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Marcílio Toscano Franca Filho

Marcílio Toscano Franca Filho

04/10/2017

Por Marcílio Franca e Inês Virgínia Soares[1]

No conto “Funes, o Memorioso”, Jorge Luís Borges fala-nos do prodígio que era a memória de Ireneo Funes, o jovem que, depois de uma queda de cavalo que o deixara paralítico, tornou-se capaz de recobrar com perfeição “todos os brotos e cachos e frutas que se encontravam em uma parreira”, ou “as formas das nuvens austrais do amanhecer de trinta de abril de 1882”, ou ainda “as linhas da espuma que um remo levantou no Rio Negro”. Assim como o Google de hoje, o problema de Funes não era o esquecimento, mas a perpétua recordação.

Em agosto, protestos na até então pacata Chalottesville, a 200 km de Washington, trouxeram à tona um assunto ainda pouco discutido nas salas de aula e salas de audiência brasileiras: a visão da sociedade atual sobre as mensagens transmitidas pelos protagonistas do passado que ocupam espaços públicos com imagens em monumentos e nomes estampando ruas e praças. Memória e esquecimento digladiavam em praça pública.

Os protestos na Virgínia mostraram que o silêncio sobre o tema não decorria da sua pouca litigiosidade. Ao contrário: a memória sempre gerou graves disputas, afinal quem detém o presente detém também o passado. E os monumentos de Chalottesville se mostraram um barril de pólvora. A solução adotada pela prefeitura local foi cobrir de lona preta as estátuas, seguindo o ditado popular “longe dos olhos, longe do coração” ou “o que não é visto, não é lembrado”. Mas o fato é que, coberto ou não, o monumento continua lá, como uma pedra no meio do caminho da memória social. E o racismo, o preconceito e as lutas por igualdade ainda são assuntos espinhosos na democracia americana, que não podem ser escondidos embaixo de uma lona preta.

No Brasil, memória e esquecimento foram recentemente questionados em uma ação civil pública proposta na Justiça Federal em Curitiba pelo Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas do Paraná, pelo Sindicato dos Servidores do Magistério Municipal de Curitiba e pelo Centro Acadêmico Hugo Simas (da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná). A ação pede que os retratos dos presidentes do período da ditadura (1964-1985) sejam excluídos da galeria de fotos do Palácio do Planalto, que apenas deveria expor os governantes que ocuparam o poder de forma legítima. O requerimento desperta questões difíceis: Afinal, como (re)contar a história de atrocidades? Qual o lugar dos ditadores e dos algozes na democracia brasileira? Um problema adicional é que nunca foi fácil definir as fronteiras da ocupação legítima do poder no Brasil. O Deodoro de 1889, os eleitos pelos currais eleitorais da República Velha, o Getúlio de 1930 e os presidentes impedidos têm lugar inequívoco na galeria dos legítimos? E os porventura eleitos com dinheiro da corrupção?

No Direito Comparado, a Espanha tentou lidar com situação semelhante pela via legislativa. A “Lei de Memória Histórica” (Lei 52/2007, de 26 de dezembro) foi aprovada durante o governo do primeiro-ministro José Luis Rodríguez Zapatero e deu margem a grandes controvérsias. Com base no art. 15 da “Lei de Memória Histórica”, praças e edifícios foram renomeados e até pesadas estátuas eqüestres do franquismo foram removidas. O tal dispositivo dizia o seguinte:

Artículo 15. Símbolos y monumentos públicos.

 1. Las Administraciones públicas, en el ejercicio de sus competencias, tomarán las medidas oportunas para la retirada de escudos, insignias, placas y otros objetos o menciones conmemorativas de exaltación, personal o colectiva, de la sublevación militar, de la Guerra Civil y de la represión de la Dictadura. Entre estas medidas podrá incluirse la retirada de subvenciones o ayudas públicas.

2. Lo previsto en el apartado anterior no será de aplicación cuando las menciones sean de estricto recuerdo privado, sin exaltación de los enfrentados, o cuando concurran razones artísticas, arquitectónicas o artístico-religiosas protegidas por la ley.

3. El Gobierno colaborará con las Comunidades Autónomas y las Entidades Locales en la elaboración de un catálogo de vestigios relativos a la Guerra Civil y la Dictadura a los efectos previstos en el apartado anterior.

4. Las Administraciones públicas podrán retirar subvenciones o ayudas a los propietarios privados que no actúen del modo previsto en el apartado 1 de este artículo.

Durante o governo do primeiro ministro Mariano Rajoy, a “Ley de Memoria Histórica” quedou derrogada de fato, pois o orçamento espanhol deixou de prever quaisquer dotações para sua aplicação.

Em 1903, o professor Alois Riegl publica, a pedido da Comissão Central de Arte e de Monumentos Históricos da Áustria, o seu “O Culto Moderno dos Monumentos”, em que defende que os monumentos não possuem valor artístico absoluto ou eterno, mas apenas relativo, e que a avaliação de um monumento (apesar de ser testemunho de uma época) repousa nos valores presentes. Como num palimpsesto medieval, há aqui muitas camadas sobrepostas de interpretação. Nesse cenário, Márcio Seligmann-Silva ressalta a importância dos antimonumentos. Foi com essa visão, por exemplo, que, na África do Sul, o Governo Mandela decidiu edificar a belíssima Corte Constitucional Sulafricana exatamente ao lado do mais sombrio presídio político de Joanesburgo, mantido intacto. E também que, na Argentina, se preservou o emblemático edifício de Virrey Cevallos, onde funcionou um centro clandestino de detenção subordinado à Força Área, durante a ditadura. O caso da Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA) é ainda mais conhecido no âmbito internacional. O então presidente Carlos Menem chegou a anunciar a demolição da ESMA para construção de um parque, mas a Justiça argentina, no entanto, reconheceu a obrigação do Estado de preservá-la. Em julho de 2017, com a chegada do presidente Mauricio Macri ao poder, a discussão sobre o uso do prédio da ESMA foi reaberta e, com a concordância dos movimentos e organizações sociais, o espaço onde funcionava a antiga discoteca (na qual presas políticas eram levadas para diversão de oficiais) e que estava desocupado desde o fim da ditadura foi transformado em escritório do Ministério da Justiça e Direitos Humanos.

Naquele conto sobre “Funes, o Memorioso”, o Borges narrador é enfático: “Suspeito, contudo, que [Funes] não era muito capaz de pensar. (…) No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.” De tanto rememorar, Ireneo Funes já não tinha tempo para refletir, o que é sempre indispensável. Ademais, conservar (seja um monumento, uma relíquia ou um retrato) não é o mesmo que reverenciar. O termo “monumento” vem do latim “monere” que, entre outros significados, também é advertir ou admoestar. No caso brasileiro, advertir ou admoestar para que a democracia seja perene.


[1] Inês Virgínia Prado Soares é Procuradora Regional da República em São Paulo, Doutora em Direito pela PUC-SP, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e autora do livro “Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro” (Ed. Forum). Marcílio Toscano Franca Filho é Presidente do Conselho Superior do Ramo Brasileiro da International Law Association (ILA Brasil) e árbitro suplente do Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL. É Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, fez pós-doutorado no Instituto Universitário Europeu de Florença (Itália) e é coautor do livro “Direito da Arte” (Ed. Atlas).

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