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O sarcófago de Djehapimu
Luiz Henrique Lima
06/04/2017
Todos os anos milhões de visitantes procuram o Neues Museum em Berlim e deslumbram-se com a coleção de objetos do antigo Egito, cujo destaque é o famoso busto da Rainha Nefertiti que rivaliza em prestígio com a Mona Lisa do Louvre e o David de Michelangelo na Galleria dell’Accademia. Numa sala próxima, chama menos atenção uma grande pedra em granito negro, talhada entre os séculos VIII e IV antes de Cristo. É o sarcófago de Djehapimu, identificado apenas como “auditor do faraó”.
Da vida e das obras de Djehapimu pouco sabemos, pois o esquife é exibido vazio, sem múmia, e os hieróglifos presentes na sua cobertura não detalham sua biografia. De toda forma, a visão do sarcófago inspira reflexões.
Assim como os atuais governantes, o faraó em questão julgou necessário contar com os serviços de um auditor. Milênios atrás, foi uma sábia decisão. A boa administração não pode prescindir do controle. Na esfera privada, os relatórios de auditores internos e independentes são elementos essenciais para que acionistas, fornecedores e partes interessadas possam avaliar o desempenho dos gestores. Na área pública, nos países democráticos, avulta a importância do controle externo, que no Brasil é exercido pelos Tribunais de Contas, seguindo a tradição latina e o modelo napoleônico.
Pelas características do sarcófago, tais como a qualidade do granito e das imagens nele inscritas, podemos deduzir que o auditor Djehapimu era um alto funcionário, dotado de algumas posses e de certo prestígio. Mais uma vez, devemos dar razão ao faraó. Os profissionais de controle exercem uma função estratégica para a organização que servem, não sendo recomendável que ocupem posição hierárquica subalterna ou que sua remuneração seja irrisória. A Declaração de Lima, subscrita por mais de uma centena de entidades de fiscalização superior de quase todos os países do mundo, destaca a importância da independência dos auditores em relação a seus fiscalizados, assim como dispor de recursos necessários para desempenhar sua tarefa. Uma democracia sólida exige um controle eficiente, qualificado e imparcial.
Ademais, contemplar o sarcófago desse precursor de nossa atividade deveria fazer os atuais controladores brasileiros meditarem sobre a finitude da existência terrestre e o quanto é ilusória a vaidade, o quanto é inútil a ambição e o quanto é perigoso o sacrifício de princípios e convicções. Daqui a milênios, talvez não mereçamos sequer uma referência em algum museu especializado. Assim, importa prezar a humildade e agir com serenidade e firmeza no desempenho de nossas funções, nunca esquecendo que nosso patrão, que nos remunera, é o povo, a quem, em primeiro lugar, devemos lealdade. Entretanto, episódios recentes indicam que ainda há aqueles que, embalsamados no próprio orgulho e ganância, convertem-se em múmias precoces, sem sarcófago ou honrarias, seja pelo anacronismo pusilânime de suas decisões ou omissões, seja pela decomposição acelerada de sua integridade moral e intelectual.
Os antigos egípcios acreditavam na vida após a morte e o ritual de mumificação destinava-se a preservar o corpo físico até o momento do novo despertar. Muitas religiões contemporâneas acreditam na ressureição ou na reencarnação. Todavia, como já alertara Ruy Barbosa, patrono dos Tribunais de Contas brasileiros, não há salvação possível para aquele que conspurca a toga.
Próximo às escavações onde foi encontrado o sarcófago de Djerhapimu, está a monumental Esfinge de Gizé, a maior escultura em monólito do planeta. Com corpo de leão, asas de águia e rosto humano representa uma figura mitológica comum a várias civilizações antigas e imortalizada na obra de Sófocles ao propor aos viajantes um enigma: “decifra-me ou te devoro”. Semelhante é o dilema de alguns órgãos de controle, descendentes do auditor do faraó: ou decifram o anseio da sociedade e se reinventam ampliando sua componente técnica e multiplicando sua efetividade a serviço da democracia ou serão devorados no altar das reformas institucionais.
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