruna Azevedo de Castro com o Professor Doutor Luiz Regis Prado
Luiz Regis Prado
02/05/2018
O Professor Regis Prado é natural da terra norte-paranaense, onde realizou seus estudos de graduação em Direito na Universidade Estadual de Londrina. Em São Paulo, continuou sua formação acadêmica obtendo os graus de mestre e doutor em Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Também nessa região paranaense desenvolveu-se profissionalmente. Na Universidade Estadual de Maringá, forjou sua carreira universitária galgando o ápice como professor titular de Direito Penal, por concurso público de provas e títulos. Na Universidade Estadual de Londrina, lecionou durante vários anos no curso de mestrado a disciplina Teoria Geral do Direito, e, na especialização, Direito Penal. Ainda no Paraná, vinculou-se por concurso público ao Ministério Público, e exerceu o cargo de Promotor de Justiça. Na atualidade, além de sua atuação como jurista e autor consagrado, integra o corpo docente do programa de pós-graduação stricto sensu da Faculdade Autônoma de Direito (FADISP). Entre suas principais obras jurídicas, podem ser mencionadas: Curso de Direito Penal brasileiro (2v.); Tratado de Direito Penal brasileiro (4v.); Direito Penal do Ambiente; Direito Penal Econômico e Bem jurídico-penal e Constituição, entre outras.
COMO O SENHOR CHEGOU AO DIREITO PENAL?
Na graduação da Universidade Estadual de Londrina, tive o prazer de ter como professor, um grande cultor do Direito Penal, Juarez Tavares, que àquela época, recém egresso de pós-graduação na Alemanha, dedicava-se ao ensino do Direito Penal. Durante três anos absorvi suas magistrais lições, e desfruí de seu companheirismo. Nesse período, começou a se desenvolver em mim o amor pela ciência do Direito Penal, que ainda perdura.
E A SUA EXPERIÊNCIA DE ESTUDOS NO EXTERIOR?
Aqui, limito-me a enumerar as duas mais importantes experiências jurídicas vividas por mim no exterior. Assim, depois de concluído o doutorado, e já como professor adjunto de Direito Penal, realizei estágio de pesquisa pós-doutoral na Universidade de Zaragoza (Espanha), onde tive a honra e o privilégio maior de ser orientado pelo insigne mestre José Cerezo Mir, que me abriu definitivamente os horizontes para doutrina da ação finalista criada por Hans Welzel, do qual era discípulo direto. Num ambiente de cultivo à ciência do Direito Penal, dediquei-me de forma intensa e total ao estudo e à pesquisa no campo penal e na filosofia geral e jurídica. Aí desfrutei também de salutar convivência e intercâmbio de ideias com grandes penalistas, tais como, José Luís Díez Ripollés; Carlos Maria Romeo Casabona; Luís Gracia Martín, Miguel Boldova Pasamar, Alicia Gil Gil, Juan Manuel Lacruz Lopes, Mariano Melendo Pardos, entre tantos outros. No período, escrevi sobre dogmática penal e questões gerais envolvendo Direito Penal Econômico e Ambiental. Posteriormente, tive a oportunidade de realizar estudos pós-doutorais no Centro de Direito Ambiental da Universidade Robert Schuman de Estrasburgo (França), onde aprofundei estudos sobre responsabilidade penal de pessoa jurídica, matéria jurídica ambiental, sistema jurídico francês e estrutura de poder e governo na Europa comunitária.
COMO FICOU ESCLARECIDO NA PRIMEIRA PARTE DA PERGUNTA, O SENHOR TEM UMA SÓLIDA FORMAÇÃO EM DOGMÁTICA PENAL E FILOSOFIA. QUAL É A SITUAÇÃO DA DOUTRINA FINALISTA NA ATUALIDADE?
