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De repente do riso fez-se o pranto: O problema da autoria na obra de arte contemporânea

ARTE CONTEMPORÂNEA

AUTORIA

OBRA DE ARTE

Marcílio Toscano Franca Filho

Marcílio Toscano Franca Filho

14/08/2017

Por Marcílio Franca e Inês Virgínia Soares[1]

Numa separação, para além das escolhas prosaicas sobre o destino a se atribuir àquele volume de Neruda ou ao CD de Chico, cumpre ainda, em muitas ocasiões, decidir até mesmo complexas questões estético-artísticas.

Num caso recente, ainda pendente de decisão judicial perante a New York Southern District Court, o badalado casal de artistas contemporâneos Eric Chan, japonês, e Heather Schatz, texana, depois de anos de uma profícua sinergia, litigam agora não apenas sobre o divórcio mas também sobre a coautoria de algumas peças.

Chan reivindica-se o verdadeiro e único autor de várias obras antes assinadas em coautoria com Schatz sob o nome conjunto “ChanSchatz”. Na versão dele, ela teria ocasionalmente fornecido tão-somente sugestões e conselhos para peças, mas nunca “expressões criativas independentes”. Ademais, o nome conjunto “ChanSchatz” seria, segundo ele, simples homenagem ao seu relacionamento e uma demonstração de amor por sua ex-esposa. Ela, obviamente, discorda: suas contribuições foram significativas, como comprovado pelo uso do joint name e sua longa história de trabalho conjunto em público.

Com sinais trocados, o caso faz lembrar um episódio da biografia do impressionista Pierre-Auguste Renoir. Aos 72 anos e já um pintor consagrado, Renoir é instado pelo marchand Ambroise Vollard, em 1913, a enveredar pela escultura, modalidade artística a que Renoir havia-se dedicado pouquíssimas vezes, por volta de 1875, mas que há tempos não praticava. Apesar de gostar da proposta, Renoir, na altura, já padecia de uma avançada artrite-reumatóide, que quase lhe paralisava as mãos. Fisicamente, não suportaria o trabalho. Para contornar o problema, Ambroise Vollard ofereceu a Renoir uma solução: emprestaria ao velho pintor as mãos fortes e ágeis de um jovem e competente assistente, o catalão Richard Guino, a quem Renoir deveria inspirar e conduzir. E entre 1913 e 1917, em meio ao belo jardim da propriedade de Collettes, em Cagnes-sur-Mer, sul da França, Guino foi as mãos de que prescindia, cada vez mais, o escultor Pierre-Auguste Renoir para o duro trabalho de moldar os seus queridos temas mitológicos – também presentes nas suas pinturas do mesmo período, mas realizadas sem ajuda de Guino.

Renoir morre em 1919. Em 1965, idoso e doente, Richard Guino demanda contra os herdeiros de Renoir a coautoria póstuma de várias esculturas moldadas por ele sob direção do mestre, entre os anos de 1913 e 1917. Pede ainda uma indenização de 200 mil francos. Em 1973, finalmente, a Corte de Apelação de Paris deu ganho de causa a Guino, declarando-lhe a condição de coautor de Renoir, depois de um longo e moroso processo.Guino, falecido poucos meses antes, não chegou a ver seu nome ao lado do de Renoir em catálogos e exposições. Até 28 de Julho, algumas das esculturas assinadas agora por Renoir & Guino puderam ser vistas na mostra “O impressionismo e o Brasil”, que esteve em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM).

Há muitos outros casos. Durante mais de uma década, por exemplo, a sérvia Marina Abramovi? e seu marido Ulay (nome artístico do alemão Frank Uwe Laysiepen) foram considerados os principais performers da arte contemporânea. Separaram-se em 1988 e, para marcar o final do romance, realizaram, no ano seguinte, uma performance em que, partindo de extremidades opostas da Muralha da China, cada artista andou 2.500 km até encontrarem-se a meio do caminho, depois de meses de solitária caminhada. Em 2015, Ulay processou Abramovic numa corte holandesa. O alemão afirmava que a sua ex-mulher havia pedido a galerias que indicassem apenas o nome dela na assinatura dos trabalhos conjuntos, entre outras demandas financeiras. Em 2016, magistrados de Amsterdam declararam a vitória de Ulay, condenando a sérvia a uma indenização de 250 mil euros.

