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Nova lei, velha mentalidade
Hugo de Brito Machado Segundo
01/12/2017
Aos poucos, com o tempo, a jurisprudência está estragando o novo CPC, podando de suas disposições o que têm de bom. Isso, pelo menos, no que tange àquelas disposições boas porque destinadas a corrigir males causados por julgadores, os mesmos que agora as têm de interpretar e aplicar.
Um dos maiores avanços do novo CPC, como se sabe, residia em seu capítulo destinado aos recursos, permeado de disposições voltadas a emprestar maior racionalidade às formas exigidas ao seu conhecimento. Em todas elas, subjacente à sua literalidade, acha-se, de forma clara, a ideia segundo a qual só não se deve conhecer de um recurso quando realmente isso não seja possível, por conta de um vício factualmente incorrigível.
Apesar disso, recentemente a Corte Especial do STJ decidiu que a parte que interpõe recurso dentro do prazo – porque calculado à luz de feriado local – não pode comprovar a existência desse feriado posteriormente, quando posta em dúvida a tempestividade. O julgado foi noticiado e muito bem resenhado no Migalhas.
Imperou o velho princípio de dar razão a quem não necessariamente a tem, por motivos formais. O vetusto processo como jogo de armadilhas e surpresas.
Com todo o respeito, trata-se de um grande equívoco. Errado à luz do CPC de 1973, o julgado é ainda mais equivocado, com a máxima vênia, diante do CPC de 2015.
Primeiro, porque a existência de um feriado local não deveria ser posta em dúvida pelo Judiciário, à luz do que dispõe o art. 19, II, da CF/88, segundo o qual não é lícito à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios recusar fé a documentos públicos. Se a parte afirma ter havido feriado, e isso é decorrente de ato exarado pelo Município, ou pelo Estado, o STJ não deveria sequer colocar o fato em dúvida, presumindo-o como não ocorrido “salvo prova em contrário”, a qual teria sido trazida a destempo e por isso não seria aceita (prevalecendo assim a tese de que o referido documento não conteria informação verdadeira). O Tribunal não pode dizer ao documento público: “não quero nem vê-lo”, presumindo em seguida que a informação ali constante é falsa.
Na verdade, quando o CPC se reporta à comprovação dos feriados locais, faz menção à mera indicação, fundamentada, desse fato pela parte, o que não autoriza o Judiciário a, por vias transversas, “fazer de conta” que o feriado documentado não existe apenas porque a documentação não fora juntada no ato da interposição do recurso.
Mas, mais importante – e expresso – do que isso, o entendimento aqui examinado impacta, frontalmente, o que consta do art. 932, parágrafo único, do CPC/2015:
Art. 932. Incumbe ao relator:
(…)
Parágrafo único. Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível.
Assim, vê-se que não há apenas violação à Constituição, à efetividade da jurisdição e à isonomia, quebrada quando duas pessoas em situação igual recebem decisões diferentes do Judiciário, o que na maior parte das vezes ocorre porque os Tribunais encarregados de UNIFICAR tais entendimentos não conhecem de recursos por razões assim vazias e estéreis. Não há apenas violação à razoabilidade e ao devido processo legal. Viola-se mesmo a clareza de uma disposição legal, cujo texto não parece deixar espaço para entendimento diverso: se for possível corrigir o vício, deve-se oportunizar sua correção. E é óbvio que a falta do aviso de que havia um feriado local pode ser corrigida posteriormente.
O Ministro Herman Benjamin, na ocasião, ao votar pelo não conhecimento do recurso, usou de fundamentação muito, mas muito criticável. Em seu favor, pode-se reconhecer que, pelo menos, foi sincero. Disse: “Não podemos aceitar nenhum mecanismo que pela porta dos fundos amplie a quantidade de processos.”
Dito de outro modo: toda interpretação tem de orientar-se no sentido de NÃO CONHECER de recursos. Exatamente o inverso do que afirma o novo CPC.
Ou seja: não importa se a parte tem razão. Não importa fazer justiça. Importa acabar com os processos. Como se, em um Hospital onde já não há leitos para todos, a solução fosse matar logo alguns pacientes… Na dúvida, em vez de salvar, ou mesmo prolongar a vida do doente, deve-se matar: afinal, assim se alivia a superlotação.
Merecem elogios o Ministro Raul Araújo e o Ministro Otavio de Noronha, que insistiam na necessidade de mudança de mentalidade. Pena que ficaram vencidos. Talvez se regozije no túmulo, rindo de soslaio, o grande Jean Cruet, autor do “A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis”, para quem “vê-se todos os dias a sociedade reformar a lei; nunca se viu a lei reformar a sociedade”. Não parece que a ideia possa ser acolhida assim de forma categórica como ele pretendia, como se a ela não se pudessem apontar exceções. Mas que neste caso Cruet está acertando, está: a velha mentalidade aos poucos torna inócua a nova legislação. Ao que tudo indica, muitas surpresas ainda aguardam os que militam nas esferas recursais, principalmente aqueles que acham que os artigos do novo CPC significam o que neles parece estar escrito.
Veja também:
- Jurisprudência defensiva e a fundamentação das decisões sob a égide do CPC de 2015 (ou “o que é ruim sempre pode piorar”)
- PUBLIEDITORIAL: Hugo Segundo apresenta o novo Manual de Direito Tributário
- Poder e competência
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