Penso que na atualidade o Direito Penal no país vive um momento pouco auspicioso, eivado de incertezas e distorções. Isso em grande parte por força da própria situação do mundo em que se vive, dominado pela informação, fragmentário, contingente e falacioso. No que diz respeito à metodologia de matiz finalista, quer me parecer que continua sendo a aproximação dogmática preferível, dotada de grande logicismo e coerência, tanto nos aspectos gerais como nos especiais do arcabouço teórica do delito. É ainda predominante na doutrina e na jurisprudência brasileiras. Insignes penalistas latino-americanos dão guarita a essa concepção. Tem forte âncora na Espanha, onde vem cultuada por conhecidos professores de várias universidades. A Universidade Nacional de Educação à Distância, que congrega o maior número de estudantes de Direito do país, veicula firmemente a referida diretriz. A “Escola” deixada pelo saudoso Professor José Cerezo Mir constitui um exemplo de performance, seriedade e reputação científicas. É certo, porém, que outras concepções penais, especialmente de linha normativa-funcionalista, têm pululado entre alemães e espanhóis, ocupando espaço num verdadeiro tour de force a partir da concepção causal de delito, ou operando fusão com elementos de ordem finalista ou de outra esfera. Com sistemáticas próprias, em base causalista, podem ser mencionadas a tradicional doutrina italiana e a francesa. No Brasil, mais recentemente, como não poderia deixar de ser, tem-se assistido o nítido eco das primeiras elencadas, ainda que minoritárias, e, em geral, com recepção acrítica. Aqui cabe a advertência, aos menos avisados, para com as falácias, “modismos” e “artificialismos” hoje em voga. Pode-se afirmar – em paráfrase de Freud – que nem tudo que é novo ou apresentado com roupagem nova significa progresso ou é o melhor a ser seguido. De igual modo, todas as correntes de pensamento jurídico propaladas com seriedade científica têm a sua razão de ser, e devem ser objeto de reflexão e respeito. No mundo das ideias, em sede de teoria, ciência ou filosofia, nada existe meramente ultrapassado pelo tempo, como se deixasse de produzir efeitos, de influir no pensamento advindo a posteriori. É bastante o exemplo da contribuição helênica para a cultura ocidental ou a influência decisiva da filosofia liberal do séc. XVIII. Não há, por assim dizer, “propriedade” nem “exclusividade” no campo do conhecimento científico, seja do Direito, seja de outra ciência ou filosofia. É ele portador de um dinamismo próprio que consigna seu avanço. Em geral, o ideário filosófico, científico, evolui com o perpassar do tempo. Mas é igualmente verdadeiro que as grandes e bem lançadas concepções não restam adstritas muitas vezes à sua época. Perpetuam-se no tempo, na história. Em realidade, torna-se imprescindível pensar muito, muito além, levando-se em conta sobretudo o que de fato importa (mais que a adoção de uma ou outra teoria): o conhecimento e a aplicação correta e eficaz do Direito Penal com vistas à realização da justiça, de conformidade com os parâmetros do Estado Constitucional de Direito, da Constituição e da lei.
PROFESSOR, JÁ QUE O SENHOR TRATOU DE CONCEPÇÕES DOGMÁTICAS, ELAS SÃO REALMENTE IMPORTANTES PARA A BOA APLICAÇÃO DO DIREITO PENAL, DE UM DIREITO PENAL JUSTO?
Esta pergunta atinge o ponto nodal da questão. O mais importante é que se tenha a aplicação do Direito Penal conforme as diretrizes do Estado Constitucional de Direito e da Constituição que o agasalha em determinado país. É claro que há concepções mais coerentes e menos coerentes, concepções mais realistas e menos realistas, e em geral em dissintonia com a realidade fática e cultural. Neste sentido, penso que a dogmática penal finalista, em essência, e para o sistema jurídico continental, desponta como a que melhor se coaduna ao verdadeiro Estado democrático de Direito. Também, sua concepção do homem como pessoa gizada constitucionalmente. Todavia, adotar uma ou outra doutrina não se apresenta como o aspecto mais relevante, mas sim que esteja ela em consonância com o referido modelo de Estado e os direitos e garantias fundamentais albergados na Constituição.
APROVEITANDO A PERGUNTA ANTERIOR SOBRE ESTADO CONSTITUCIONAL, INDAGAMOS SOBRE A OPERAÇÃO LAVA-JATO E A CORRUPÇÃO QUE DEVASTA O PAÍS ATUALMENTE?
Essa é uma matéria, meus caros, que está todos os dias em todos os meios de comunicação, infelizmente. A questão da corrupção, de caráter praticamente endêmico no Brasil, é algo que não vem de hoje, é algo bastante antigo. O que se tem – a partir do Mensalão e da Operação Lava-Jato – vem a ser a emersão de um determinado tipo de corrupção e manipulação de dinheiro público jamais vistas na história do país. Isso, por seus elementos constitutivos, implica a ação de governos e operadores ligados ao poder em todos os níveis, e com variados matizes políticos. Então, a Operação Lava Jato, vamos dizer assim, constitui exemplo de atuação eficaz do poder competente (Poder Judiciário) na aplicação da lei penal, de um grande esforço contra-corrupção-impunidade. Ainda que mostre apenas uma parte do grande iceberg da corrupção e do desvio de dinheiro público. Lamentavelmente.
