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Marcílio Toscano Franca Filho

Marcílio Toscano Franca Filho

20/06/2017

Por Marcílio Franca e Inês Virgínia Soares[1]

Direito e literatura mantêm há séculos profunda porém instável relação. De um lado, temas jurídicos como julgamentos, assassinatos e contratos constituem o leitmotiv de inúmeros contos, romances e peças de teatro. De outro lado, é notável a quantidade de normas jurídicas que têm como alvo os direitos e deveres de autores, seus agentes, editores, herdeiros e leitores. Direitos autorais, censura, tributação, incentivos, ghost-writing, heranças, liberdade de expressão, licenças e até mesmo um “direito à literatura” (defendido com maestria pelo grande Antônio Cândido, falecido há pouco) são algumas das questões que compõem esse mundo jurídico-literário, repleto de escritores interessados pela (in)justiça do mundo.

A tudo isso se soma o elevado número de juízes, advogados, procuradores, promotores ou delegados que se dedicam à prosa e à poesia com competência.

Nos últimos anos, um jovem autor paulistano, Ricardo Lísias, tem levado esse diálogo entre a realidade jurídica e a ficção literária (ou seria o inverso?) a novos e instigantes patamares. No ano passado, o seu “Inquérito Policial: Família Tobias” (ed. Lote 42) emulou, com detalhes realistas, os autos de um verdadeiro inquérito policial federal em que um complexo enredo familiar é reconstruído à medida que o leitor lê as peças legais ali reproduzidas: depoimentos, laudos, carimbos, perícias, pareceres, decisões judiciais… Em 2015, o seu folhetim intitulado “Delegado Tobias” (ed. E-Galaxia) terminou por levá-lo a uma delegacia da Polícia Federal real, para explicar a falsificação de uma decisão judicial incluída no livro. Tudo não passava de ficção.

Há dois meses, Lísias embrenhou-se em nova confusão lítero-judicial. Seu livro mais recente, “Diário da Cadeia” (Ed. Record), foi assinado por um enigmático “Eduardo Cunha (Pseudônimo)”, o que lhe rendeu um pesado processo movido pelo homônimo famoso, ex-presidente da Câmara dos Deputados e atualmente em uma cela no Paraná. A princípio, só a editora conhecia a identidade do autor. Três dias antes de o livro chegar às livrarias, Cunha – o de carne e osso – conseguiu suspender-lhe a venda e quebrar judicialmente o sigilo do pseudônimo. Após um recurso da editora, o livro chegou enfim às livrarias, mas o nome do Lísias já era de conhecimento público.

A questão faz-nos lembrar de Julinho de Adelaide, pseudônimo que Chico Buarque usou para driblar a censura dos anos 70 e gravar músicas críticas ao regime ditatorial, como “Acorda Amor”, com letra que pede socorro ao ladrão e, de forma irônica, aconselha que não se discuta à toa, nem reclame, porque o “bicho é brabo e não sossega”. Tem ainda Banksy, o grafiteiro britânico mundialmente famoso e cujas obras chegam aos milhares de dólares, mas cuja identidade é mantida em segredo com grande dificuldade há anos. Há também Elena Ferrante, nome fictício de uma escritora italiana de sucesso de quem ninguém sabia o nome verdadeiro até o jornalista Claudio Gatti divulgá-lo, em outubro de 2016, no jornal Il Sole 24 Ore, debaixo de grande polêmica. Em dezembro 2013, o advogado inglês que, meses antes, havia revelado a uma amiga que J. K. Rowling publicara um novo romance policial (The Cuckoo’s Calling) sob o pseudônimo de Robert Galbraith foi condenado a pagar uma multa de 1.000 libras à autora da saga de Harry Potter – ainda que ele tenha catapultado “The Cuckoo’s Calling” ao topo da lista dos mais vendidos, quando se soube a verdadeira identidade da autora.

Se, na ditadura, Chico Buarque precisou ser Julinho de Adelaide, na democracia, Ricardo Lísias exerceu sua liberdade de expressão e de manifestação, assumindo as dores e as delícias de ser um pseudo Eduardo Cunha. Gosto não se discute e a constituição brasileira respalda a escolha desse pseudônimo por Lísias. Segundo a constituição, “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, mas pseudônimo e anonimato não são a mesma coisa – sobretudo porque há um contrato entre o autor a editora, que se responsabiliza por eventuais excessos. Lísias sequer foi pioneiro nisso: a revista Piauí publicou durante meses uma seção chamada “Diário da Dilma” e nunca houve intervenção judicial que a proibisse.

Recurso artístico tão antigo quanto fundamental, o pseudônimo integra a esfera de liberdade de expressão e de privacidade do autor – ambas amparadas constitucionalmente. Recorde-se Fernando Pessoa e se constata que o pseudônimo pode ser um recurso estético relevante. Uma ordem judicial que autoriza a violação de um pseudônimo expõe a privacidade do autor e cerceia sua liberdade de criação artística, além de contrariar o dever constitucional que o Estado tem de incentivar a cultura (art. 215). O art. 19 do Código Civil, ademais, assegura que o pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome. A Lei de Direitos Autorais também reconhece e protege em muitos dos seus artigos a utilização dos pseudônimos. O uso de um nome, enfim, não parece dar ao seu portador o direito a um uso exclusivo, cerceando inclusive a livre-circulação de uma obra de ficção.

Aliás, nem a própria história de vida de qualquer cidadão está resguardada em face do direito do escritor à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística e produção. Esse foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal, na ADI 4815, ao declarar inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais. No julgamento, a Ministra Carmen Lúcia, relatora do caso, proclamou em seu voto que “o cala a boca já morreu!”, prevalecendo a liberdade de informação e a vedação expressa de qualquer tipo de censura. O resumo da decisão do STF precisa chegar a juízes que desconhecem o direito ao pseudônimo, pois lá está escrito que “o recolhimento de obras é censura judicial. O risco é próprio do viver. Erros corrigem-se segundo o direito, não se cortando liberdades conquistadas. A reparação de danos e o direito de resposta devem ser exercidos nos termos da lei.”

Não seria coerente que a mesma constituição democrática, que tão bem resguarda o sigilo da fonte jornalística e as liberdades de expressão, de manifestação e de informar e ser informado,  permitisse, simultaneamente, a quebra compulsória de um pseudônimo artístico.


[1] Inês Virgínia Prado Soares é Procuradora Regional da República em São Paulo, Doutor em Direito pela PUC-SP, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e autora do livro “Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro” (Ed. Forum).

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