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Estão todos os interditados livres da incapacidade? posição contrária (Flávio Tartuce) e posição favorável (José Fernando Simão).
Flávio Tartuce
11/04/2017
Ou precisamos de sentença para levantar as interdições?
Não, com sentença.
Flávio Tartuce
O Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei n. 13.146/2015 – trouxe importantes mudanças na teoria das incapacidades, alterando substancialmente os arts. 3º e 4º do Código Civil, bem como o sistema da curatela. A norma regulamentou a Convenção de Nova Iorque, tratado de direitos humanos do qual o País é signatário e que tem força de Emenda à Constituição, pelo que consta do art. 5º, § 3º, do Texto Maior.
A citada lei visa à inclusão da pessoa com deficiência, definida como “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (art. 2º da Lei n. 13.146/2015). São seus fundamentos, entre outros, a equalização de direitos e a não discriminação, havendo a substituição da premissa da dignidade-vulnerabilidade pela dignidade-igualdade.
Como já desenvolvi em outros textos, e também em palestras e exposições, o EPD gerou uma série de problemas jurídicos, destacando-se a ausência de qualquer previsão a respeito de maiores que sejam absolutamente incapazes e os atropelamentos legislativos provocados pelo Novo Código de Processo Civil. Na atualidade, a ilustrar, não se sabe ao certo qual a ação cabível em casos de reconhecimento de incapacidade, se a ação de interdição – como está no CPC/2015 –, ou se a ação de nomeação de curador – como pretende, na essência, o citado Estatuto. Muitos dos problemas da novel legislação tendem a ser resolvidos – e espero que o sejam –, por meio do Projeto de Lei n. 757/2015, em curso no Senado Federal.
Uma dessas questões pendentes diz respeito à situação das pessoas que se encontram interditadas quando da entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Passam elas a ser automaticamente capazes ou há necessidade de uma ação – e consequente sentença –, para o levantamento da interdição? Na doutrina, existem duas correntes bem definidas sobre o tema.
Para a primeira vertente, os portadores de deficiência passam a ser plenamente capazes com a emergência do EPD. Nessa esteira, opina José Fernando Simão que “todas as pessoas que foram interditadas em razão de enfermidade ou deficiência mental passam, com a entrada em vigor do Estatuto, a serem consideradas plenamente capazes. Trata-se de lei de estado. Ser capaz ou incapaz é parte do estado da pessoa natural. A lei de estado tem eficácia imediata e o levantamento da interdição é desnecessário. Ainda, não serão mais considerados incapazes, a partir da vigência da lei, nenhuma pessoa enferma, nem deficiente mental, nem excepcional (redação expressa do artigo 6º do Estatuto)” (Estatuto da Pessoa com Deficiência causa perplexidade (Parte I). Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-ago-6/jose-simao-estatuto-pessoa-deficiencia-causa-perplexidade>. Acesso em: 14 mar. 2017).
De outra banda, posiciona-se Pablo Stolze Gagliano no sentido de ser necessária uma ação de reabilitação ou de levantamento da interdição com tais fins: “não sendo o caso de se intentar o levantamento da interdição ou se ingressar com novo pedido de tomada de decisão apoiada, os termos de curatela já lavrados e expedidos continuam válidos, embora a sua eficácia esteja limitada aos termos do Estatuto, ou seja, deverão ser interpretados em nova perspectiva, para justificar a legitimidade e autorizar o curador apenas quanto à prática de atos patrimoniais. Seria temerário, com sério risco à segurança jurídica e social, considerar, a partir do Estatuto, ‘automaticamente’ inválidos e ineficazes os milhares ? ou milhões ? de termos de curatela existentes no Brasil. Até porque, como já salientei, mesmo após o Estatuto, a curatela não deixa de existir” (É o fim da interdição? Disponível em: <http://flaviotartuce.jusbrasil. com.br/artigos/304255875/e-o-fim-da-interdicao-artigo-de-pablo-stolze-gagliano>. Acesso em: 14 mar. 2017).
