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O ato anestésico e sua natureza jurídica
Genival Veloso de França
28/02/2018
Alguns admitem que o contrato médico é uma locação de serviços. Outros que a forma correta é considerá-lo um contrato sui generis, em virtude da especificidade e da natureza singular que se estabelece entre o profissional e o seu paciente. Desse modo, entendemos que, na responsabilidade civil contratual do médico, a obrigação é de meio ou de diligência, em que o próprio empenho desse profissional é o objeto do contrato, sem compromisso de resultado, cabendo-lhe, todavia, dedicar-se da melhor maneira e usar de todos os recursos necessários. Isso não quer dizer, no entanto, que ele esteja imune à culpa.
Por outro lado, alguns defendem a ideia de que o dano produzido em anestesia tenha configuração mais grave, por entenderem existir entre o anestesiologista e o paciente uma obrigação de resultado. Nesse aspecto, discordamos frontalmente, pois difíceis e delicadas são as situações enfrentadas por esses especialistas, notadamente nos serviços de urgência e emergência, quando tudo é paradoxal e inconcebível, dadas as condições excepcionais e precárias, diante da essência dolorosamente dramática da iminência de morte. Exigir-se deles uma obrigação de resultado é atentar contra a lógica dos fatos.
A obrigação do anestesiologista é de meio, porque o objeto do seu contrato é a sua própria atividade, quando emprega todos os recursos ao seu alcance, sem, no entanto, garantia de sucesso sempre. Só pode ser considerado culpado, se ele agiu sem os devidos cuidados, com insensatez, descaso, impulsividade ou falta de observância às regras técnicas. Não poderá ser punido se chegarem à conclusão de que todo empenho foi inútil, face a inexorabilidade do resultado, quando o especialista agiu de acordo com a lex artis, ou seja, se os meios empregados eram de uso atual e sem contraindicações.
Dizer-se que a obrigação do anestesiologista é de resultado, porque ele se compromete em anestesiar o paciente e depois reanimá-lo às condições normais, é, no mínimo, um absurdo. Primeiro porque a função de um anestesiologista não é apenas fazer o paciente dormir e acordá-lo; depois, o não fazer dormir e o não acordar podem constituir ocorrências cujas razões são independentes de sua vontade, ligadas às condições fisiológicas e patológicas do doente e decorrentes da própria limitação de sua ciência, ainda mais quando foram realizados todos os cuidados pré-anestésicos e solicitados todos os exames complementares.
O anestesiologista não tem como prever as muitas consequências oriundas dos aspectos multifários do organismo humano. Acrescente-se a tudo isso o fato de a Anestesiologia ser considerada por muitos a primeira especialidade de alto risco, porque todos os seus momentos são críticos, complexos e difíceis.
A abrangência da competência do anestesiologista o leva não apenas aos conhecimentos das técnicas usuais e aos cuidados pré, trans e pós-operatórios, mas ao domínio da função respiratória, aos cuidados da atividade circulatória, da prevenção do choque, da supressão do estímulo doloroso e da correção das alterações dos líquidos eletrolíticos. E mais: exige-se dele o conhecimento e a execução simultânea, e, às vezes, imediata, do acesso vascular superficial ou profundo; a permeabilidade das vias respiratórias; a manutenção dos sistemas vitais; o controle dos equipamentos; o domínio sobre os órgãos principais e acessórios da respiração; o controle das alterações gasosas e da capacidade residual funcional; além do controle da redução do volume-minuto.
Em síntese, o que se afirma não é que o anestesiologista não cometa erros – sejam eles de diagnóstico, de terapêutica e de técnicas –, ou que ele nunca seja negligente, quando se afasta da sala, ou imprudente, quando desnecessariamente atua de forma simultânea em duas anestesias, mas tão somente que a anestesia, tal qual vem se aplicando hodiernamente no conjunto das ações de saúde e em que se pese a relevância dada à modalidade de obrigação, não pode constituir um contrato de resultado, mas de meios ou de diligência – embora casos em que manifesta negligência ou imprudência venham a ampliar sua responsabilidade quanto aos métodos usados ou à terapêutica escolhida.
Nos casos de maus resultados, em que se procure comprovar um erro médico, o que se deve considerar, antes de mais nada, além do nexo causal e do tamanho do dano, é o grau da previsibilidade do autor em produzir o resultado danoso e a culpa suficientemente demonstrada, dentro das espécies negligência, imperícia e imprudência. Nunca, de forma dogmática, prender-se a um princípio discutível em que se afirma, equivocadamente, ser o ato anestésico uma obrigação de resultado, dentro da relação contratual entre o médico e seu paciente.
A obrigação de resultado, em que se exige do devedor ativo dar ou fazer alguma coisa, parece-nos a cobrança contratual aos prestadores de serviços de coisas materiais, ao não cumprirem a promessa quantitativa ou qualitativa de uma empreitada. Isso, é claro, não poderia ocorrer na assistência médica. A não ser que irresponsavelmente alguém prometesse tanto.
Mesmo assim, qualquer que seja a forma de obrigação de meios ou de resultado, diante do dano, o que se vai apurar é a responsabilidade, levando-se em conta principalmente o grau da culpa, o nexo de causalidade e a dimensão do dano, ainda mais diante das ações de indenizações por perdas e danos.
No ato médico, a discutida questão entre a culpa contratual e a culpa aquiliana, e, em consequência, a existência de uma obrigação de meio ou uma obrigação de resultado, parece-nos apenas um detalhe. Na prática, o que vai prevalecer mesmo é a relação entre a culpa e o dano, pois, hoje, até mesmo a exigência do onus probandi já tem remédio para a inversão da prova, qualquer que seja a modalidade de contrato.
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