DEBATE-SE EM LIVROS, ARTIGOS E CONGRESSOS SOBRE A BASE TEÓRICA DA OPERAÇÃO “LAVA-JATO”. HÁ CRÍTICAS DE QUE NÃO SE RESPEITA A LEI FUNDAMENTAL E NEM AS BASES DO DIREITO PENAL. QUAL SUA OPINIÃO A RESPEITO DESSE ASSUNTO?
Meus caros, antes de mais nada, gostaria de assentar que uma operação de combate à corrupção dessa envergadura, conduzida por homens, é altamente complexa. E dificilmente é perfeita. Todavia, penso que é preciso evitar os extremos, é preciso balizar. Explico: tanto não se deve buscar a punição a qualquer preço como não se deve deixar de lutar contra a impunidade e todas as formas de corrupção que têm assolado há séculos o país. Este é o dilema, que, aliás, me faz lembrar a magnífica lição aristotélica na Ética a Nicômacos do “justo meio” entre os extremos. Na realidade, trata-se de aplicar a lei penal em obediência ao marco constitucional e legal, sem leniência, sem tergiversação. É necessário, por exemplo, que o Legislativo reforme o sistema normativo processual penal, e que o Direito Penal deixe de se preocupar tanto com bagatela ou reparação do dano. No caso da “Lava-Jato”, não se cuida de uma, mas de várias operações conjuntas, o que potencializa resultados, mas também eventuais deslizes. A mencionada operação em muitos aspectos tem arranhado a Constituição. É um fato. Por exemplo, não é admissível no sistema jurídico brasileiro a criação de forma de imputação subjetiva por qualquer órgão que não seja o Poder Legislativo, no caso, o Judiciário. O Código Penal é claro quando institui o dolo e a culpa como vetores fundamentais e únicos de imputação subjetiva penal. Não há espaço, tecnicamente falando, para criação de outro modelo em prejuízo do réu. Tem se verificado, lamentavelmente, o agasalho da chamada teoria da “ignorância deliberada”, que significa nada menos do que o translado de uma concepção alienígena estranha, portanto, ao sistema constitucional e penal brasileiros, sem nenhum amparo na lei. Na verdade, não se pode utilizar qualquer meio para se atingir determinado fim. Como se diz, os fins não devem justificar os meios.
ESSA IMPORTAÇÃO DE INSTITUTO JURÍDICO-PENAL ESTADUNIDESTE PARA O BRASIL É REFLEXO DE ATIVISMO JUDICIAL?
Na verdade, o traslado puro e simples de institutos e concepções feitos e amoldados para determinado sistema jurídico, no caso, common law, constitui uma temeridade. É extremamente delicado de se amoldar à sistemática continental e à garantia dos direitos fundamentais. Em princípio, essa concepção não constitui o melhor modelo teórico ou legislativo para o sistema brasileiro, sobretudo, no campo jurídico material. Esta questão de influência teórica vem a ser, no fundo, produto da globalização e da preponderância cultural, econômica, comercial, etc., e não da superioridade do sistema adotado. Não se pode deixar de contextualizar a matéria conforme o mundo cultural e normativo do país. Quanto ao ativismo judicial, tange-se outra questão polêmica. O ativismo judicial, especialmente nos tribunais superiores, tem crescido de forma assustadora no Brasil nos últimos anos. Isso por inúmeros motivos que não vem ao caso aqui descrevê-los todos. Apenas para ficar com um dado, a ausência de atuação do Poder Legislativo com presteza e celeridade necessárias constitui um deles. De qualquer forma, e em geral, o ativismo judicial quando contraria a lei e a Constituição não deve ser admitido. Ainda que o julgador tenha uma importante função interpretativa, isso não significa que possa substituir o legislador ordinário. Se isso ocorrer, atenta-se claramente contra a tripartição das funções estatais e, por conseguinte, contra a Lei Fundamental. Atinge-se também a segurança jurídica, pedra angular do Estado de Direito.
MUITO SE FALA NA PRISÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA OU EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA. O QUE O SENHOR PENSA A RESPEITO?