Entre uma corrente e outra, estou filiado à segunda posição, pelos argumentos desenvolvidos por Pablo Stolze, os quais subscrevo, especialmente com base na estabilidade social e na proteção do ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da CF/1988). Por isso, sugeri, em parecer dado ao Projeto de Lei n. 757/2015 e a pedido do Senador Antonio Carlos Valadares, que, para os casos de pessoas que se encontrarem interditadas na entrada em vigor da Lei n. 13.146/2015, será necessária uma ação de levantamento da interdição, para o retorno da plena capacidade civil.
Cumpre observar que, na prática, julgados estaduais não só reconhecem essa necessidade de levantamento da interdição, como trazem a imperiosa verificação do enquadramento dos deficientes como relativamente incapazes, ou não. A título de exemplo, fazendo tal análise, do Tribunal Gaúcho entendeu-se que: “diante das alterações feitas no Código Civil pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015), o apelante não pode ser mais considerado absolutamente incapaz para os atos da vida civil. A sua patologia psiquiátrica (CID 10 F20.0, Esquizofrenia) configura hipótese de incapacidade relativa (art. 4º, inciso III, e 1.767, inciso I do CC, com a nova redação dada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência), não sendo caso de curatela ilimitada. Caso em que o recurso vai parcialmente provido, para reconhecer a incapacidade relativa do apelante, mantendo-lhe o mesmo curador e fixando-se a extensão da curatela, nos termos do artigo 755, inciso I, do CPC/15, à prática de atos de conteúdo patrimonial e negocial, bem como ao gerenciamento de seu tratamento de saúde” (TJRS, Apelação Cível 70069713683, Oitava Câmara Cível, Relator Rui Portanova, julgado em 15/9/2016).
Com o devido respeito, considerar que a pessoa interditada passa a ser plenamente capaz com a emergência do EPD afasta essa análise pontual, de acordo com o caso concreto, o que é primaz para a correta efetividade da curatela e para a estabilidade do Direito Civil. Como tenho escrito e defendido, o Estatuto traz uma análise mais maleável da situação existencial da pessoa com deficiência, o que somente é concretizado por meio de uma nova análise do seu enquadramento.
Sim, sem sentença.
José Fernando Simão[1]
O Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei 13.146/2015, representou uma mudança radical para o Direito Civil ao abalar a milenar teoria das incapacidades.
A proposta inclusiva do Estatuto é clara: a pessoa com deficiência não tem uma doença, por isso não se utiliza o termo “portador de Síndrome de Down”. A pessoa com deficiência é igual às demais e por isso não precisa de receber a proteção decorrente da incapacidade. A pessoa com deficiência, pelo Estatuto, não pode ser chamada de deficiente.
Nessa esteira, cabe lembrar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência é decorrente da Convenção de Nova Iorque que, além de versar sobre Direitos Humanos e ter status de emenda constitucional, reflete a mais moderna visão inclusiva que dá concretude à dignidade da pessoa humana.
Bem, se o Estatuto acertou ou errou em sua orientação, é tema que já debati à exaustão e, portanto, não será objeto da presente reflexão. Entendo que errou, e muito, na alteração das regras concernentes à capacidade de fato.
O artigo 6º do Estatuto deixa clara sua premissa: “a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa”. Isso se reforça com a previsão do artigo 84: “a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas”.
Em razão dessa premissa há a revogação de dois incisos do artigo 3º do Código Civil, que cuida da incapacidade absoluta e de um inciso do art. 4º que cuida da incapacidade relativa.
Foram suprimidos os seguintes dispositivos do Código Civil:
a) os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos (art. 3º, II);
b) os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade (art. 3º, III);
c) os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo (art. 4º, III).
O resultado da mudança é que, após a vigência do Estatuto, só há uma hipótese de incapacidade relativa: os menores de 16 anos. Por outro lado, há uma nova hipótese de incapacidade relativa: “aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade”.
Resta, então, uma questão: as pessoas que foram interditadas, ou seja, consideradas incapazes com base nos dispositivos do Código Civil revogados pelo Estatuto, passam a ser capazes automaticamente ou será necessária uma sentença de levantamento da interdição?
A resposta é: todos aqueles que estavam interditados passaram a ser automaticamente capazes por força da vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência, independentemente de nova decisão judicial. Alguns argumentos são a base dessa orientação.
A – Lei de estado tem eficácia imediata.
A capacidade (ou a incapacidade), assim como a maioridade (ou menoridade) são indicativos do estado da pessoa natural. Apesar de se imaginar que apenas a situação familiar é indicativa de estado civil (solteiro, casado, divorciado etc), a capacidade também faz parte dessa qualidade.