Antes dessa ação judicial, mas depois da separação, Ulay e Marina Abramovic protagonizaram um vídeo de cerca de quatro minutos que retrata um encontro deles no MoMa, Nova Iorque, em 2010, durante a performace de Marina, intitulada “A Artista está Presente”. A performance consistia em a artista ficar sentada, em silêncio, e olhar nos olhos da pessoa que se sentava à sua frente. Em três meses, passaram pela artista 1.750 pessoas, dentre as quais, Ulay. Ambos argumentam que não houve combinação, que o encontro foi fortuito. E isso nos traz outra questão igualmente interessante: qual o papel dos expectadores na performance? Seriam eles também protagonistas ou coautores? Um dos produtos desse encontro entre Marina e Ulay é um conjunto de fotografias dos expectadores, intulado “Marina Abramovic me fez chorar”, de autoria de Marco Anelli, publicadas no livro “Portraits in the Presence of Marina Abramovic”.

Se amantes rompem relações, amigos também brigam, ainda que não sejam coautores. A hora do rompimento de Candido Portinari e Gustavo Capanema também foi traumática. Do encantamento de Capanema pelo renomado artista até o aborrecimento irremediável, passaram-se cerca de dois anos, o tempo da realização dos trabalhos no Palácio da Educação, Rio de Janeiro, hoje Palácio Gustavo Capanema. Essa ruptura não passou pelo judiciário porque foi alvo de censura do próprio retratado. O motivo da discórdia foi o painel de 72 metros quadrados, com desenhos de Candido Portinari, cujos peixes que o ilustravam imitavam o rosto do ministro da Educação (1934-1945), Gustavo Capanema. Os inocentes peixes, de perfil, tinham a testa proeminente e a boca do ministro, e deviam compor o painel do Palácio Gustavo Capanema, mas foram substituídos por outros seres do mar. Os azulejos “peixe cara de gente” só foram descobertos em 1984, 40 anos depois de sua colocação e imediata retirada, num inventário de rotina feito pelo Iphan.

Não bastassem tais controvérsias, obras de arte instantâneas ou efêmeras ainda desafiam a questão da autoria quando são fotografadas. Uma vez desaparecida uma obra daquelas, concebidas para durar pouco, restam muitas vezes apenas seus registros fotográficos. Mas quem é o autor/artista agora? O fotógrafo que as perenizou sob ângulos e luzes idiossincráticos ou o performer, player ou grafiteiro que as concebeu e executou? A questão está longe de ser pacífica!

Em dezembro de 1997, Alberto Sorbelli, ex-bailarino na Ópera de Roma, realizou uma encenação, no Museu do Louvre, em Paris, em que, travestido em roupas vulgares, dançava sensualmente em frente à Mona Lisa. O número, que ele chamou de “Tentative de Rapport avec un Chef d’Œuvre”, fazia parte de uma série de homenagens à obra-prima de Da Vinci. A performance foi amplamente registrada pelo fotógrafo japonês Kimiko Yoshida. Três anos mais tarde, Sorbelli questiona judicialmente o fato de que algumas daquelas fotos teriam aparecido em um catálogo de Yoshida sem sua autorização e sem qualquer referência ao seu nome ou ao título de sua performance no Louvre. Em 2004, a Corte de Apelação de Paris decide, finalmente, que Kimiko Yoshida é também autor/criador das imagens e não um mero disparador de diafragmas sob as ordens do dançarino. Todavia, Alberto Sorbelli, como sujeito ativo da composição, também goza de direitos de imagem e as fotos só poderiam ser comercializadas com sua autorização. O tribunal, enfim, reconhecia a colaboração, parecendo ter-se influenciado pela frase de Paul Klee: “L’art ne reproduit pas le visible, il le rend visible”.

Tradicionalmente, embora alguns dos direitos autorais (de fundo econômico) sejam transferíveis e negociáveis, a (co)autoria, como direito moral inalienável do autor, não se desfaz com o fim de um relacionamento artístico. Todavia, na arte contemporânea, é cada vez mais difícil definir o que é, de fato, autoria e quem é mesmo o autor de uma obra. Poderíamos continuar aqui a dar exemplos por parágrafos sem fim. Desde o famoso urinol de Marcel Duchamps, em 1917, até o caso de criadores mais recentes como Jeff Koons ou Damien Hirst, dois dos mais ricos e caros artistas da atualidade, mas que, em suas linhas de produção, põem muito pouco as mãos na massa, está cada dia mais complexo compreender quem é o verdadeiro autor de uma obra de arte contemporânea.

Muitas vezes, quando se discute hoje “a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (Walter Benjamin) se fala também de “a morte do autor” (Roland Barthes). Será? Esse é mais um dos inúmeros desafios que o direito contemporâneo tem que enfrentar, dadas as enormes repercussões econômicas, constitucionais e humanitárias do direito à cultura.


[1] Inês Virgínia Prado Soares é Procuradora Regional da República em São Paulo, Doutor em Direito pela PUC-SP, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e autora do livro “Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro” (Ed. Forum).

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