Antes de mais nada, alerto que sou a favor da aplicação correta, firme e célere do Direito Penal. Inclusive, para fazer frente à impunidade (contribuir para sua diminuição). Mas isso não significa flexibilizar as premissas estritas do Estado Constitucional de Direito, dando lugar, por exemplo, à insegurança jurídica (aliás, é o que se vive hoje, com o “vaivém” jurisprudencial, “festival” de ações e de recursos – cabíveis e incabíveis, “espetacularização” da justiça, etc). Não há que deixar-se convencer por proselitismos: ser “garantista” não significa ser a favor da impunidade, mas sim ser conforme aos ditames constitucionais-legais, nada mais nada menos. Posto isso, respondo brevemente ao questionado. De primeiro, é necessário secundar em certa medida a vigência do princípio constitucional da presunção de inocência, sem confundi-lo, como muitas vezes tem ocorrido, com outros princípios, igualmente essenciais, como o de culpabilidade e o de imputação subjetiva. É correta a existência de um número exagerado de recursos no sistema processual penal brasileiro. Este ponto é importantíssimo e merece atenção urgente do legislador. Repito, do legislador. Como mencionado, não se pode simplesmente comparar a realidade normativa e cultural do Brasil com outros países. A execução antecipada da pena, como posta recentemente, aparece de difícil aceitação, como obra pretoriana, pura e simples. A jurisprudência, seja em que nível for, não deve, em sintonia com a Constituição e o Estado democrático de Direito, criar ou antecipar a aplicação de pena. Demais disso, para ficar apenas nessa hipótese, não se trata tecnicamente de prisão preventiva e nem mesmo de prisão-pena, e sim de terceira forma de aprisionamento sem previsão legal. E isso é, no mínimo, preocupante. De outro lado, e em princípio, não há óbice nenhum à execução da pena a partir do julgamento em 2º grau, mas não da forma como está sendo realizada. Cabe ao Legislativo operar a transformação, isto é, prevê-la claramente através de normativa apropriada. Ademais, essa fórmula de execução de pena não constitui a panaceia de todos os males do sistema criminal, tampouco vai “acabar” com a corrupção ou a impunidade, como de forma ingênua vem sendo noticiado. Na verdade, e sem ilusões, a matéria é muito mais complexa e profunda. Trata-se apenas de um “endurecimento” do sistema, que pode ensejar de certo modo a reafirmação da ordem jurídica, a diminuição da sensação de impunidade, e, outros efeitos comuns à pena.
PROFESSOR, QUAL O PAPEL DO ENSINO JURÍDICO PARA ESCLARECER E CONTRIBUIR PARA O CONHECIMENTO E APLICAÇÃO MAIS EFICAZ DO DIREITO PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO?
Penso que o ensino e a pesquisa no campo do Direito, em geral, e da ciência do Direito Penal, em particular, devem ser vistas de forma séria e profunda, evitando assim certos modismos, excessos de casuísmo, falsos “progressos”, superficialidades de “resumos”, informações quase sempre inverídicas e sem a devida fonte propagada virtualmente. O ensino do Direito há de ser muito criterioso, buscando a formação jurídica e humanística do acadêmico (a crítica reflexiva – intra e extra sistemática; metodologia de conjunção sistema/problema), e não simplesmente a informação. Demais disso, convém estar atento para com as perversões ideológicas e seus apriorismos, a manipulação da história e dos conceitos, enfim as concepções que em última análise levam à objetivização, à “coisificação”, do ser humano – como, aliás, foi destacado há muito tempo por Beccaria e Kant. Também, impõe ficar alerta para não cair nos sectarismos políticos, morais, ou sociais, nos extremismos, nos “nacionalismos”, na farsa do “politicamente correto”, etc. O Direito tem relação estreita com a política, mas com ela não se confunde. Ainda, convém dizer que é mais do que nunca indispensável ter em conta o homem situado e o contexto histórico-cultural em que se encontra inserido num momento determinado. O homem, a conduta humana, deve ser o alvo principal da tutela jurídica penal, e não o “papel”, a representação, ou qualquer outro “instrumento” que se invente ou utilize. Assim, reafirma-se que o homem deve ser sempre o centro de todo o Direito. O docente tem importância crucial no sentido de ensinar e fazer divulgar, de forma objetiva e clara, o Direito enquanto ciência, sempre conforme à Constituição e à lei. Esta ideia deve servir como verdadeiro guia nos muitos e espinhosos caminhos da docência e da investigação no âmbito das ciências jurídicas.
Para finalizar, gostaríamos de externar o nosso agradecimento ao senhor pela breve e fecunda entrevista, e salientar que se trata de uma excelente oportunidade para a comunidade jurídica conhecer ainda mais alguns aspectos do seu pensamento, para além dos livros e artigos. Sempre didático, profundo, crítico e, de modo bastante salutar, com caráter garantista e enfoque humanista indispensável ao Direito e à sociedade. O senhor em cada fala menciona o constitucional, a dignidade humana, o Estado Constitucional, leitura que claramente é reflexo de uma compreensão antropocêntrica do sistema jurídico. Algo cada vez mais indispensável no mundo atual. Muito obrigado. Diego Prezzi Santos e Bruna de Azevedo de Castro.