As leis de estado têm eficácia imediata e atingem todos que se encontram naquela situação. Exemplifico. Quando o Código Civil de 2002 reduziu a idade da capacidade civil (de 21 anos para 18 anos), em janeiro de 2003 (início da vigência do atual Código), todas as pessoas que tinham 18, 19 e 20 anos passaram a ser automaticamente maiores, logo capazes, mesmo tendo nascido na vigência do antigo Código Civil. Mudou a lei, mudou o estado da pessoa natural automaticamente.
Pergunta que se lança: por que quando a Emenda Constitucional 66-2010 aboliu a separação judicial por força da alteração do art. 226, par. 6º da Constituição, todas as pessoas separadas judicialmente não passaram, automaticamente, para o estado de divorciados?
Estamos também tratando de lei de Estado, é verdade, mas nessa situação a situação de casado, separado judicialmente ou divorciado pressupõe a vontade da pessoa natural. Estamos diante de atos jurídicos em sentido amplo (para alguns seriam negócios jurídicos inclusive), ou seja, sem o elemento vontade eles sequer existem. A mudança da lei não transforma casados em divorciados, nem separados em divorciados, nem solteiros em casados.
Assim, a capacidade em razão da idade ou de uma doença é um fato natural que não depende da vontade. É a lei que cincede ou retira, queria o sujeito ou não. Por essa razão não se pode comparar a mudança de estado em razão da idade ou ou doença (fato jurídico) com a separação ou divórcio (vontade é a base).
B – A automática capacidade está de acordo com o espírito do Estatuto.
Os dispositivos do Estatuto, cujo objetivo é a inclusão da pessoa com deficiência, concedem à pessoa com deficiência capacidade plena (arts. 6 e 84 do Estatuto).
Aliás, o próprio Estatuto sequer permite que a interdição subsista (o processo desapareceu do sistema). Pode haver um processo de nomeação do curador ou de tomada de decisão apoiada (vide art. 85 do Estatuto).
A redação da lei não deixa dúvida que mudou-se a concepção de curatela! É medida excepcional e exige maiores investigações da situação da pessoa para se deferir a curatela, bem como definir sua extensão.
Vejamos a nova redação dos artigos do Código Civil:
“Art. 1.771. Antes de se pronunciar acerca dos termos da curatela, o juiz, que deverá ser assistido por equipe multidisciplinar, entrevistará pessoalmente o interditando.”
“Art. 1.772. O juiz determinará, segundo as potencialidades da pessoa, os limites da curatela, circunscritos às restrições constantes do art. 1.782, e indicará curador.
Parágrafo único. Para a escolha do curador, o juiz levará em conta a vontade e as preferências do interditando, a ausência de conflito de interesses e de influência indevida, a proporcionalidade e a adequação às circunstâncias da pessoa.”
Nas antigas e atuais interdições, nada disso foi considerado. Não houve equipe multidisciplinar, nem houve análise das potencialidades da pessoa com deficiência. Essas são razões preponderantes para as interdições não subsistirem.
C – Não há lei que justifique a incapacidade da pessoa com deficiência.
Agora temos um derradeiro argumento. As sentenças foram proferidas sobre dispositivos já revogados. Não há como sem manter decisão com base em lei revogada.
Explico. A interdição leva em conta a incapacidade. Se não há incapacidade em razão de doença ou deficiência, a propositura de uma ação para comprar a revogação do texto de lei seria processo inútil e custoso. Qual seria o contraditório a ser estabelecido? Sobre a revogação dos dispositivos do CC? E seria custoso em termos de esforço do Poder Judiciário para dizer o óbvio: não há mais interdição, nem incapacidade em razão de deficiência.
Em suma, não mais qualquer pessoa interditada por deficiência, com base nos incisos II e III do art. 3º do CC, nem com base no art. 4o, III do CC, desde janeiro de 2016, independentemente de nova decisão judicial.
[1] Advogado. Professor Associado da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco/USP. Livre-docente, Doutor e Mestre em Direito Civil pela USP. Professor e coordenador do CPJUR. Diretor Nacional e Estadual do IBDFAM. Autor da Editora Atlas.
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