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Concurso de crimes e diferenciação: cartel e fraudes à licitação
Marcelo Mendroni
14/12/2017
Ocorrendo situações em que se constate que as empresas formaram cartel (crime contra a ordem econômica) e depois, formado o cartel, fraudaram licitação pública (crime contra a administração pública), nada impede que sejam imputadas ambas as condutas aos respectivos responsáveis, em concurso formal ou material.
Não há, data venia a entendimentos contrários, conflito aparente de normas.[1]
Vejamos:
Artigo 4o, II, da Lei no 8.137/90: “Constitui crime contra a ordem econômica” – […] II – Formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando:
a) à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas;
b) ao controle regionalizado do mercado por empresa ou grupo de empresas;
c) ao controle, em detrimento da concorrência, de rede de distribuição ou de fornecedores.[2] (grifamos)
Artigo 90 da Lei no 8.666/93: “Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação.” (grifamos)
A forma mais correta de se entender a situação jurídica é aquela baseada na interpretação lógica e sistemática.
Embora ambas as condutas prevejam “ajustes” para as respectivas práticas criminosas, há, de fato, intensa diferença tipológica.
O crime de Formação de Cartel visa atingir, afetar e desestabilizar o mercado – sendo, assim, crime praticado contra a ordem econômica. Tal é o perigo abstrato dos “acordos, convênios, ajustes e alianças dos ofertantes”, que, para proteger o mercado – que deve girar em torno das leis naturais da economia (oferta/procura, livre concorrência) o Legislador criou a configuração do delito, seguindo os termos das Leis antitrusts internacionais. Aqui, o bem jurídico tutelado é o mercado em sentido amplo e genérico. Trata-se de Legislação protetiva do mercado, ou a concorrência no seu sentido abstrato, genérico. A Lei protege a capacidade competitiva das empresas, não uma específica concorrência.
Veja-se o comentário de Paul Samuelson e William Nordhaus:
“Se algumas grandes empresas de uma mesma atividade, ao procurarem defender-se da concorrência, são acometidas por um mesmo problema, elas podem – sem nunca se encontrarem, telefonarem, fazerem sinais ou sem se corresponderem – chegar tacitamente a um acordo de fixação de preços anticoncorrencial.”[3]
O crime de Cartel consuma-se no momento em que os acusados, mediante qualquer conduta de “ajuste”, formam (formalizam entre eles) o ajuste. Trata-se de crime formal – aquele que se consuma independentemente da obtenção do resultado. O “ajuste” é suficiente para ensejar a sua consumação. Tanto é assim, que o próprio tipo penal refere que o Cartel é formado “visando” e não “obtendo” resultado de fixação artificial de preços.[4] Significa que o crime se consuma, mesmo que depois as empresas não consigam efetivamente, por qualquer razão, praticar os preços combinados.
O crime de fraude à licitação, também de natureza de crime formal – que não depende do resultado para ser considerado consumado, se inicia no momento em que os agentes criminosos apresentam propostas na concorrência pública. Trata-se de legislação protetiva de determinada(s) concorrência(s) no seu sentido concreto, específico.[5]
Se no delito de formação de Cartel os agentes visam fraudar o mercado (de bens/serviços) com a sua natural concorrência, no crime de fraude à licitação, os agentes agem para fraudar uma específica concorrência[6] – sendo este, pela sua natureza, fraude por crime contra a Administração Pública. Não é porque ambos os delitos têm núcleo de “formar acordo ou ajuste”, que configuram a mesma conduta. Podem existir, aliás, outros tipos penais que também se configuram em virtude de “acordos” ou “ajustes” entre os criminosos. Nestas condições torna-se imperioso aferir a finalidade dos tais “acordos/ajustes”.
No crime de Cartel, a situação é gerada por um conflito de interesses, de empresas ou grupos/consórcios de empresas que perseguem um objetivo geral de dominação de mercado, visando suplantar adversários concorrentes em competições e disputas. Na Fraude à Licitação, diferentemente, as empresas ou grupo/consórcios de empresas buscam vencer determinada concorrência, notabilizando-se pela fraude de especialidade ou de especificidade de certa concorrência.
O crime de Cartel é dinâmico, com alterações entre empresas na disputa da predominância do mercado e, para tanto, com eventuais manipulações dos consórcios. O crime de Fraude à Licitação é estático, fixando as empresas (ou consórcios) a sua meta e o seu objetivo nos termos da divisão de uma determinada licitação. Os atos criminosos são praticados em face e em vista da almejada licitação.
Outra clara distinção a respeito da diferenciação e aplicação de delitos de formação de cartel e fraude em licitação está na hipótese da concorrência com empresas de fachada ou fictícias. No crime de formação de cartel, as empresas que formam acordos, convênios, ajustes ou alianças entre ofertantes, visando: a) à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas; b) ao controle regionalizado do mercado por empresa ou grupo de empresas; c) ao controle, em detrimento da concorrência, de rede de distribuição ou de fornecedores; devem, necessariamente, ser empresas verdadeiras, e nunca empresas fictícias ou de fachada. Isto porque empresas fictícias ou de fachada não produzem, não conseguiriam jamais obter qualquer tipo de controle de mercado e tampouco abalariam, de qualquer forma, a concorrência, que não existe entre empresas dessa natureza. Em resumo, pela própria natureza de empresas que simulam ou tergiversam atuações mercantis, não ofendem o mercado, mas são capazes de fraudar concorrências públicas e/ou provadas. Então, quando empresas de fachada e/ou fictícias simulam concorrência pública entre si, a tipificação penal, segundo interpretação lógica, é aquela do artigo 90 da Lei n° 8.666/93: “Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação”; além, muito possivelmente, da capitulação do artigo 299 do Código Penal quando da falsificação ideológica em documentos para a criação de uma empresa de fachada/fictícia. Nos casos de concorrências privadas, entendemos, haveria tipificações deste artigo 299 do Código Penal e ainda alguma das figuras penais do Título II, Capítulo VI do Código Penal – “Do Estelionato e outras Fraudes”.
[1]?Nesse sentido, da existência de conflito aparente de normas, veja-se MARTINEZ, Ana Paula. Repressão a cartéis: interface entre direito administrativo e direito penal. São Paulo: Singular, 2013, p. 194-197.
[2]?Redações dadas pela Lei no 12.529, de 2011.
[3]?SAMUELSON, Paul; NORDHAUS, William. Economia. 12. ed. Lisboa: McGraw-Hill, 1988, p. 657.
[4]?Cf. também na Alemanha a mesma conceituação. TIEDMANN, Klaus. Wirtschaftrecht. Köln: Carl Heymanns (Verlag), 2008, p. 79.
[5] Segundo o relatório da OCDE: OECD Foreign Bribery Report – an analysis of the crime of bribery of foreign public officials/ 2014, p. 8; 57% dos casos que envolvem corrupção decorrem de concorrências para contratos públicos: “In the majority of cases, bribes were paid to obtain public procurement contracts (57%), followed by clearance of custos procedure (12%)”.
[6]?Concorrências por vezes se dividem ou se desdobram em outras ou em lotes.
Veja também:
- Dinheiro escondido/guardado configura crime de lavagem?
- Os Saqueadores do Estado
- Caixa 2
- A indústria das Multas de Trânsito
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