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Delação Premiada 2: Custo Humano e Extermínio Natural

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Víctor Gabriel Rodríguez

Víctor Gabriel Rodríguez

26/04/2018

Tenho consciência do quanto é delicado questionar a delação premiada como instituto, quando ela se mostra o primeiro remédio eficaz a, na história brasileira, romper o círculo de silêncio da corrupção. Não é a única causante, é verdade, mas sim a maior responsável por levar ao cárcere pessoas que, há alguns anos, nenhum de nós apostaria que viriam a enfrentar a lei penal.

No entanto, essa visível vantagem não nos pode fazer renunciar a refletir sobre os inconvenientes do instituto, como sistematicamente fizemos em nosso Delação premiada: dilemas éticos do Estado[1], a ser brevemente publicado pela Editora Forense. Neste segundo texto de nossa trilogia, centramos nos mistérios do custo humano da delação, quer dizer, as vidas que ela pode sacrificar e, mais, as consequências que essa perda humana traz ao acesso à justiça penal. Uma questão e tanto que, se me permitem a falta de modéstia, nunca vi expressa por escrito.

Sabemos todos que há uma regra ética que coloca a traição como um desvalor em si mesmo. Ou, ao menos, existe uma regra moral muito vigente em nossa cultura latina[2], pela qual a traição é ausência de honorabilidade, mesmo quando feita em benefício do Estado. Se me permitem a pesada ilustração, o pérfido beijo de Judas não foi mais que a delação de alguém procurado pelas forças do Estado de então. Nem por isso, quer dizer, nem porque foi um exercício de fidelidade ao governo romano, deixou de figurar como o exemplo de ato individual execrável. Talvez o ato mais hediondo do Evangelho, que afinal é a pauta de nossa cultura. Delação e cultura latina nunca combinaram, mesmo se travestida de colaboração à lei e à ordem.

Problema está em que, quando o Estado promove o prêmio ao colaborador, autorreconhece-se utilitarista e, a nosso ver, renuncia expressamente a seu antigo posto de ente ético por antonomásia. Dessa renúncia, uma vez mais, surgem problemas novos, desde mais etéreos até os mais práticos. Aqui, seguindo a linha de nossa trilogia, optaremos por expor outros poucos exemplos dessa segunda categoria.

Porque, se admitimos que há uma regra social que exige a fidelidade, há que se reconhecer, para sermos bem kelsenianos, que seu descumprimento tem de implicar sanção. E sabemos – quer pelo exemplo dos batismos de sangue da máfia siciliana[3], quer pelo nosso cotidiano de convívio com o crime organizado do narcotráfico – que a traição ao grupo criminoso em regra se paga com a vida. Exemplo internacional bem recente está no caso do envenenamento do espião russo[4] em solo britânico: com o perdão da crueza em meu olhar, não creio que qualquer ente diplomático esperasse consequência diversa a alguém que promete fidelidade a um Estado e se vende àquele que deveria espionar, conquanto em tempos de paz estável. Se os países pretendem, hoje, simular surpresa e indignação com o ato do envenenamento individual, a fim de avançar em suas hostilidades globais, é outro aspecto em que não devemos interferir.

Entretanto, temos de ir adiante, em paralelo. Não acredito apenas que o Estado conhece o fim possível daquele a quem se oferece a delação, mas, pior, que o integra a seu sistema punitivo. Essa a realidade que deve ser assumida[5], a não ser que acreditemos nas teses mais românticas, que vão no sentido de que o Estado premia o delator porque neste encontra um novo amigo[6], um indivíduo que deixara a vida transviada do crime e merece tanto a misericórdia de não receber a pena quanto a proteção para não sofrer a vingança de seu antigo grupo. O problema é que acreditar nessa nova amizade implica crer, também, na eficácia dos programas de proteção à testemunha na América Latina, o que, em nossa opinião, ultrapassa a credulidade romântica e para alcançar o status, como dizia o poeta, de uma piada bastante perigosa. Melhor assentir no nosso posicionamento: o legislador não desconhece que o traidor pode pagar com a vida, mas esta se faz, à revelia do delator, um instrumento da paz coletiva. E essa instrumentalização se revelará eficaz ao quadrado, porque o Estado ganha com as informações do delator e também com seu extermínio, pois sequer tem de aplicar seu beneplácito.

Sorte que, na prática, essa dupla crueldade será rara. Afinal, os delitos relacionados ao crime organizado violento jamais serão delatados, como aliás é a experiência em quase toda a latino-américa. Ótimo para preservar vidas, mas nos traz um novo problema, o de acesso aos direitos. Em outras palavras, a medida despenalizadora da delação é, na prática, inacessível ao membro da criminalidade de baixo clero, do economicamente desfavorecido. Salvo alguma tendência suicida, alguém do crime organizado violento jamais exercerá seu direito à delação dos comandantes.

Em nossa obra, não ignorei que há algumas saídas ao dilema, como (a) o exemplo colombiano, em que se aceita extraditar o narcotraficante nacional ao país estrangeiro. Todavia, essa hipótese conta com um preço muito alto a pagar, em termos de soberania nacional; ou então (b) assumir que o Estado tem direito a desagregar e condenar à morte aquele que aceitara viver em um conjunto de regras paralelas, o que significa conceder direito de proteção apenas aos cidadãos, aos súditos fiéis, aos subscritores do contrato social. São teses que trazem muitos problemas, mas não são de todo inválidas.

Admitir a delação nos países latino-americanos significa posicionar-se entre aceitar seu preço em vidas ou assumir que ela é um direito seletivo. Como pesquisador, não tenho nenhum óbice preconcebido contra qualquer uma das versões, desde que seja assumida de modo explícito. Pessoalmente, inclino-me mais por reconhecer que a delação é apenas parte da velha lógica utilitária do Estado, de “viver e deixar morrer”, ou “live and let die” daquele filme de James Bond, do meu tempo[7]. Personagem, aliás, que sempre me insinuava que a Inglaterra nunca se importara tanto com a vida de espiões. Especialmente os russos.


[1] RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel. Delação premiada: limites éticos ao Estado. Rio de Janeiro: Forense, 2018. 253 p. Nas notas seguintes, fazemos referência a itens e páginas dessa obra.
[2] Em nosso texto anterior, revelamos que todas as antinomias da delação derivam da tentativa de mesclar direito penal material germânico, processo norte-americano e criminalidade tipicamente da América Latina. Vide “Delação premiada 1: a antinomia da lei no tempo”, publicado neste veículo.
[3] Sobre a traição como “death without trial” na Máfia Siciliana, vide capítulo 2.4 da obra, p. 28 e ss.
[4] O Capítulo 5 do livro é dedicado ao paralelismo entre delação premiada e a figura do agente infiltrado. Trata-se de alguns princípios relacionados à prática de espionagem. Vide p. 64 e ss.
[5] É o subtítulo 7.4.2, que intitulamos “A deliberada anulação do delator”. Vide p. 123 e ss.
[6] É a conclusão § 22 da obra. Ali mostramos os equívocos dessa concepção de premiar pela nova amizade. Vide p. 199
[7] O filme 007: viva e deixe morrer é de 1973.

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